25 anos depois: qual a herança da cena mangue?

*Por Rafael Dantas

Modernizar o passado / É uma evolução musical / Cadê as notas que estavam aqui? / Não preciso delas! / Basta deixar tudo soando bem aos ouvidos / O medo dá origem ao mal / O homem coletivo sente a necessidade de lutar / O orgulho, a arrogância, a glória / Enche a imaginação de domínio / São demônios os que destroem o poder / Bravio da humanidade. O monólogo provocativo de Chico Science dava início ao álbum da Nação Zumbi Da Lama ao Caos. No mesmo ano, o Mundo Livre S/A lançava também seu primeiro disco Samba Esquema Noise. Era o som dos “caranguejos com cérebro” tirando do mangue a diversidade cultural que caracterizou o movimento musical, que se espraiou para o cinema e até para a relação dos recifenses com a cidade. Um quarto de século depois, perguntamos a protagonistas, mangueboys e especialistas: o manguebeat morreu ou se metamorfoseou?

Hugo Montarroyos, 44 anos, não tinha nem 20 quando o mix de sons do manguebeat explodiu. Ele era fã do primeiro momento, quando os shows de Chico Science e Nação Zumbi e do Mundo Livre S/A juntavam pouco mais de 100 pessoas. “A banda e o público se misturavam. Eles terminavam de tocar e desciam para tomar umas cervejas com a gente. Sou de uma geração privilegiada que viveu aquele momento”.
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Montarroyos era frequentador dos shows de Chico Science e das bandas. Graças a essa influência, escreveu um livro sobre Devotos e tornou-se jornalista cultural.

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Frequentador do Circo Maluco Beleza, da Soparia e de outros espaços onde as bandas tocavam, Montarroyos se envolveu muito com aquela cena. “O Recife era um deserto cultural nos anos 80 e 90, principalmente para quem gosta de rock. A cultura forte de raiz estava restrita às periferias. A classe média não tinha se apropriado do maracatu. Até que as pessoas começaram a formar muitas bandas, como Chico Science. Aquilo tomou uma dimensão que ninguém imaginaria”. O mangueboy, anos depois, escreveu um livro sobre a banda Devotos e se tornou jornalista cultural. Tudo isso influenciado pelo movimento.

As reuniões, shows e sensações que fervilhavam no final dos anos 80 e início dos 90 permanecem vivos na memória do jornalista e DJ Renato L. Autor do manifesto do movimento, junto com Fred Zero Quatro, ele conta que a metáfora do mangue foi apresentada por Chico Science numa mesa do Cantinho das Graças, um reduto de boêmios. “Nunca perguntamos a ele porque resolveu batizar de mangue. Mas ele chegou no bar dizendo que tinha usado alfaia, como se fosse o bumbo do hip hop, e feito outras inovações na música. E que iria chamar esse novo beat (batida, ritmo) de mangue”, conta.

O grupo de apaixonados por música, que se encontravam com frequência, concluiu que a inovação não poderia ser só um beat. Veio a sugestão para que se tornasse uma cena. “Na mesma noite, numa espécie de fluxo de criatividade, veio a expressão caranguejos com cérebro e as metáforas básicas do manguebeat como: queremos criar um ecossistema cultural tão rico e diversificado quanto o mangue é em biodiversidade”, lembrou Renato, que anos depois veio a ser secretário de Cultura do Recife.

Renato L: “O manguebeat mudou profundamente a visibilidade da cultura pernambucana, valorizou as manifestações da periferia e da cultura popular”.

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Inspirado na obra de Josué de Castro, o movimento falava do homem-caranguejo que vive as contradições sociais da cidade do Recife e a busca por transformá-lo em “caranguejo com cérebro”. Na metáfora da antena parabólica fincada na lama, fez a fusão de ritmos regionais com influências da música global e colocou o Recife em destaque até fora do País. “Há muitos anos não havia uma inovação no cenário brasileiro musical. O manguebeat foi uma coisa que em Pernambuco mexeu praticamente com todos os setores da cultura, como literatura, cinema, artes plásticas. E ecoou fora do Estado e até do Brasil”, analisa o jornalista e crítico musical José Teles. Contraditoriamente, o lugar em que ele tinha mais resistência, segundo Teles, era o Recife. “Não se tocava o manguebeat nas rádios, às vezes era motivo de chacota. Mas chegou logo no exterior. No primeiro disco, chegou em Nova Iorque e na Europa”, relembra.

A vocação para inovação é algo que transcende o manguebeat na avaliação do vocalista da banda Mundo Livre S/A, Fred Zero Quatro. “Pernambuco tem uma vocação para o inusitado, para o original, o ousado, o vanguardista. Quando a gente começou a ter visibilidade nacional e ganhar prêmios, muita gente nos perguntava: o que é que tem na água do Recife?”.
O interesse por saber o que inspirava os músicos recifenses tinha uma razão. Logo após os “caranguejos com cérebro” saírem do mangue e se conectarem com o mundo, uma leva de novas bandas e de antigos nomes da cultura pernambucana começaram a gravar e exportar os ritmos, batuques e composições locais.

“Na sequência dos nossos primeiros discos, teve gravadora de São Paulo que só contratava artista de Pernambuco. Veio um monte de gente como Devotos e Jorge Cabeleira. Todo mundo se espantou”, lembra Zero Quatro. A água do mangue recifense que contaminou a música do manguebeat tem uma história que passa por personagens como Manuel Bandeira, Cícero Dias, João Cabral de Melo Neto, entre outros tantos nomes de destaque da cultura nacional segundo o músico.

Rapidamente, o som do mangue desperta o cinema pernambucano. O clássico longa-metragem da retomada Baile Perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, tem trilha sonora do manguebeat. Em entrevista à Algomais, em 2016, DJ Dolores afirmou que o movimento contribuiu para os cineastas locais descobrirem a capital pernambucana. “Um filme muito próximo do manguebeat foi Amarelo Manga, que trouxe a visão do Centro do Recife, que estava ausente na cinematografia do Estado, ainda muito influenciada por aquela coisa do Cinema Novo. Acho que esse discurso urbano atravessou os anos e, com certeza, interferiu na cinematografia das pessoas que estão realizando filmes atualmente”.

A estética do mangue promove ainda a valorização do trabalho do design made in PE, segundo Renato L, Teles e Zero Quatro. Prova disso são as capas dos álbuns pioneiros, que eram produtos conectados com o efervescente momento cultural do Recife. As bandas brigaram com as gravadoras para garantir que as ilustrações que iriam representar seus primeiros CDs fossem feitas no berço do movimento. Da Lama ao Caos, por exemplo, teve assinatura de Dolores e Morales, pseudônimos de Helder Aragão (o DJ Dolores) e Hilton Lacerda, cineasta que dirigiu o filme Tatuagem e foi roteirista de Baile Perfumado, Amarelo Manga e Árido Movie. Segundo Renato L, nem as bandas consagradas no cenário nacional tinham costume de “apitar” sobre a arte da capa. Mais uma inovação do mangue.

A ascensão acelerada dos principais expoentes do movimento sofreu um golpe doloroso com a morte de Chico Science em 1997. “Foi terrível. Todos falam do ícone em que ele se tornou. Mas nós não tínhamos essa relação. Éramos amigos, se acostumar sem o cara do lado, sem trocar uma ideia, foi difícil”, relata Dengue, baixista da Nação Zumbi.

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Chico Science teve uma morte trágica em 1997, num momento de crescimento acelerado do movimento do manguebeat.

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A morte repentina de Chico Science colocou em dúvida o futuro daquele movimento para parte da crítica. Dengue conta que muitos “mataram a banda”, ao se referirem à provável descontinuidade da Nação Zumbi. Mas, ele afirma que os músicos nunca pensaram em parar. “O impacto para nós foi imenso. Mas a certeza é que só tínhamos isso para fazer. Jamais pensamos em parar”.

Mas o que aconteceu com o movimento após a morte do seu principal expoente? “Foi um choque. Morreu o cara que era a grande estrela da história, mas não acabou. Hoje o Recife ainda tem bandas que nem eu conheço. Ele desencadeou uma coisa sem volta. Talvez não na mesma proporção ou no mesmo interesse da imprensa nacional, mas o que existe hoje vem do manguebeat”, avalia Teles. “Ele criou possibilidades e mostrou ser possível fazer músicas aqui sem recorrer às gravadoras do Rio e de São Paulo. Fez com que o pessoal acreditasse nas bandas daqui e mostrou ser viável fazer música de qualidade no Recife, como foram nos anos 60 e 70”.

A marca de criatividade e diversidade da música pernambucana e a própria abertura de um campo mais profissional do setor são alguns dos legados apontados por Renato L. “O manguebeat mudou profundamente a visibilidade da cultura pernambucana, valorizou as manifestações da periferia e da cultura popular. Criou praticamente do zero uma nova categoria produtiva que envolve produtores, fotógrafos. Mostrou como lidar de forma criativa com a tecnologia, usando poucos recursos, porque ali ninguém era rico”, afirma.

O dono da Passadisco, Fábio Cabral, afirma que o mercado em torno da música regional só é possível no Recife devido à existência do movimento. “Uma loja como a nossa, dedicada à produção de Pernambuco, não existiria se não houvesse o manguebeat. Ainda hoje existe procura pelos primeiros discos do movimento, que valorizou muito a música pernambucana”.
Fábio conta que a ideia de criar um espaço especializado em músicas do Estado veio numa coletiva de imprensa do lançamento de um CD local em que uma jornalista provocou: O Recife precisa de uma loja especializada no som produzido na terra. Ele pegou aquele insight e empreendeu. “A cidade poderia tirar mais proveito do manguebeat”, sugeriu, citando a possibilidade de incentivar o turismo ligado à música pernambucana.

Quando perguntamos sobre o futuro do manguebeat, Teles fez uma ressalva: “Não é uma questão de futuro. O manguebeat como a gente conhecia acabou. Hoje existe movimentação de uma grande cena pernambucana, diferente daquela, já sem aqueles conceitos de Chico Science. Quando falamos em futuro é da música pernambucana”. Ele compara o fenômeno com o que aconteceu com o tropicalismo, lançado por artistas como Caetano e Gil, nos anos 60. “Aquele foi um movimento que durou um ano e deixou frutos até hoje, o mesmo poderíamos dizer do manguebeat. Não se tratar de perpetuar aquele momento”, avalia.

Fred Zero Quatro considera que o maior legado do movimento sequer é musical. “Para mim está relacionado à autoestima. Quando surgimos, conseguir um espaço para o Mundo Livre S/A tocar era uma dificuldade. Enquanto qualquer bandinha do Rio ou São Paulo fazia shows aqui. Ajudamos a construir um público que tem uma postura completamente diferente, que valoriza a riqueza contida na diversidade e no multiculturalismo pernambucano”.

*Por Rafael Dantas, repórter da Revista Algomais (rafael@algomais.com)

 

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