As casas do Recife eram voltadas para o Rio Capibaribe nos primórdios da cidade. Com a modernização da capital pernambucana e o crescimento da indústria dos automóveis no País, o modelo de urbanização foi invertido. A população deu as costas ao seu principal ativo ambiental e se voltou para as avenidas. A mobilidade ancorada pelos veículos motorizados individuais resultou numa experiência urbana caótica e poluída. Desse desconforto cotidiano e da eclosão de movimentos sociais em defesa de uma cidade mais humana e verde operou-se uma mudança. O recifense voltou a olhar para o rio, a andar de bicicleta e a cobrar por mais qualidade nas calçadas. Nasceu um novo protagonismo cidadão que associa conhecimento técnico e mobilização popular por um urbanismo sustentável.
A criação do Jardim do Baobá, nas Graças, representa bem essa tendência na luta por uma cidade mais sustentável. Ele é uma das peças do Parque Capibaribe, que é a principal aposta do poder municipal de reordenamento urbano para o Recife num cenário de longo prazo. “O Jardim do Baobá é o marco zero de um modelo que pretendemos implantar na cidade. O parque traz um alto padrão de mobiliário urbano, com prioridade aos pedestres e ciclistas”, diz Bruno Schwambach, secretário municipal de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente.
Schwambach considera como um dos diferenciais da iniciativa a intensa participação popular. “Não é um projeto da prefeitura, mas da cidade”. Para envolver a sociedade, segundo o secretário, foi fundamental o convênio com o Inciti/UFPE, que promoveu diversos fóruns e debates com atores locais para discutir o projeto. “Para que haja sustentabilidade as decisões não podem ser tomadas sem a conexão com a população, precisa de um amplo engajamento”, ressalva Schwambach.
Outros movimentos de apropriação do espaço urbano fervilharam no Recife nos últimos anos. Desde grandes mobilizações, como no caso do Ocupe Estelita, até a organização de vários grupos locais, como o Instituto Casa Amarela Saudável e Sustentável.
A associação surgiu para combater a insegurança local e acabou atuando na defesa de um bairro mais humanizado. Possui cinco núcleos que cuidam de áreas específicas da comunidade, como o Sítio da Trindade, a Biblioteca Municipal (reaberta com a ação dos moradores) ou a Horta Comunitária (plantada num terreno baldio adotado pelos vizinhos). “O mais importante é engajar as pessoas na preocupação com o espaço público. A horta era uma área com lixo que foi ocupada e é cuidada pela população. Virou um point ambiental, criado sem recursos, mas com muito carinho da comunidade”, afirma o coordenador Vandson Holanda.
Movimentos semelhantes se espalham por diversos bairros, como em Casa Forte, Setúbal, Graças e Brasília Teimosa. O doutor em Estruturas Ambientais Urbanas e professor da Universidade de São Paulo (USP), Bruno Padovano, considera essencial essa participação dos cidadãos. “Nada mais pode ser realizado de cima para baixo, sem envolver todos os interessados, até porque na interface dos diversos atores sociais podem surgir ideias muito melhores do que aquelas que muitas vezes se originam em paradigmas superados”.
Nos últimos anos cresceu também o número de movimentos que criticaram o padrão de mobilidade. Surgiram o Olhe Pelo Recife – Cidadania a Pé, a Frente de Luta pelo Transporte Público e a Associação Metropolitana de Ciclistas do Grande Recife (Ameciclo). O assunto é estratégico, pois a forma como os pernambucanos se locomovem tem um grande impacto ambiental. Segundo o Inventário de Emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) da Cidade do Recife, 65% do CO2 emitido na capital provém do transporte.
Com quatro anos de atividade, a Ameciclo ampliou sua atuação ao mesmo tempo que aumentou sensivelmente o número de ciclistas na cidade. O movimento participou da construção do Plano Diretor Cicloviário da Região Metropolitana, promoveu a primeira Conferência Livre de Mobilidade do Recife e desenvolveu um sistema de reutilização e compartilhamento de bikes em duas comunidades carentes do Recife, o Bota pra Rodar. Além disso, tem investido na realização de pesquisas para embasar sua atuação.
“É importante fazer o Recife ter uma estrutura urbana mais humana. Quando toda malha viária é construída para o automóvel, você tira a cidade das pessoas e as ruas viram apenas canal de passagem e não de vivência”, afirma Lígia Lima, uma das coordenadoras da Ameciclo e integrante do Observatório do Recife. Ela afirma ser necessário diminuir a velocidade nas ruas, diversificando o modo como as pessoas fazem seus percursos no dia a dia, estimulando principalmente o andar a pé e de bicicleta. “Quando as pessoas não só passam pelas vias, mas vivem a cidade, passam a se preocupar com esse espaço se fosse sua própria casa. A partir daí, começam a querer cuidar mais da área pública”, avalia.
Uma característica desse novo protagonismo cidadão é a preocupação com o longo prazo. Uma organização da sociedade civil especializada nessa perspectiva é a Agência Recife para Inovação Estratégica (Aries). “É do povo que emergem as prioridades, a alma do tipo de cidade que queremos ser. Só acertando a interpretação dessa vontade que vamos conseguir um projeto de longo prazo que represente de verdade o recifense”, declara Guilherme Cavalcanti, diretor da Aries.
“A cidade precisa ser tratada como o complexo e estratégico sistema que é, caso contrário, sofreremos as consequências de soluções pontuais desconectadas, que formam um verdadeiro Frankenstein e não o lugar que merecemos. Precisamos partir de uma visão macro, que responda à pergunta “qual é a cidade de que precisamos?”, afirma Roberto Montezuma, presidente do CAU-PE.
(Reportagem do jornalista Rafael Dantas – rafael@revistaalgomais.com.br)
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