“Uma das coisas que literatura faz é criar laços”

Flávia Suassuna, nova integrante da Academia Pernambucana de Letras fala da sua produção literária e conta como seu tio Ariano Suassuna contribuiu para tornar-se escritora. Ela também é professora e analisa o impacto da internet no ensino e afirma que a ficção pode ajudar a reduzir a polarização atual.

É comum os alunos de Flávia Suassuna se encantarem com a maneira como ela oferece os conteúdos das suas aulas de História da Literatura. Prova disso é que esta entrevista, que ela concedeu a Cláudia Santos no café de uma livraria no Recife, foi interrompida por uma ex-estudante que não se conteve para abraçar e fazer elogios à antiga mestra. Talvez esse talento se deva à maneira envolvente como Flávia conversa e que pode ter origem no DNA que compartilha com o tio Ariano Suassuna.

Além da prosa boa — que pode ser constatada nesta entrevista — a professora também herdou do tio o ofício de escritora e seu trabalho foi reconhecido ao ser recentemente eleita para integrar a Academia Pernambucana de Letras. Nesta conversa, ela fala da sua trajetória pedagógica e literária, da relação com Ariano, do impacto da internet no aprendizado das crianças e na polarização ideológica que, para ela, pode ser revertida com a leitura de romances. Ao se identificar com os personagens, muitas vezes, o leitor, segundo Flávia, desfaz preconceitos e amplia seus conhecimentos. Parafraseando Contardo Calligaris, ela assegura: “a literatura, a ficção, tem uma mágica complementar porque ensina também a identificação como ser humano”.

Como surgiu seu interesse pela literatura?

Quando eu era muito pequena, as pessoas me perguntavam: o que você vai ser quando crescer? Eu dizia que queria ser mãe e escritora. Não entendia por que todo mundo achava graça da resposta, eu estava falando sério. Talvez tenha organizado isso na minha cabeça a partir da existência de tio Ariano, que era escritor, porque uma menina de 5 anos provavelmente não saiba o que seja um escritor.

E como era Ariano como tio?

Ele foi perfeito comigo. Um dia papai disse a tio Ariano: tem uma pessoa lá em casa que gosta desses livros que você gosta. Tio Ariano ficou todo entusiasmado e começou a me mandar livros no Natal, no aniversário. Quando fiz 11 anos, ele me deu As Minas do Rei Salomão, um livro de aventura que eu amei. Depois passou a me dar livros que tinham a ver com a minha idade. Foi um orientador perfeito das minhas leituras. O que acho lindo de tio Ariano é que ele é uma pessoa muito forte, muito incisiva, mas nunca me orientou para eu ser armorial, por exemplo. Ele deixou que eu seguisse meu caminho. Perto de morrer, ele disse: “as pessoas vêm me perguntar o que é que eu sou de Flávia. Aí eu digo que eu sou tio e todo mundo diz que você é uma professora muito adorável. E eu fico muito orgulhoso”. Vê que coisa bonitinha! Uma das coisas que literatura faz é isso: criar laços. É você contar e discutir a história de Capitu, ver como cada geração enxerga essa a história, trazer o filme de Capitu, trazer uma adaptação do livro Dom Casmurro. Tudo isso vai criando laços entre as pessoas de uma sociedade. Esse é um dos motivos por que existe essa história da criação de uma identidade nacional com aqueles livros.

Nunca conheci um russo, mas eu amo os russos por causa de Tolstói. É nesse sentido que a literatura cria esses laços de identidade e fraternidade mais amplos. Li um artigo do psicanalista Contardo Calligaris, em que ele diz que quando leu O Caçador de Pipas se identificou com o narrador, apesar de o romance se passar num espaço político, social, ideológico totalmente diferente do dele. Calligaris disse também que num documentário sobre o Afeganistão, você aprende muito, mas você aprende a diferença, as particularidades do país. Já a literatura, a ficção, tem uma mágica complementar porque ensina também a identificação como ser humano.

Você percebe que uma pessoa que mora no Afeganistão é tão humana quanto você. E a história é muito linda, fala de um menino de 8 anos que viu um amigo sendo violentado e correu. Esse artigo de Contardo Calligaris me bateu muito porque eu pensei a mesma coisa que ele: se eu tivesse 8 anos e visse uma amiga sendo violentada, eu acho que eu correria…

Como você decidiu atuar como escritora e professora?

Isso foram os desastres da vida porque eu queria ser mãe. Tive três filhos, mas fui abandonada pelo pai deles e precisei sustentá- los. Eu tinha o curso de Letras e me tornei professora por uma necessidade básica de sobrevivência. Acho, inclusive, que ser professora dificulta um pouco ser escritora, porque a gente tem muita coisa para fazer em casa, mas não tinha outro jeito. Somos pagos pela hora dada, mas quando chegamos na sala de aula, já gastamos um tempão preparando a aula, corrigindo trabalhos.

Você começou sua carreira como escritora ao lançar Jogo de trevas (1980), que foi o primeiro romance a ser publicado por uma mulher em Pernambuco. Como foi essa produção?

Eu ainda era solteira. Esse romance foi publicado pelas Edições Pirata em 1980. Eu tinha um professor maravilhoso chamado José Rodrigues de Paiva e eu fiz uma proposta indecente a ele. Eu disse: se eu lhe der o meu romance pronto, você perdoa o meu último trabalho? Porque eu não conseguia conciliar o trabalho e fazer o romance. Ele aceitou. Dei os originais do meu romance, e ele me deu uma nota, me livrei do trabalho dele e consegui terminar esse livro. Depois participei do concurso literário para marcar os 450 anos do Recife, instituído por Jarbas Vasconcelos, que era prefeito. Eu ganhei e esse foi meu segundo romance chamado Remissão ao Silêncio.

Comecei com prosa que exige uma disciplina. Para fazer esse segundo romance, eu saía da minha casa, ia para a casa da minha mãe toda quarta-feira de tarde, deixava meus filhos para poder escrever. Depois passei muitos anos silenciada e as pessoas me perguntavam: “por que você não está mais escrevendo?”; “porque toda vez que vou escrever, eu repito o que já escrevi. Preciso viver mais para poder escrever uma coisa nova”. Foi o tempo que me separei e misturado com isso, um dos meus filhos teve uma meningite raríssima, passei 10 meses no hospital com ele e a minha vida — vou fazer como o Riobaldo de Grande Sertão: Veredas — “partiu para outra parte”.

Tenho até um poema sobre isso, esse tempo de solidão. É um momento em que você faz como se fosse uma prospecção de petróleo. Você mergulha dentro de você mesma e começa a descobrir mil coisas, inclusive, defeitos. Achei muito difícil essa experiência de criar filhos, ser o pai e a mãe. Agora eles já estão casados, eu já estou cheia de netos. O que teve meningite ficou muito dependente de mim, porque teve sequelas. Ele mora comigo e os outros dois, em São Paulo.

Como essa introspecção rebateu na sua arte?

Uma vez perguntaram isso a Clarice Lispector e ela deu uma resposta que eu acho ótima: “não tem gente que costura pra fora? Pois eu costuro pra dentro”. Por isso que digo que Ariano só abriu a minha porta da literatura mas, na verdade, ele escreve para fora, eu escrevo para dentro. Faço uma literatura um pouco introspectiva.

Muitas escritoras têm essa característica.

Acho porque são as nossas lutas, mas temos que ter muito cuidado com elas. Machado de Assis tem um personagem que é um escravo de Brás Cubas chamado Prudêncio. Quando Brás Cubas nasceu, ganhou Prudêncio como um brinquedo. Ele brincou a infância inteira com Prudêncio, como se ele fosse o seu cavalo de todos os dias. Brás Cubas literalmente botava uma rédea nele e o montava.

Eles foram crescendo, começam as lutas abolicionistas, e o pai de Brás Cubas alforriou Prudêncio e deu-lhe uma indenização, com a qual ele comprou um escravo e batia nele na praça pública, para mostrar a todo mundo que não era mais escravo, que agora era senhor. Nunca ninguém havia batido nele em praça pública, mas ele faz isso com seu escravo. Machado é como Woody Allen, com uma ironia fina, fala de umas coisas horríveis que estão dentro da gente que a gente gostaria de escamotear.

Acho bonito como Machado trabalhou o negro como um ser humano. Isso é nosso, isso é do ser humano. A gente está numa simplificação muito grande do humano agora, a gente se rende a essa polarização. Metade da humanidade se autopurifica e se santifica e acusa a outra metade de não prestar. Parece um romance do Século 19, quando o herói é bonito e só tem em qualidade e o vilão é feio, e só tem defeito. Nós não somos assim.

As lutas das sufragistas começaram na década de 1920, a primeira vez que a mulher votou no Brasil foi na década de 30, faz 100 anos que a gente luta. Na Academia Pernambucana de Letras, já foram eleitos quase 200 homens, eu sou a 18ª mulher. Ainda tem muita luta pela frente, mas tem que ser uma luta cuidadosa porque senão a gente comete o mesmo erro de Prudêncio contra os homens. Tenho pensado muito sobre isso porque eu estou escrevendo um livro, acho que ele terminou e se chama Isolamentos, são poemas que produzi durante a pandemia. A poesia requer menos disciplina.

Como é que você analisa hoje a participação feminina na literatura?

Eu vi que tem um jeito novo de recitar, o slam, em que as mulheres estão ressignificando e elaborando as dificuldades delas a partir da poesia. Achei importante porque quando a gente vai num psicólogo, ele diz: fale. Quer dizer, é falando que a gente organiza, elabora, ressignifica. É com a palavra que a gente faz tudo isso.

O que a gente não deve fazer é dizer que não precisa estudar literatura porque é muito complicado. Mas você vai ter que elaborar coisas complexas. Edgar Morin tem um conceito que diz assim: as coisas complexas não são difíceis, elas são coisas que, para entender, você precisa de vários saberes. Então, por exemplo, a violência, para entendê-la você tem que pegar conhecimentos da sociologia, da antropologia, dos direitos humanos e de Freud.

Neste momento a entrevista é interrompida por uma ex-aluna que cumprimenta Flávia Suassuna e faz muitos elogios às suas aulas.

Vou pegar o gancho da sua ex-aluna. Você tem uma trajetória de ensino de literatura e de formação de leitores jovens. Como está o interesse deles pelos livros?

Temos uma dificuldade hoje em dia com a internet. Li um artigo sobre a volta do livro físico na Holanda e na Finlândia, que são países que tem no Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) um resultado muito bom no que se refere à compreensão de linguagens. Eles perceberam que, no espaço virtual, o aluno perde tempo demais acessando várias informações antes de acessar o livro. Eles observaram que começou a acontecer o que existe aqui no Brasil: a pessoa lê e não compreende o texto, é o analfabetismo funcional. No caso do livro físico, o menino vai pegá-lo na estante sem ser distraído.

As pessoas me perguntam como faço para os meninos compreenderem o conteúdo das aulas. Eu explico uma coisa com começo, meio e fim, porque faço uma linha do tempo. Vou organizando o que cada geração falou e porque falou. Por exemplo, o barroco aconteceu num momento em que houve a reação da Contrarreforma à Reforma protestante. Por isso que há tanta preocupação com perdão, com o pecado, com religião naquele momento. O Barroco é muito parecido com o Romantismo, mas o contexto é outro porque o Romantismo é a chegada da burguesia com novos valores diferentes dos da nobreza. É um momento de liberdade, fraternidade, igualdade. É por isso que a poesia abolicionista de Castro Alves é neste momento.

Você vai oferecendo informações que são ordenadas porque há muita informação desordenada e desconectada uma da outra na internet. A quantidade de distração é grande. Por isso que você não se concentra, perde o foco e isso é muito ruim para leitores porque o que é ler um livro? É passar três horas fazendo uma coisa só.

Apesar de suas críticas à internet, você tem um blog. Como usar essas novas tecnologias a favor da literatura?

Eu fico mandando poemas pra todo mundo pelo WhatsApp. Eu adorei isso porque você tem uma espécie de arquivo dentro do ZAP e você pode enviar poemas. Eu tenho um poema bem curtinho, chamado Enterro que é assim: As redes / carregam palavras / quase mortas. // Ainda se debatem. / Mas já não dizem. Sabe aquele enterro de pobre que coloca o morto na rede lá no interior? Mas o poema também pode se referir às redes sociais porque nelas a gente não está acertando a língua do amor, só está acertando a língua da treta. É como se ali fosse o lugar de brigar. Por que a gente não tenta se comunicar? Acho que isso é possível com a literatura.

Escrevi um artigo de opinião analisando a obra de uma nigeriana chamada Chimamanda [Ngozi Adichie] e do israelense Amós Oz. Ele tem um livro chamado Mais de Uma Luz que são três ensaios. O primeiro se chama Caro Fanático e ele diz mais ou menos o que os orientais dizem, que a verdade tem 12 portas, mas a gente acha que só tem uma. Eu recentemente rebati a um aluno que dizia estar do lado certo da história. Eu disse: “Meu filho, o lado certo da história é a dúvida”.

Chimamanda tem um depoimento no TED chamado O Perigo da História Única. A história única não é mentirosa, é incompleta. Por exemplo, quando ela chegou aos EUA para estudar jornalismo e comunicação, a sua colega de quarto ficou impressionada por ela ter um inglês fluente. Ela disse: “essa criatura não sabe que a Nigéria tem como língua mãe o inglês?” O que ela sabia da África? Seca, genocídio, guerra. Isso é mentira? Não, é verdade, mas a África não é só isso. É essa história que cria o preconceito e o estereótipo.

Uma escritora americana, Elizabeth Bishop, que viveu muitos anos no Brasil, escreveu ali um livro chamado O Esforço do Afeto. Então, a literatura é o lugar do esforço do afeto. Você tem que fazer um esforço de tolerância. Isso pode acontecer por meio da ficção, da literatura, de um bom filme ou uma série bem-feita que sirva pra gente pensar. Eu tenho um filho, que é engenheiro, e ele disse assim: “eu tive tanta aula de história na minha vida, mas eu só entendi o absurdo da escravidão com o filme Doze Anos de Escravidão”. Porque ele se identificou com o personagem que foi escravizado.

O que representa para você fazer parte da Academia Pernambucana de Letras?

Fui a minha vida inteira professora de história da literatura. Isso me ensinou muito, porque acho que o presente é serzido com o passado, e esses três tempos se misturam: o presente, o futuro e o passado. É claro que um não determina o outro, mas é conhecendo o passado que a gente tem possibilidade de transformar no presente o que vai ser o futuro. Então eu acho que a academia é exatamente isso, um lugar onde a tradição é reprocessada. Tem uma frase que corre lá na Academia que é assim: “sem inventário não há invenção”. É preciso a gente estar o tempo todo “ruminando” essa tradição, guardando, preservando essa memória cultural para que ela seja utilizada, para que haja a invenção de caminhos para a gente seguir. Essa foi a tarefa da minha vida e agora tenho a Academia como um coroamento da minha missão.

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