*Por Rafael Dantas
Anderson Miguel, 14 anos, mora no Alto Santa Terezinha, na periferia da Zona Norte do Recife. Estudante de uma escola pública local, nos contraturnos das aulas, ele tem acesso aos computadores da biblioteca e participa das atividades de judô e futsal do Compaz. Lá ele é Pelezinho e está dentro do centro comunitário desde que foi fundado, em 2016. “ Venho para aprender no computador, fazer judô. E jogando nas várzeas, as pessoas dizem que eu pareço muito com Pelé, virei Pelezinho. Eu sonho em ser um grande jogador de futebol no futuro”. Os sonhos e as oportunidades que o adolescente tem acesso hoje possuem uma conexão direta com uma transformação de uma cidade do outro lado do continente: Medellín.
Lá a taxa de homicídios chegou a ser de 375 por 100 mil habitantes, no início dos anos 1990, quando foi considerada a mais violenta do mundo. O índice apresentou uma queda para 177 quando Sergio Fajardo assumiu a prefeitura de Medellín em 2003. Em quatro anos, o indicador caiu para 26 homicídios para cada 100 mil habitantes.
Desigualdade, violência e corrupção foram os inimigos que Sergio Fajardo, um professor de matemática que se tornou prefeito de Medellín em 2004, escolheu para enfrentar na sua gestão. Ao longo dos anos, a política que priorizava a reconstrução social dos territórios mais vulnerabilizados, com intensa participação comunitária, produziu efeitos visíveis. De cidade mais violenta do mundo, Medellín passou a ser considerada a mais inovadora. Um trabalho que influencia a atuação do Recife e de diversas cidades latino-americanas atualmente. A queda na taxa de homicídios e as construções icônicas que levaram serviços cidadãos para as regiões mais pobres e densas da cidade são apenas dois símbolos da política pública que ganhou o nome de urbanismo social.
Fajardo conheceu Pelezinho e outras crianças do Compaz nesta semana em sua primeira visita ao Recife, quase 20 anos após o início do seu mandato. O ex-prefeito esteve na cidade, ao lado de outras referências latino-americanas, que são especialistas ou gestores públicos no 1º Congresso Brasileiro de Urbanismo Social. A escolha da capital pernambucana não foi por acaso. O Compaz é uma das vitrines nacionais de política pública inspirada em Medellín. Programas como o Mais Vida nos Morros e o Parque Capibaribe também possuem experiências exitosas de transformações urbanas, a partir de diálogos com as comunidades. Cases de iniciativas públicas bem- -sucedidas, que convivem ainda com desafios gigantes nos diversos territórios com intensa vulnerabilidade social na cidade.
Em 2017, o Recife tinha um índice de 48,73 homicídios por 100 mil habitantes. Em 2022, após oscilações no período da pandemia, o indicador caiu para 35,12 por 100 mil. Esse resultado não se deve exclusivamente ao Compaz, assim como em Medellín não são apenas as bibliotecas-parque as responsáveis pela mudança social. Mas no Compaz está o espírito da nova política de enfrentamento à violência.
As participações de Sergio Fajardo e de Jorge Melguizo, que foi secretário de Cultura Cidadã de Medellín, deixaram claro que a experiência transformadora de Medellín foi mais social. As novas infraestruturas urbanas que surgiram, como metrô, teleféricos, espaços de cultura e equipamentos de lazer foram o suporte para uma nova vivência na sociedade que estava sendo costurada. “Nosso projeto é de construção de uma sociedade, não só a construção de uma cidade”, destingue Melguizo.
Os equipamentos de alta qualidade que passaram a habitar nos espaços esquecidos e invisibilizados de Medellín quebravam uma lógica de fazer prédios e prestar serviços sem qualidade para as camadas populares. “O mais belo para os mais humildes”, disse o ex-prefeito. Uma mensagem exaustivamente repetida por Murilo Cavalcanti, secretário de Segurança Cidadã do Recife. Ao mesmo tempo, há o incentivo à experimentação e à escuta. “Quer fazer urbanismo social? Conheça o território metro quadrado por metro quadrado. Caminhei por todos os lados, conhecíamos todo o tecido social da cidade”, destacou Fajardo.
A partir dessas andanças e da escuta popular, Fajardo formou a imagem de que os adolescentes e jovens da periferia têm um muro que os separa das oportunidades da vida. Enquanto isso, há uma porta aberta para a ilegalidade. “O que há de mais agudo na experiência da pobreza é a sensação de ser visto como inferior, como um fracassado no mais baixo patamar da escala social. As desigualdades, a violência e a corrupção geram desconfiança e desesperança, que nos faz pensar que não se pode fazer as coisas”, explica. O ex-prefeito afirma que a estratégia desenhada pela prefeitura na época, diante da impossibilidade de derrubar o muro, foi de ir abrir brechas nele, criando novas portas para as oportunidades.
Essas portas são um conjunto de estratégias adotadas pela cidade colombiana, como bibliotecas, centros educacionais e espaços de lazer. A Rede Compaz, no Recife, é inspirada nas bibliotecas- parque de Medellín, mas tem como diferencial englobar em um único equipamento os serviços de diversas secretarias e órgãos públicos.
COMO AVANÇAR?
Mesmo com todo o avanço proporcionado pelo Compaz, o Recife ainda enfrenta problemas de violência. Para o secretário de Segurança Cidadã, Murilo Cavalcanti, a política de urbanismo social ainda está em construção na cidade. “O Compaz é um ponto de partida. É um laboratório. Fico emocionado ao ver o equipamento completamente tomado pela população, com atividades de formação e lazer. Se a gente não buscar o caminho dessa política, a tão desejada paz social não será alcançada”, alerta Murilo Cavalcanti.
Para Cavalcanti, um dos pontos principais para ter resultados ainda melhores é a ampliação do números de unidades do Compaz no Recife. Em Medellín, os projetos de urbanismos sociais foram implantados de forma simultânea em vários territórios vulneráveis. Mas o aumento do número de equipamentos na capital pernambucana está previsto. “A expectativa é que sejam 16 para ter impacto em todos os territórios da cidade”, ressalta o secretário. Aos poucos, a rede vai sendo expandida. Até o final de 2024, segundo Murilo Cavalcanti, a capital pernambucana, que hoje tem quatro equipamentos do Compaz, terá mais quatro, totalizando oito unidades.
“A gente cria uma rede bem robusta, de oito unidades. Os novos equipamentos estarão em bairros muito emblemáticos como Ibura, Pina, Várzea e Totó. São novos desafios nesses territórios para o Compaz”, afirmou Paulo Moraes, secretário-executivo de Segurança Cidadã. Outro passo a ser dado, segundo Moraes, é a adoção de um modelo de gestão com a contratação de uma OS (organização social). “Vamos tornar o modelo de gestão híbrido. Temos que aprofundar o programa dentro das necessidades que vão surgindo”, explica o secretário executivo. A vantagem dessa mudança, segundo Moraes, é ganhar mais agilidade para conseguir firmar novas parcerias e patrocínios, para aporte de recursos, com a iniciativa privada.
Essa ampliação da política pública pode até ganhar o Brasil. “No plano nacional, a discussão vem se consolidando no sentido de o Governo Federal apoiá-la. O secretário Tadeu Alencar esteve conosco, esteve em conversas com o prefeito e o ministro Flávio Dino, e está sugerindo esse desafio de nacionalizar essa política”, adianta Paulo Moraes. Com o suporte federal, outros Estados e municípios poderiam criar unidades inspiradas na experiência recifense em seus territórios mais vulnerabilizados.
EXPANSÃO DO URBANISMO SOCIAL PELO INTERIOR
Antes mesmo de qualquer ação federal, outras experiências de urbanismo social estão surgindo em Pernambuco e no País. No interior do Estado, no Agreste, a cidade de Cupira inaugura no final deste ano o primeiro Comvida, um equipamento inspirado no Compaz. Antes dessa infraestrutura de educação e serviços sociais, a cidade, que já foi a segunda mais violenta de Pernambuco, adotou uma série de outras ações que reduziram drasticamente os seus indicadores de homicídios.
Quando o prefeito José Maria Leite de Macedo assumiu a gestão de Cupira, em 2017, o município de 22 mil habitantes teve 41 assassinatos. Para reverter o cenário, buscou conhecer as experiências de trabalhos exitosos em Moreno, em Caruaru e no Recife. Ao identificar que a maioria dos homicídios eram em escolas, que eram o alvo da distribuição de drogas, a atuação social se tornou o foco. “Percebemos que por meio de um equipamento ou ação efetiva de um programa voltado para o público escolar poderíamos reduzir violência, uma vez que o alvo da violência eram nossos alunos”, destacou André Macedo, secretário de administração de Cupira.
Reformas nas escolas, entrega de kits escolares, requalificação de espaços de lazer e esportivos, além da instalação da guarda municipal, por meio da criação do Primeiro Consórcio Intermunicipal de Segurança Pública (Conseg), foram algumas das iniciativas integradas que derrubaram o número de Crimes Violentos Letais Intencionais de 41 em 2017 para 8 no ano passado. Em 2023, aproximando-se da metade do ano, um homicídio foi registrado na cidade. “O Comvida está em instalação. Será o primeiro Compaz fora da RMR. Será um investimento na educação dos contraturnos escolares. Estamos construindo um ambiente para que os jovens e adolescentes não tenham tempo ocioso para outras atividades. É um trabalho preventivo”, declarou Macedo. Ele afirma que além da construção do equipamento, as secretarias municipais também se conectaram para repensar sua atuação dentro do grande guarda-chuva que é pautado em priorizar a educação dos jovens e adolescentes.
INSPIRANDO A MAIOR CIDADE DO PAÍS
Do Recife e de Cupira para a maior cidade do País. São Paulo também esteve representado no Encontro Brasileiro de Urbanismo Social com o secretário-executivo de planejamento e entregas prioritárias, Fernando Chucre, e com a assessora da Secretaria Executiva de Projetos Estratégicos, Rebecca Dantas, que já trabalhou na equipe da Prefeitura do Recife. Na capital paulista, a inspiração do urbanismo social, de Medellín e do Recife, caminha primeiramente dentro dos CEUs (Centros Educacionais Unificados).
Hoje a cidade possui 58 unidades dessas estruturas. “São Paulo está retomando projetos de recuperação socioambiental em várias comunidades, aproveitando a estrutura existente do CEUs. Planejamos desenvolver um modelo similar ao do Compaz, baseado na experiência muito bem-sucedida do Recife. Estamos utilizando esses equipamentos na educação para, a partir daí, experimentar esse conjunto de serviços que temos certeza que vai melhorar bastante a percepção da comunidade, principalmente, em relação ao atendimento e à disponibilidade de cursos e serviços públicos que têm a capacidade de mudar a vida dessa população”, explicou Chucre.
Rebecca Dantas explica que há um processo de institucionalização em andamento dessa política na cidade, que conecta 18 secretarias para encontrar oportunidades de solução a partir do conceito de urbanismo social nos diversos territórios de São Paulo. “Ter a gestão pública muito comprometida com o urbanismo social é um eixo importante, bem como a governança com participação social e a criação de bons equipamentos urbanos. Isso é bem desafiador na maior cidade da América Latina, que tem uma geografia muito diversa, desde áreas alagáveis até morros. Mas São Paulo tem buscado inovação nos processos e isso ajuda muito”, destacou Rebecca, que é especialista em urbanismo social.
No País, Rebecca afirma que há experiências de urbanismo social, com inspiração em Medellín e no Recife, sendo construídas no Pará (com as Usinas da Paz), no Espírito Santo e, até mesmo, em outras cidades pernambucanas.
Seja no Recife, em Cupira ou em São Paulo, já há caminhos sendo traçados de transformação social e enfrentamento da violência com a potente experiência colombiana. Novos e muitos passos ainda estão à frente, diante dos complexos problemas sociais e econômicos de cada cidade. Como afirmou Fajardo, na sua passagem pela capital pernambucana, “cada passo é parte da transformação”.
*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)