As Jornadas de Junho de 2013 completaram uma década. Em apenas 10 anos o País assistiu duas eleições presidenciais vencidas por margens muito pequenas em 2014 e 2022, o impeachmente de Dilma Rousseff, o surgimento e a derrocada da Operação Lava Jato e a ascenção e queda do Bolsonarismo. Além desses episódios que costuraram a vida política do País, a sociedade ficou rachada no processo de polarização, que travou o debate público. Para analisar esse cenário e as relações entre as manifestações de 2013 e os acontecimentos posteriores no País, ouvimos Túlio Velho Barreto, que é cientista político e pesquisador da Fundaj, onde atualmente ocupa o cargo de diretor de Memória, Educação, Cultura e Arte.
Dez anos após as Jornadas de Junho de 2013, que foram bem difíceis de entender na época, o que poderíamos apontar como as motivações daquele movimento tão diverso, que teve repercussões importantes na política do País?
Não podemos esquecer que tudo começou, mais explicitamente, como protestos contra o aumento de passagens de ônibus urbanos, processo que desaguou na luta pela gratuidade desse serviço e pela melhoria na qualidade do atendimento de diversos serviços públicos. Isso às vésperas da Copa das Confederações, que se realizaria naquele ano, e mesmo da Copa do Mundo, que ocorreu no ano seguinte. Ou seja, um momento em que o governo canaliza muitos recursos públicos para eventos privados organizados por uma entidade estrangeira, a FIFA, que já enfrentava uma crise interna após inúmeras denúncias de corrupção. Como a pauta foi se ampliando e os protestos iniciais começaram a ganhar muito espaço nas mídias, no país e no exterior, as pautas passaram a ser bastante heterogêneas, por um lado, e os partidos políticos passaram a perder centralidade para novas organizações, muitas delas surgidas a partir das redes sociais. É importante ressaltar ainda que a esquerda e o centro-esquerda estavam no poder desde 2003 e tinham perdido muito de sua capacidade de mobilizar a militância social e política. De certa forma, as ruas, que desde as lutas contra a ditadura civil-militar que se estabeleceu a partir de abril de 1964, eram ocupadas por aqueles segmentos mais à esquerda, passaram a ser, então, espaços de disputa. As direitas perceberam isso e se organizaram para disputá-las e ocupá-las. Tal fato surpreendeu a muitos, sobretudo os militantes mais à esquerda acostumados a recorrer, praticamente sozinhos, às ruas em momentos de protestos e de lutas. Com isso, criou-se condições para que as direitas, incluindo a extrema-direita, ganhassem mais visibilidade e organicidade. E surgisse uma polarização até então “adormecida”, pelo menos desde o fim da ditadura em 1985.
Quais os legados e repercussões para o Brasil e para Pernambuco após as Jornadas de 2013? A eclosão daquele movimento contribuiu para a ascensão do Bolsonarismo e para a polarização política no País?
Essas duas questões estão absolutamente relacionadas, senão mesmo imbricadas. Como considero que as direitas passaram a perceber que as ruas eram espaços de disputa, que não eram mais, vamos dizer, quase um monopólio das esquerdas, isso contribuiu decisivamente para que estas ganhassem, como disse, visibilidade e organicidade. O que ocorreu no momento mais crítico do ponto de vista econômico, o pior desde o início do ciclo de crescimento vivenciado nos governos Lula. O primeiro governo Dilma Rousseff já sofreu o impacto do fim desse ciclo, e as Jornadas de Junho ocorrem aí, o que facilitou a ação organizadas dos partidos de oposição, de perfil mais conservador e alguns mesmo reacionário, junto às organizações que haviam contribuído para mobilizar vastos segmentos por meio das redes sociais. O comportamento dos partidos derrotados em 2014, quando Dilma Rousseff foi reeleita, principalmente do PSDB e de seu candidato, que contestaram o resultado das urnas, foi um passo a mais no sentido do que já vinha se desenhando desde as Jornadas de 2013. Então, a polarização que ainda não tinha ganho tanto corpo naquele ano foi crescendo até desembocar no que viria ocorrer em 2016. De fato, não demorou e veio o golpe jurídico-parlamentar que afastou a presidenta do cargo, fato que criou, definitivamente, as condições para o crescimento da extrema-direita e ascensão de um representante seu ao poder, ainda que por meio de uma eleição. Mas, ressalte-se, eleição realizada sob suspeita de uso irregular das redes sociais e após o candidato favorito ser retirado da disputa em processos irregulares, como revelado nos últimos anos. Costumo afirmar que, em 2016, apenas se abriu a Caixa de Pandora liberando os monstros que levaram à situação terrível, que passamos a viver a partir de 2018 até há pouco, com uma política genocida em meio a maior pandemia que a humanidade já vivenciou. Mas, a verdade é que o “ovo da serpente” já havia sido parido e estava sendo chocado.
Qual a relação que podemos traçar daquele momento com a disseminação das redes sociais e o atual debate da regulamentação das plataformas digitais no País?
Sim, de certa forma os acontecimentos iniciados em 2013 serviram de laboratório para o que viria ocorrer em 2014, mas sobretudo em 2018, com o uso intensivo e irregular que se fez das redes sociais para eleger o candidato da extrema-direita. Sabe-se que houve transferência não apenas de tecnologias, mas igualmente de pessoal, usadas para eleger Donald Trump nos Estados Unidos, para o Brasil. E assim fomentar a campanha dos representantes locais da extrema-direita na eleição de 2018, no caso, os dois militares oriundos do Exército, Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão. Desde então esse tema da regulamentação passou a integrar a agenda de discussões acerca do uso das novas tecnologias, em particular das redes sociais. A própria formação do que se convencionou chamar de Gabinete do Ódio, organização informal que atuou no interior do governo Bolsonaro-Mourão, com participação de, pelo menos, um de seus filhos, alertou, por exemplo, a Suprema Corte para a necessidade de investigar o seu modus operandi, bem como tem mobilizado os democratas e as pessoas republicanas para tal fato. Lembre-se que a investigação do uso intensivo de fakes news recai sobre essa organização por iniciativa do STF. Por outro lado, ou noutra perspectiva, é evidente que as novas tecnologias e as redes sociais serviram para intensificar a comunicação entre as pessoas, que vivem próximas ou distantes, e mesmo a democratizar a produção e a disseminação de conteúdos. Portanto, a sua existência não é o mal em si, mas, sim, o uso que se faz delas. Daí resulta a necessidade de se enfrentar esse debate acerca da sua regulamentação, e não do cerceamento do seu uso.
Em Pernambuco, especificamente, haveria algum comentário sobre os efeitos das Jornadas de 2013 no nosso cenário social e político?
Não considero que tenha havido ou haja uma especificidade que marque esse processo, sobre o qual falamos, em Pernambuco. Penso que, aqui, no estado, se reproduziu o quadro nacional. No entanto, reconheço que isso ocorreu apenas em menor escala, com menos intensidade e danos, por assim dizer. Por exemplo, não surgiu, pelo menos por enquanto, uma liderança do tipo Jair Bolsonaro para liderar as direitas locais. O modus operandi do fascismo, e mesmo a condução genocida em tempo de crise sanitária, adotado e praticado pelo governo Bolsonaro-Mourão, não têm se reproduzido da mesma forma em Pernambuco. O que tem prevalecido, no meu entendimento, é a defesa e ofensiva da pauta fundamentalista e reacionária do ponto de vista dos costumes, por exemplo. Contudo, é inegável que a polarização nacional se reproduziu no estado desde as Jornadas de Junho de 2013 e foi se ampliando ao longo do processo, aqui já referido, o que levou, igualmente no nível local, o empoderamento de lideranças e militâncias que flertam com o ideário e a forma de fazer política da extrema-direita, pelo menos em relação a aspectos culturais e de costumes, incluindo as questões religiosas..