100 anos de Abelardo da Hora: o artista da beleza e da denúncia social – Revista Algomais – a revista de Pernambuco

100 anos de Abelardo da Hora: o artista da beleza e da denúncia social

Com obras espalhadas pelas ruas e praças do Recife, Abelardo da Hora é lembrado no seu centenário por suas criações, que revelam flagelos como a fome, mas também a beleza feminina. No seu legado, está ainda a generosidade em formar novos talentos e levar a arte para o povo.

*Por Rafael Dantas

Esculturas, gravuras, cerâmicas, tapeçarias e até brinquedos são algumas das tipologias da arte por onde as mãos do artista Abelardo da Hora deixou sua marca. A obra imensa está distribuída por muitas praças, ruas e galerias – não apenas da capital pernambucana. Peças que, neste ano do centenário do seu criador, merecem um novo olhar dos recifenses e de quem visita a cidade. A criatividade e a habilidade desenvolvida como autodidata – embora tenha estudado na Escola de Belas Artes do Recife – estiveram a serviço de muitas missões, mas as principais foram a denúncia contra a desigualdade social e as suas paixões pelas mulheres e pela cultura local.

Um dos grandes diferenciais das obras de Abelardo da Hora é o fato de muitas delas estarem nas ruas. Os Monumentos ao Frevo, na Rua da Aurora, o Maracatu, ao lado do Forte das Cinco Pontas, e os Retirantes, no Parque Dona Lindu, são apenas algumas das tantas que embelezam a cidade. Além das esculturas, o artista deixou muitos painéis em cerâmica espalhados pelo Estado. Eles estão, por exemplo, nas fachadas dos centros de saúde construídos durante o Governo de Eduardo Campos, como nos hospitais Miguel Arraes, Dom Helder Câmara e Pelópidas da Silveira.

“A fome e o brado” foi uma das obras que esteve na primeira exposição de Abelardo da Hora

Mesmo aos estudiosos e apreciadores da sua arte, não é fácil escolher as principais obras, muitas delas doadas para a cidade. Todas elas com mensagens que respondiam às questões da humanidade nunca resolvidas ou às necessidades do seu tempo. Pouco conhecidos por sua assinatura, por exemplo, são os brinquedos do Parque Treze de Maio. Em uma época que os escorregos eram de madeira e que se registrou a colocação de giletes para machucar as crianças, Abelardo desenhou brinquedos de concretos para garantir a segurança dos pequeninos.

“Ele foi um dos precursores do Modernismo no Brasil com sua escultura. Foi responsável por movimentos culturais de maior destaque do nosso Estado e participante dos mais relevantes do nosso País, como a Sociedade de Arte Moderna, o Ateliê Coletivo e o Movimento de Cultura Popular. Há quem diga que também é um precursor do Manguebeat, com sua Coleção Meninos do Recife, que ilustrou a edição Europeia de Geografia da Fome, de Josué de Castro”, destacou Lenora da Hora, filha do artista e presidente do Instituto Abelardo da Hora.

Obra da coleção Meninos do Recife

A inovação, uma das marcas de sua vasta trajetória, foi mencionada em uma declaração que Abelardo fez ao Diario de Pernambuco em março de 1948, pouco antes da sua primeira exposição. “Sou o primeiro escultor pernambucano a fazer, ultimamente, uma exposição no Recife. Além dessa nota inédita, creio revestir-se a exposição de um cunho renovador para a escultura no Brasil. (…) É bastante atual. Os temas das minhas esculturas são na sua maioria o retrato deste após-Guerra.” Uma das obras icônicas dessa exposição inaugural é A Fome e o Brado.

INFLUÊNCIA NA CIDADE E NA CLASSE ARTÍSTICA

Uma das grandes contribuições do artista para a cultura pernambucana foi nas políticas públicas. Além de ter ocupado cargos do alto escalão da gestão municipal em diferentes momentos, Abelardo foi idealizador da lei municipal que estabelece a obrigatoriedade das obras de arte nas edificações. O marco legal previa que as construções na capital pernambucana, a partir de mil metros quadrados, deveriam destinar 1% do valor bruto da construção para instalação de uma obra de arte. A peça deveria estar em sua fachada.

Nos últimos anos de sua vida, Abelardo reclamou que a lei não funcionava a contento pois muitos arquitetos estavam a simplesmente reproduzir formas geométricas e chamar de escultura. Ele defendeu em entrevista ao Diario de Pernambuco, em 2013, que deveriam ser criados critérios para aprovar as obras.

Independentemente das críticas à aplicação mais recente dessa legislação, a sua instituição, há mais de 80 anos, tornou o Recife uma galeria de esculturas a céu aberto. Essa obrigatoriedade abriu mercado para muitos artistas na cidade. “Tinha um sentimento de democratizar a cultura e a arte, como o fez ao criar nos anos 1960 as Praças de Cultura. Seu interesse era levá-las para a rua, para que não ficassem elitizadas, apenas, nos recintos fechados das galerias e dos museus, para que todos tivessem acesso. A lei serviu de inspiração para outras cidades brasileiras e até para fora do Brasil”, disse Lenora.

A escultura Cantadores Violeiros, de Abelardo da Hora, está localizada no Parque Treze de Maio, onde também o artista desenhou os brinquedos.

Sua preocupação de levar a arte para a cidade – e também de garantir trabalho para a classe artística local – está apontada desde o início da sua carreira. Em 1948, ele apresentou na sua exposição inicial, além das esculturas, maquetes para túmulos e mausoléus. Na ocasião recomendou aos pernambucanos que procurassem artistas locais para fazer essas obras fúnebres. “Gostaria que todos os pernambucanos que mandam fazer túmulos e mausoléus no Rio e em São Paulo soubessem que essas obras são executadas quase sempre por nortistas que residem no sul. E toda essa gente bem que podia mandar fazer estas obras por artistas de sua província. Assim ajudariam os pobres escultores a viver na sua terra, trabalhando e estudando. E garanto que ninguém seria explorado ou roubado.”

No campo educacional, alguns dos mais destacados nomes das artes plásticas de Pernambuco foram alunos de Abelardo da Hora. Gilvan Samico, Aluísio Magalhães, José Cláudio e Francisco Brenannd foram alguns dos integrantes desse time. “Ele foi mestre de uma geração de artistas pernambucanos que se destacou em todo o Brasil. Tinha interesse em fundar uma faculdade de arte, para ensinar muitos jovens, nos mesmos moldes da que já tinha sido criada anteriormente e desmontada pela ditadura”, contou Lenora da Hora.

Além dos nomes mais conhecidos que passaram por seus ensinamentos, o artista foi um promotor de muitas oportunidades de formação artística na cidade, como docente, em vários lugares até como voluntário. Apesar de ter vivido praticamente toda a vida da venda da sua arte, intercalando com seus períodos na gestão pública, Abelardo tinha o compartilhamento da sua experiência artística como um propósito. “Ele teve dois momentos na vida, tanto na prefeitura como secretário, quanto quando era ainda do Ateliê Coletivo da Sociedade de Arte Moderna do Recife: dava aula para os artistas locais gratuitamente. Meu avô deu aula de graça para o Estado porque ele dizia que ensinar arte era a missão dele”, afirmou o neto Rodrigo Duguay, que é professor da Unicap.

ABELARDO DE TODAS AS HORAS

Um dos amigos e vizinhos de Abelardo da Hora era o também artista Paulo Bruscky. A expressão “Abelardo de todas as horas” foi criada por Bruscky no ano de 1988. Era uma forma de expressar a dimensão e a disponibilidade para apoiar o desenvolvimento da cultura. “Sempre o admirei muito. A minha obra é muito diferente da produzida por Abelardo, mas a inspiração é na temática social. Ele sempre foi alguém que apoiou em tudo a cultura e os artistas locais”, destacou Paulo Bruscky.

Além das temáticas sociais, que tanto o marcaram, as obras que representavam as figuras femininas são algumas das mais conhecidas do seu acervo. Vários especialistas e admiradores da sua criação lembram que duas das esculturas mais icônicas é A Mulher Reclinada e Mulher Reclinada Ajeitando o Cabelo, que ficam no Shopping Center Recife. “Ele apreciava muito as mulheres e era um mulherengo. Era por essa paixão que ele produziu tantas peças do nu feminino”, afirma Bruscky.

Além das temáticas sociais, as obras que representavam as figuras femininas são algumas das mais conhecidas do seu acervo. Vários especialistas e admiradores da sua obra lembram a série de esculturas A mulher reclinada.

Um destaque temático de Abelardo foi a ampla homenagem às expressões culturais pernambucanas. Se hoje é moda incluir elementos do maracatu ou do frevo em obras de arte, ele foi um dos pioneiros a reverenciar todas as formas de arte locais. Por toda contribuição à cultura pernambucana, Bruscky é um dos defensores de que o Recife tenha um memorial que reverencie a trajetória de Abelardo.

Além da extensão temática e de tipologias, o volume da obra deixada por Abelardo da Hora é fruto não apenas da inspiração, mas da transpiração. O relato dos familiares é que ele dedicava muitas horas ao ateliê. Parava para o cafezinho. Logo após o intervalo, voltava à esculpir, aos desenhos ou mesmo à tapeçaria.

INTENSA VIDA POLÍTICA

Abelardo da Hora foi preso algumas dezenas de vezes. Ex-militante e dirigente do PCB (Partido Comunista Brasileiro), ele afirmou na Comissão Estadual da Memória e Verdade ter sido encarcerado em mais de 70 ocasiões. Tendo vivido sob a Ditadura Vargas e, principalmente, sob a Ditadura Civil-Militar que se instaurou em 1964. Em 1964, o artista foi um dos signatários do Manifesto dos Intelectuais, que prestava solidariedade ao então governador Miguel Arraes, deposto pelos ditadores. Em julho de 1964, um relatório da Secretaria de Segurança de Pública de Pernambuco afirma que sendo Abelardo notoriamente comunista e de “convicções e atividades tão extremadamente contrárias ao Regime Democrático (à Ditadura Militar) o tornavam sem sombra de dúvida, um dos principais (…) a ser executado pelas Forças Vitoriosas”.

Apesar da sentença, o artista só não foi morto por uma peculiaridade familiar: ele era cunhado do vice-prefeito Augusto Lucena, que assumiria a Prefeitura do Recife em 1964, com a deposição de Pelópidas da Silveira. Apesar de visões políticas opostas, Lucena e Abelardo tinham uma grande amizade. “Augusto Lucena era meu tio avô. Era de uma família muito tradicional, que algumas gerações acima chegava ao Barão de Lucena. Mas ele coloca como condição ao assumir a prefeitura que não acontecesse nada com Abelardo. A gente deve a vida dele a essa ação do meu tio avô durante a ditadura, pois ele seria morto. Ele era um artista que estava marcado para morrer”, afirmou Rodrigo Duguay.

Sua posição crítica em relação à política permaneceu até os seus últimos meses de vida. O neto lembra que em 2014, ano da morte de Abelardo aos 90 anos, ele era um crítico ferrenho do ex-juiz da Lava Jato Sérgio Moro. Muito antes de chegarem ao grande público o áudios da Vaza Jato, publicadas pelo The Intercept, e de toda a operação cair. “Ele me disse: pode escrever que esse juiz foi treinado pelos yankees e isso é porque estamos muito bem no mundo”.

Rodrigo destaca que seu avô era muito firme no que acreditava politicamente. A sua grande crítica ao sistema capitalista era a reprodução das diferenças sociais. “Ele dizia que o capitalismo não produz igualdade. Ele criticava o fato de o Brasil ser um País tão rico, com tantas crianças passando fome. E que Pernambuco, com tanta cultura, não tirava proveito dessa arte, nem distribuía de forma equânime essa riqueza”.

LEGADO E SONHOS PARA A POSTERIDADE

Neste ano do centenário do artista, vários eventos estão sendo apoiados ou promovidos pelo Instituto Abelardo da Hora. O próximo, acontecerá nos dias 5 e 6 de novembro, será o Seminário Corpos e Pedras: Artes, Política e Cidades. O encontro realizado pelo Ministério da Cultura, Centro de Integração Social e Cultural José Cantarelli e pela REC Cultural, em parceria com a família de Abelardo da Hora, o Mepe (Museu do Estado de Pernambuco) e a UFAPE (Universidade Federal do Agreste de Pernambuco), será no Mepe, e se propõe a revisitar vida, obra e legado do pernambucano que é um dos mais importantes artistas plásticos modernos do País.

Torre de Iluminação Cinética que ficava no bairro da Torre, destruída pela Ditadura em 1964.

Nos últimos anos antes de falecer, o artista revelava ter três sonhos, segundo a neta Clara da Hora. Um deles era refazer a obra Torre de Iluminação Cinética, que ficava na Praça da Torre. “Essa obra tinha 18 metros de altura e era movimentada pelos ventos. Era a primeira obra cinética do Brasil, mas foi destruída pela Ditadura em 1964.” A obra, que era vista como subversiva pelos militares, tem projeto para ser reconstruída. Há alguns anos esse projeto está no papel.

O segundo sonho era preservar a sua casa, na Rua do Sossego, como um museu. Lá estão as maquetes, formas e o mobiliário que ele utilizava. “Estamos retomando esse sonho. É o local onde ele viveu a vida inteira. Por intermédio do instituto pretendemos fazer deste lugar um equipamento cultural para ministrar cursos e oficinas, artes visuais e outras linguagens”.

É importante lembrar que uma parcela importante da obra do artista está em João Pessoa, no Memorial Abelardo da Hora (MAH), localizado no Espaço Cultural José Lins do Rego. “O Estado da Paraíba promoveu uma situação privilegiada para acolher o acervo. Fizeram tudo para acolher as obras, com muita divulgação, proteção e em um espaço permanente. É um espaço privilegiado à cultura”, disse Lenora da Hora. Há uma expectativa também pela instalação de um espaço na capital pernambucana.

Clara da Hora afirma que o terceiro sonho do artista era acabar com a miséria e a desigualdade. “Esse sonho é o mais difícil. Não conseguimos ajudar tanto, mas por meio da arte é possível minimizar esses problemas, levando esperança e oportunidades”.

Em um artigo científico publicado há 10 anos, o historiador José Bezerra de Brito Neto defendeu que “A trajetória de vida de Abelardo da Hora necessita ser estilhaçada e seus dados melhor analisados pela historiografia, cruzando fontes e métodos em busca de uma tentativa de dar conta das suas múltiplas ações. Sua carreira política se entrecruza com a profissão de escultor e gera um artista plástico, ora político, ora operário, ora artista, ora trabalhador”.

As diversas linguagens, a capacidade de inovação e a multiplicidade de temas tornam Abelardo da Hora um gigante. Mas um ícone que precisa ter o reconhecimento da sua obra no Estado e muito além das nossas fronteiras, como vários outros ilustres pernambucanos. Um artista que por vários caminhos era um homem muito à frente do seu tempo. Um privilégio para os recifenses.

*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais e assina as colunas Pernambuco Antigamente e Gente & Negócios (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)

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