Com o sistema de ônibus e metrôs em colapso, cresce o debate sobre o modelo de transporte gratuito no Brasil. Experiências em cidades como Caucaia, Maricá e Paranaguá mostram ganhos sociais, econômicos e ambientais, mas também desafios de financiamento e qualidade.
*Por Rafael Dantas
A qualidade e o custo do transporte são fatores que impactam diretamente a vida de milhões de habitantes das regiões metropolitanas. Moradora do Paulista, Lucélia Santos, por exemplo, gasta entre quatro e cinco horas diárias em deslocamentos, somando os trajetos de ida e volta ao trabalho. Ela atua como coordenadora de helpdesk em Setúbal, na Zona Sul do Recife, e sofre no bolso e no relógio. “Tem momentos que fica insuportável. Muito calor, lotação e muita demora”, lamenta. Ela não é exceção.
A crise do sistema de ônibus e metrôs se aproxima de um colapso. Há alguns anos, milhões de usuários têm abandonado o transporte público coletivo e migrado para alternativas individuais, como o moto-táxi por aplicativo. Um estudo da CNT (Confederação Nacional dos Transportes), divulgado em 2024, aponta que desde 2017, quase um terço dos usuários – 29,4% – abandonou completamente o serviço, enquanto 27,5% passaram a utilizá-lo com menor frequência. As razões para esse afastamento são as viagens desconfortáveis (28,7%), falta de flexibilidade nos deslocamentos (20,7%) e trajetos longos e demorados (20,4%). O preço elevado da passagem também está nessa conta (11,8%). Nesse cenário marcado por contradições e gargalos, ganha força em todo o País o debate sobre a Tarifa Zero.

"Tem momentos [que o transporte] fica insuportável. Muito calor, lotação e muita demora. Acho a proposta [da Tarifa Zero] muito interessante. Mas se aumentar a quantidade de pessoas, é preciso ter mais ônibus". Lucélia Santos
Antes dessa pauta chegar nas regiões metropolitanas, esse modelo de transporte público coletivo gratuito já foi adotado em 138 municípios de pequeno e médio porte no País. Entre as capitais, a exceção é Teresina, que tem Tarifa Zero no Metrô. “Todas as demais cidades têm menos de 500 mil habitantes. Isso é devido ao fato de que o custo do transporte cresce exponencialmente em relação ao território urbano”, explica o urbanista e professor da Universidade Federal de Minas Gerais, Roberto Andrés.
O pesquisador esclarece que, enquanto nas cidades menores o custo da implantação dessa política impacta entre 1% e 3% do orçamento da prefeitura, nas cidades grandes pode chegar até a 10%. Sem uma fonte externa de financiamento e impossibilitadas de arcar com toda a despesa via tesouro municipal, essa política ficou parada no engarrafamento das prioridades. No entanto, o Governo Lula encomendou recentemente ao Ministério da Fazenda um estudo para avaliar a viabilidade de uma Tarifa Zero nacional. Até se tornar realidade, ainda há muitas estradas ou trilhos a percorrer. Mas o pontapé inicial dado pelo Planalto recoloca, em pleno ano eleitoral, o transporte público coletivo no centro das discussões.

"A partir do momento em que zera a tarifa, a população tem uma grande parte da sua renda desonerada e esse recurso passa a ser aplicado em compras de alimentos, medicamentos e itens necessários para o dia a dia". Roberto Andrés
BENEFÍCIOS NA TARIFA ZERO
Diferente de outras agendas, que ficam nos embates do Congresso Nacional ou nos meios acadêmicos, a possibilidade de zerar o custo dos transportes tem grande apelo entre a população. Lucélia ouviu no noticiário sobre a Tarifa Zero e já tem opinião. “Eu acho uma proposta muito interessante porque vai abrir a possibilidade de muitas outras pessoas utilizarem o transporte público coletivo, evitando o uso de automóveis particulares. Em contrapartida, existe a questão da qualidade do serviço. Se aumentar a quantidade de pessoas é preciso ter mais ônibus”.
A percepção dela, como passageira, foi certeira. Onde a tarifa foi implantada, cresceu muito o número de pessoas que passaram a usar o transporte público coletivo. Um dos exemplos mais notáveis é do município cearense de Caucaia. Com 355 mil habitantes (o tamanho da população é bem próximo à de Olinda e um pouco menor que a de Caruaru), a cidade viu explodir o número de passageiros transportados em 371%, em apenas dois anos, segundo levantamento da NTU (Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos).
Os dados de outras cidades também revelam resultados surpreendentes, como o aumento de 202% no número de passageiros em Luziânia (GO) e de 144% em Maricá (RJ) – municípios com populações próximas à do Cabo de Santo Agostinho. Esses índices evidenciam o quanto a exclusão no acesso ao transporte público coletivo ainda é profunda em muitas regiões. Para Andrés, essa realidade reforça que investir em transporte gratuito ou acessível vai além da questão da mobilidade: trata-se, sobretudo, de uma política de inclusão socioeconômica, capaz de conectar pessoas a oportunidades e reduzir desigualdades.
“A Tarifa Zero é em primeiro lugar uma política de redução de pobreza e de aumento de capacidade da população mais pobre. Hoje 20% da renda das famílias no Brasil é gasto com transporte. A partir do momento em que zera a tarifa, a população tem uma grande parte da sua renda desonerada e esse recurso passa a ser aplicado, então, em compras de alimentos e medicamentos e itens que são necessários para o dia a dia”, apontou Roberto Andrés.
Os impactos econômicos observados em municípios que adotaram a medida reforçam sua dimensão social. Em Caucaia (CE), por exemplo, a prefeitura registrou crescimento de 25% no faturamento do comércio e do setor de serviços, acompanhado pelo mesmo percentual de aumento na arrecadação municipal. Já em Paranaguá (PR) – cidade com porte semelhante ao de Garanhuns e Camaragibe –, a política resultou em alta de 30% nas vendas do comércio local e redução de 40% nos acidentes de trânsito. Números que evidenciam que o transporte gratuito pode movimentar a economia e ampliar o acesso a serviços essenciais.
De acordo com Bernardo Braga, coordenador técnico da Urbana-PE, há uma grande expectativa que a política contribua para ampliar o acesso às oportunidades que as cidades oferecem e também de haver um impacto positivo nos orçamentos das famílias. Porém, sobre a migração dos modos individuais motorizados para o transporte coletivo, ele avalia que até o momento não há evidências claras nesse sentido. “Alguns estudos e levantamentos apontam aumento no número de passageiros dos ônibus, porém sem redução correspondente no uso de automóveis e motocicletas, cujas externalidades negativas precisam ser mitigadas”.

"A tarifa zero vem junto com uma outra questão importante, que é o transporte passar a ser pago pelo custo real e não pelo passageiro transportado, que é uma fórmula ruim de pagamento". Rafael Calábria
UMA NOVA LÓGICA PARA O TRANSPORTE
A adoção da tarifa zero nos sistemas de transporte público coletivo pode representar não apenas um avanço social mas, também, uma mudança estrutural na lógica de operação e financiamento do setor. Essa é a percepção de Rafael Calábria, especialista em Gestão de Cidades, ex-coordenador de Mobilidade Urbana do Idec (Instituto de Defesa de Consumidores) e pesquisador do BRCidades. Ele explica que no modelo atual as empresas são remuneradas com base no número de passageiros transportados. O especialista avalia que isso cria distorções, pois quanto mais lotado o veículo, maior o lucro. Essa lógica estimula a superlotação e reduz a qualidade do serviço, já que o foco está em maximizar a ocupação e não em garantir conforto, frequência ou eficiência.
Para Rafael Calábria, a gratuidade no transporte público coletivo traz consigo um novo modelo de remuneração que prioriza a transparência e a qualidade. “A tarifa zero vem junto com uma outra questão importante, que é o transporte passar a ser pago pelo custo real e não pelo passageiro transportado, que é uma fórmula ruim de pagamento. Quando você passa a pagar por quilômetro e ganha a tarifa zero, você tem uma conta mais simples, mais direta”, explica. Nesse modelo, o financiamento se baseia na quilometragem percorrida e nos custos reais da operação, permitindo um controle público mais efetivo sobre as despesas e resultados do sistema.
Além de ampliar o acesso e aliviar o orçamento das famílias, a mudança favorece uma governança mais transparente e eficiente. Como destaca Calábria, “a Tarifa Zero, de fato, é um avanço de governança, de transparência, além de ser, obviamente, uma política de um tremendo e de um importante impacto social”. Isso porque os benefícios podem ir muito além da gratuidade.

"O modelo de transporte adotado no Brasil faliu. As cidades que já adotaram a Tarifa Zero gastam muito menos do que os subsídios que eram adotados quando esse dinheiro ia direto para conglomerados empresariais." Thiago Mendes
O vice-presidente do Sindmetro-PE (Sindicato dos Metroviários de Pernambuco), Thiago Mendes, é taxativo ao avaliar que o padrão vigente do transporte no País entrou em falência, mesmo com o aumento dos aportes públicos nas empresas privadas que prestam o serviço. “O modelo de transporte adotado no Brasil faliu, apesar dos altos investimentos em subsídios. As cidades que já adotaram a Tarifa Zero – com sistemas estatais ou até mesmo por terceiros – gastam muito menos do que os subsídios que eram adotados quando esse dinheiro ia direto para conglomerados empresariais como o Consórcio Grande Recife. A gente entende que a mobilidade urbana é um direito sagrado e consagrado pela Constituição que deve ser garantido a todo mundo, que é o direito de ir e vir”.

"O principal risco [da implantação da Tarifa Zero] é que a qualidade [do serviço] seja comprometida, afastando ainda mais os passageiros do transporte público coletivo e ampliando as desigualdades". Bernardo Braga
QUAIS OS RECEIOS?
A preocupação levantada por Lucélia – de superlotação com a chegada de mais passageiros – é a mesma apontada por Bernardo Braga: a oferta do serviço após o aumento da demanda. “O principal risco é que a qualidade seja comprometida, afastando ainda mais os passageiros do transporte público coletivo e ampliando as desigualdades. Isso pode ocorrer por subfinanciamento, falta de garantias e previsibilidade no custeio do sistema ou mesmo por incapacidade de promover as adequações necessárias na oferta do serviço”.
Diante do cenário atual de proximidade do colapso, portanto, o risco seria de garantir um financiamento para esse sistema atual de transporte. Porém, com a estimativa de recepção da demanda hoje excluída, o conforto dos atuais passageiros poderia ficar ainda mais comprometido. “Uma discussão deveria preceder o debate sobre a Tarifa Zero: o nível de serviço que se deseja ofertar, aspecto fundamental para o dimensionamento do custeio do sistema. O transporte público coletivo precisa ser mais eficiente e atrativo, e a eventual renúncia da arrecadação tarifária não pode se impor como um novo desafio para a mobilidade. Assim, o ponto de partida para este debate deve ser que a política tarifária – qualquer que seja – não pode custar a qualidade do serviço”, defende Bernardo Braga.
Para Roberto Andrés, essa política precisa estar acompanhada de expansão e melhoria do serviço para ser eficaz. Ele explica que “A Tarifa Zero precisa vir junto com aumento de oferta e aumento de qualidade e pista exclusiva para ônibus para de fato ter uma priorização do transporte público coletivo. Então, quando você tem uma cidade com Tarifa Zero, a demanda – o número de usuários – duplica ou triplica, mas isso não acontece em relação ao custo; você tem que ter um aumento de oferta bem menor, cerca de 30%, para absorver esses novos usuários, aproveitando os espaços ociosos nos ônibus e horários menos ocupados.”
Os receios em relação à Tarifa Zero vão além da capacidade financeira das cidades e da qualidade do serviço prestado. Thiago Mendes, vice-presidente do Sindmetro-PE, alerta que “a política de Tarifa Zero deve ser organizada com participação popular e gestão do estado. É preciso discutir o papel de cada ente e o controle social sobre o sistema.” A preocupação é que, sem planejamento adequado, considerando a opinião e fiscalização dos usuários, o aumento da demanda comprometa o conforto e falhe na transparência.
COMO SERIA O FINANCIAMENTO?
Como não foi desenhada a política e nem realizados ainda os estudos pelo Governo Federal, não há uma definição de quem vai pagar essa conta. Mas pesquisas anteriores e a experiência de outros países apontam alguns dos caminhos a serem percorridos. É importante lembrar que parte dos passageiros do sistema atual já não pagam as tarifas praticadas. Bernardo Braga afirma, a partir de dados de setembro de 2025, que 52% dos passageiros transportados nos ônibus da RMR contaram com gratuidade total ou parcial.
Além disso, outros 32% foram beneficiados pelo vale-transporte, mecanismo em que a empresa custeia o deslocamento e o trabalhador contribui com até 6% do salário. “Assim, apenas 16% dos passageiros pagaram integralmente a tarifa. Nesse grupo estão os trabalhadores informais e as pessoas desempregadas ou em busca de emprego que, somadas àquelas que não utilizaram o transporte por restrições financeiras, poderiam receber atenção especial no custeio de seus deslocamentos”.
Para Roberto Andrés, nas cidades grandes é essencial contar com uma fonte externa de financiamento. Ele aponta que “o modelo mais promissor colocado hoje é reformar a contribuição das empresas, porque é um gasto que já existe, então não é um imposto novo e também não disputa recursos do orçamento”.
O urbanista conta que as empresas já pagam vale-transporte, mas considera que essa política é mal desenhada e mal distribuída, com arrecadação relativamente pequena perto do potencial. “Quando zera a tarifa, o vale-transporte também zera, e o município pode criar uma taxa que cobre todas as empresas para financiar o transporte. Isso permite triplicar a arrecadação sem aumentar o valor por empregado e com contribuição de todos os empregadores do município.” O especialista reforça que esse modelo aproveita recursos já existentes, tornando o financiamento mais justo e eficiente.
No levantamento feito pela NTU entre as 25 maiores cidades que adotaram a Tarifa Zero, a maioria (19) financia o sistema diretamente com recursos do orçamento municipal, enquanto outras criaram fundos específicos ou contam com receitas extratarifárias. Maricá, por exemplo, utiliza royalties do petróleo para manter o transporte gratuito, transformando uma fonte de externalidades negativas em benefício social. Outras cidades exploram alternativas criativas, como Vargem Grande (SP), que sustenta o sistema com taxas de empresas, multas de trânsito, exploração comercial de terminais e publicidade em abrigos, além de considerar a taxação de impactos do transporte individual motorizado.
O debate sobre a Tarifa Zero, que por muitos anos pareceu preso no sinal vermelho, agora ganha fôlego diante de uma conjuntura política mais favorável e de uma crise crescente no transporte público coletivo urbano. Analisar cuidadosamente as experiências já implementadas e construir coletivamente soluções de financiamento para um modelo mais eficiente do que o atual, de ônibus e metrôs, pode trazer alívio para os passageiros e gerar impactos significativos na atividade econômica das cidades que conseguirem implementá-lo.
*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais e assina as colunas Pernambuco Antigamente e Gente & Negócios (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)

