Ele já produziu mais de mil bonecos gigantes que se tornaram ícones do Carnaval de Olinda. Nesta conversa com a Algomais, Sílvio Botelho conta sobre sua trajetória na folia olindense e como suas produções ultrapassaram as ladeiras da cidade e hoje participam de eventos tão diversos como congressos, casamentos e até enterros.
Como foi sua infância em Olinda?
Nasci no bairro do Amparo. Vivi uma infância de família humilde. Meu pai era comerciante, minha mãe tinha vida doméstica, cuidava dos filhos. Mas chegamos a fazer o segundo grau completo, fiz alguns cursos técnicos, não passei no vestibular para medicina – eu queria ser médico – mas fiz cursos de laboratórios clínicos que poderiam me dar sustentação na área de saúde. De repente, descobri que eu desenhava bonitinho. O Carnaval sempre me fascinou e eu pequeno, nos anos 60, na Dantas Barreto, vi o Homem da Meia Noite passando num carro alegórico. Ele se curvou para a multidão e na minha imaginação ele teria dado boa noite para mim. E o gigante me fascinou. Logo depois veio a Mulher do Dia. Nessa época eu já estava envolvido com máscaras de Carnaval.
Como assim?
Aos 9 anos eu fazia máscaras para meus amigos. Fazia também pipa e castanholas para vender. Com os amigos que pediam máscaras eu trocava por bola de gude ou pião. E foi crescendo em mim essa magia do Carnaval. Meu pai era folião. Quando passei dos 15 anos já estava querendo abrir a porta para a clientela. A qualidade das minhas castanholas chamava a atenção e eu tinha vários clientes. Havia pessoas que ficavam esperando na frente da minha casa para que eu terminasse uma castanhola para poder comprar. Já havia encomenda para as máscaras. Começava a trabalhar do início de novembro até o Carnaval todos os dias para ganhar aquele dinheirinho. Também fazia esculturas entalhadas em madeira e vendia no Alto da Sé nos anos 70. Foi quando Ernani Lopes (presidente do bloco Menino da Tarde) pediu a Roque Fogueteiro (artesão) para fazer o boneco do Menino da Tarde. Roque disse: “não tenho mais saúde e idade para fazer, mas conheço um rapaz que sempre traz aqui os trabalhos dele para eu fazer a crítica e acho que ele pode te atender”. Ele foi até minha casa e perguntou se eu podia fazer um boneco tamanho gigante em papel. Respondi que fazia máscara, esculturas em madeiras, gesso e barro, mas de papel, nunca. Como se faz isso? Aí ele disse que o boneco seria parecido com o Homem da Meia Noite. Aí pensei que teria que fazer uma forma em barro. Quando preparei o barro e mostrei a Ernani ele disse: “é isso que eu quero, assim com a cara de menininho, para ser filho do Homem da Meia Noite com a Mulher do Dia”. O Menino da Tarde foi o terceiro boneco de Olinda. Ele saiu no Carnaval do final de dezembro de 1974 para 1975, já chamando a atenção.
E como foi a recepção dos foliões?
O povo ficou enlouquecido, feliz. O Carnaval que era quase todo à noite, passou a ser à tarde, por causa do boneco. Todas as agremiações foram dizendo que também queriam um boneco. Aí fiz a Menina da Tarde no Carnaval de 1978. Em 1979, mais outro boneco. Durante mais de 45 anos só havia dois bonecos: o Homem da Meia Noite, que é de 1932, e a Mulher do Dia, de 1967. Na década de 80 eu já havia feito 100 bonecos. Todo mundo queria bonecos. As agremiações foram se formando com bonecos. Hoje, 2016, o maior número de agremiações é de bonecos gigantes.
Como você se sente com o fato de os bonecos se tornarem um ícone do Carnaval de Olinda?
Quando eu criei o terceiro provocou uma ciumeira muito grande com as agremiações de estandarte. Elas não admitiam que tivesse outra cultura que não fossem os estandartes. Numa reunião no antigo forró Cheiro do Povo, Edmar Lopes disse: “essa cultura não existe, tradição aqui é o Homem da Meia Noite e a Mulher do Dia, isso não pode existir, não pode haver nem subvenção para essas agremiações”. Eu pedi a palavra e disse: “a partir de hoje eu vou empestear Olinda com Bonecos Gigantes!” Fiz também muitas oficinas com pessoas que levaram um bom tempo aprendendo comigo e hoje são bons profissionais.
E essa rixa ainda existe?
Não, hoje agradecem o que eu fiz. Fui o primeiro carnavalesco jovem homenageado na cidade em 1995. Todo mundo baixou a cabeça e disse: “ele merece ser homenageado pela quantidade de elementos que fez para o Carnaval.”
Você vive da sua arte, dos bonecos?
Hoje sou produtor cultural, faço eventos, trabalho com os bonecos o ano todo. Sou também artista plástico, pinto óleo sobre tela. Tenho um ateliê onde faço e vendo meus quadros. Agora o ateliê dos bonecos atende pedidos para o Brasil todo. Os eventos com os bonecos não acontecem apenas no Carnaval, eles estão na inauguração de lojas, ciclo natalino, ciclo festivo, enterros.
Enterros?
Tem família que diz assim: “Sílvio meu parente morreu, era folião, dá pra você mandar alguns bonecos acompanhando o enterro?” Também faço casamentos. Quando tem tempo eu faço o boneco com o perfil dos noivos. Eu entro na festa de casamento com os bonecos, tocando frevo, lá pelas 2 horas da manhã. Em congressos também. A grande abertura foi dada pela Abav, que me levou a muitos lugares. Os bonecos vão para falar de Olinda. Por isso que eu criei este nome: Olinda a Pátria dos Bonecos Gigantes.
Quanto tempo leva para fazer um boneco?
Alguns são rápidos, 15 dias. Mas outros levam mais tempo. Este último que fiz de Getúlio Cavalcanti levou mais de um mês para ficar pronto. O processo é lento. O primeiro eu fiz a forma em barro e o boneco foi todo feito em papel, superpesado. Papel machê não presta. Faço uma papietagem, pastelando um papel sobre o outro, com uma grude feita de um subproduto da mandioca, ou de milho, ou araruta. Usamos madeira para dar sustentação e a umidade não destruir. Em 1995, conversando com um amigo, que tem uma técnica muito boa em fibra de vidro, me sugeriu fazer os bonecos com esse material que tem maior durabilidade. Foi a mão na luva. Aconteceu de um tudo: a demanda de serviço aumentou, a qualidade do serviço também. Sai um pouco mais caro, mas a qualidade é bem superior.
São mais resistentes à chuva?
Os bonecos antigos quando vinha a chuva tinha que correr para debaixo das marquises ou de uma árvore. Hoje não, pode chover o que chover, porque a fibra de vidro resiste à água. Os novos bonecos também são mais leves. Para ter uma ideia, o Homem da Meia Noite tem 50 kg e os mais novos têm 25, 15, 13 kg. Eu pensava que a gente era o universo da história e não é. Acabo descobrindo nos anos 80 que a Europa tem uma tradição de bonecos de mais de mil anos. Eu não sei como essa semente caiu aqui.
Os relatos são de que os primeiros bonecos em Pernambuco são de Belém do São Francisco…
Quem me passou essa informação, que eu não sabia, foi Catarina Real, antropóloga que passou 20 anos no Recife. Ela disse: “Sílvio sabe que o primeiro registro de bonecos gigantes são de Belém do São Francisco? E quem trouxe foi o padre Norberto, da Bélgica?” Isso está escrito num livro de Mário Souto Maior.
Você é casado, tem filhos?
Tenho um menino, mas sou solteiro, graças a Deus. Meu compromisso está com o Carnaval, com a minha cidade, sou casado com Olinda, que é a minha grande paixão.
Seu filho não quis seguir a sua carreira?
Ele administra algumas coisas, mas ele não leva muito jeito para construir boneco. Mas admira o que se faz.
Você fabrica bonecos o ano todo?
No período de chuva, não. Não suporto chuva. É trauma de infância. Fico nervoso, mal-humorado. Não tenho poder criativo com muita chuva, não. Prefiro desenhar num quarto fechado, onde não veja os ambientes molhados. Se eu molhar meus pés eu fico agoniadíssimo. Quando chega junho, julho é um período de muito estresse para mim, porque eu não quero sair. Eu não sinto tanto calor, como a maioria das pessoas. Eu gosto do sol, do dia. Se eu vir cinzento, entro em depressão. Sabe a que horas eu me acordo? Às 5h da manhã já estou trabalhando. Ver o sol nascer, meu Deus, é uma coisa maravilhosa.
Como é para você o dia do desfile dos bonecos no Carnaval?
É uma loucura, é um corre pra um lado, corre pra outro. É muita mão de obra, porque a gente mexe com mais de 100 bonecos e coordenar tudo isso, com nossos diretores, requer muita tensão, muito cansaço. Somos uma associação sem fins lucrativos, a Troça Carnavalesca Mista A Nordestina é quem rege o Encontro dos Bonecos Gigantes. Começamos a trabalhar em junho e continuamos até o dia do evento que vai ser em 9 de fevereiro este ano. É um trabalho enorme organizar tudo, com qualidade, para que o povo veja um Carnaval bonito.
Quantas pessoas participam do desfile?
Só de manipuladores são 200 pessoas, 50 diretores, uma base de 30 coordenadores, dois carros de apoio, 300 dúzias de garrafas de água são consumidas, um café da manhã, um show do homenageado, quatro orquestras compostas por 120 músicos, 10 girândolas de 465 tiros. É uma infra bastante grande. E o dinheirinho, ó (mostra os dedos polegar e indicador próximos).
Quando surgiu essa troça?
Em 1987, num sábado. Estávamos na rua brincando, em Olinda, com os bonecos gigantes e queríamos dinheiro para tomar cerveja. Pegamos os estandartes do Trinca de Ás e os bonecos e bloqueamos a rua. E a turma corria atrás passando o chapéu. As pessoas gostaram. Quando terminou, tipo 5 horas da tarde, tinha dinheiro para comprar 3 a 4 grades de cerveja. E a gente ia para o bar beber, brincar e falar da festa. Aí surgiu a ideia: vamos fazer disso um encontro de bonecos. Quando isso aconteceu, resolvemos: deu certo, para o ano vamos fazer de novo. Pronto, não deu outra, o Encontro surgiu há 29 anos.
A crise causou algum impacto, vocês têm patrocínio?
Pouco. A gente se vira como pode. Estamos na luta de buscar mais recursos. Pedimos aos amigos agora, rodando o chapéu. Estamos com problema enorme de caixa. O desfile envolve mais ou menos R$ 70 mil para pagar orquestra, bonequeiros, coordenadores, diretores, caminhões, lanches, café da manhã.
E o que acha dessa homenagem feita pelo Encontro de Bonecos a Getúlio Cavalcanti?
Getúlio veio coroar o evento. Ele é muito forte. É um privilégio para gente. Fará com certeza um bom trabalho e a gente vai ter ainda muitos louros para comemorar. No café da manhã que oferecemos a artistas e outros convidados ele fará o show.