José Mujica: “Eu não faço apologia da pobreza”

*Por Houldine Nascimento A peregrinação de pessoas de diversas partes do mundo até o modesto bairro Rincón del Cerro, uma área rural mais a oeste de Montevidéu, tem sido cada vez mais frequente. O motivo, em geral, é um só: ver o ex-presidente do Uruguai José “Pepe” Mujica. De férias no último mês de janeiro, resolvi arriscar e ir até o Camino El Colorado, uma estrada de terra batida onde quase não há moradias. Este é o endereço da pequena chácara de Mujica. Enquanto liderou a República Oriental do Uruguai, entre 2010 e 2015, Pepe abdicou da suntuosa residência presidencial de Suárez y Reyes, no Prado, e se manteve onde vive há quase três décadas. Também doou quase todo o salário para os mais necessitados, recusou carros oficiais e se deslocava apenas em seu Fusca azul datado de 1987. Foi durante sua gestão que pautas polêmicas, como o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, descriminalização do aborto, além da legalização da venda e do autocultivo da maconha, avançaram, o que ocasionou a reação de setores mais conservadores, como a Igreja Católica. “O Papa [Francisco] é um amigo”, chegou a dizer anos atrás, em entrevista. Ao chegar no meio de Camino El Colorado, há uma cancela com a placa “Pare”. Em frente à casa de Mujica, há uma guarita constituída literalmente por um container. Dois guardas se revezam na segurança, afinal de contas, por mais modesto que seja o estilo de vida do morador, trata-se de um ex-presidente. Assim como eu, outros cinco jovens latino-americanos estavam a postos, na esperança de que Pepe aparecesse em algum momento. Gente do próprio Uruguai, Argentina e Peru. Eis que uma hora depois, Pepe sai de sua residência e nos recebe na guarita. Com uma roupa modesta, suja de terra, atende a comitiva. Noto um objeto peculiar na mesa. Você tem uma caneca de Lula. Tenho. Lula é um velho amigo. Poderia estar em uma caneca esplêndida, numa caneca imponente (risos). Em tese, o homem e a mulher deveriam ser vistos da mesma maneira. No entanto, há países em que essa igualdade de direitos não é observada e, mesmo nos países em que essa equidade é estabelecida por lei, ocorrem os chamados feminicídios. O que você pensa a respeito? O homem é o bicho mais contraditório que há. Capaz das coisas mais sublimes e capaz de imundícies. Um aspecto que vem da questão cristã se refere a Deus, o homem e a crença de que a mulher foi feita da costela do homem. Por isso o homem é colocado na frente. Graças ao avanço da comunicação, as mulheres estão denunciando um pouco mais, nos inteiramos mais, mas em algumas regiões, como a África, isso não é possível. No conceito da América Latina, este é o país mais laico. Aqui, as religiões têm muito menos peso. No Uruguai, em 1910, havia um presidente que escrevia “deus” com letras minúsculas. Em 1902, a mulher teve o divórcio por sua própria vontade. Mudamos toda a nomenclatura. A Semana Santa aqui não existe. Tudo isso está mudado. No Uruguai já não se ensina religião nas escolas, diferentemente de outros países da América do Sul. Aqui a Igreja está separada do Estado, não há religião oficial e não se jura com a Bíblia. Nem sequer o presidente jura, se compromete. Por isso pudemos fazer algumas reformas, como o aborto, por exemplo. Ninguém gosta do aborto, nem a própria mulher, mas do jeito que estava, seria castigar a mulher pobre. Porque, para que tem dinheiro, sempre há solução. Para o aborto clandestino, é preciso ter dinheiro. Jair Bolsonaro ganhou a eleição com o slogan “Deus acima de todos”. Como você observa a chegada de Bolsonaro à Presidência do Brasil e o avanço da extrema-direita no mundo? A História humana tem oscilações, é um pêndulo. Essa ideia topográfica de esquerda e direita é uma visão que sempre têm existido. Há um ponto de vista conservador e uma visão social, de mudança. Nós cremos que, modernamente, com a Revolução Francesa, se inventaram os termos “esquerda” e “direita” pela localização que tinham na Assembleia. Mas, na realidade, Epaminondas [general grego] era um rei de esquerda, Asoka, na Índia, era um rei de esquerda, Cristo Homem, diríamos, tinha compaixão e sentia a angústia dos demais. Isso não é de agora, isso é eterno. Essas duas caras compõem permanentemente o vai e vem da História da humanidade. As duas têm deformações. A cara conservadora, quando cai no mais reacionário, é o Fascismo. A cara progressista ou de esquerda, como quiser chamar, cai no infantilismo, confunde o que sente com a realidade. Esse vai e vem está permanente na existência da História do homem. No Brasil, se olha para trás. Você não era nascido com Castelo Branco, não era nascido quando Getúlio [Vargas] se suicidou. Bolsonaro vai passar. Pode haver pior. E se não pode ter um mundo melhor, podes ser melhor. A vida continua. Como você vê a América Latina nos próximos anos? Eu a vejo complicada. Não vão corrigir os problemas sociais que têm a América Latina, tampouco acabar. O eterno problema da esquerda é a unidade, falta unidade. A atomização... A esquerda se divide por ideias e a direita se une por interesses. Estamos numa época, alguns dizem, de mudança. A impressão é que é uma mudança de época. O avanço da civilização digital... Se eu tivesse que representar a humanidade atual, a representaria como um macaco com uma metralhadora. O mais forte não é Bolsonaro ou o Exército, o mais forte é a cultura. A cultura que faz com que sejamos compradores compulsivos e estejamos sempre desesperados. Este é o instrumento de dominação. Vivemos desesperados para comprar coisas novas e pagar contas. E temos que trabalhar para pagar contas. A verdadeira religião é o mercado e isso está por todos os lados. Se alguém for de encontro a isso, não corre o risco de ficar fora do sistema. O que passa é que surgem novos luxos que em pouco tempo são

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