Assisti, pela segunda vez, ao filme “Mar Adentro”, com Javier Barden no papel principal. O filme é sensacional. Baseado em fatos reais, Ramón Sampedro fica tetraplégico depois que bate com a cabeça na areia, ao dar um mergulho no mar. Deitado numa cama, sem qualquer movimento, por cerca de vinte e oito anos, Ramón resolve contratar uma advogada para suplicar ao Estado o direito de morrer. Perseguiu, desesperadamente, uma autorização judicial para tirar sua própria vida, argumentando que viver daquela maneira já seria estar morto, dia após dia.
A justiça espanhola rejeitou o seu pleito. Mas num ato de rebeldia e, contando com ajuda de amigos, conseguiu tomar uma substância letal para, enfim, literalmente, “partir desta para uma melhor”, realizando seu desejo de morrer.
Paralelamente, li, na última semana, o livro “Pulmão de Aço” de Eliana Zagui. A autora narra a sua própria trajetória de vida. Chegou ao Hospital das Clínicas de São Paulo aos dois anos de idade com poliomielite. Paralisia do pescoço aos pés e quase incapaz de respirar. Todos aguardavam a sua morte, em razão do grave quadro apresentado. Mas quarenta anos após, Eliana ainda vive na UTI do Instituto de Ortopedia e Traumatologia daquele hospital. Aprendeu a ler e escrever, concluiu o ensino médio, estudou idiomas. Escreve, pinta, usa celular e notebook utilizando, pasmem, a boca. Conhece o mundo pela internet, televisão e através das raras saídas do Hospital. Chegou a estudar formas de tirar sua própria vida. Porém, diferentemente de Ramón, desistiu desses pensamentos. Diz ela no livro: “Há tanta coisa que ainda não realizei. Sonhos, passeios, trabalhos. Isso me motiva.” Para explicar a escolha de Eliana, suas palavras bastam.
Para tentar compreender a escolha de Ramón, tomo as palavras de Rubem Alves: “A vida humana, como fato biológico, não é o valor supremo. Todas as religiões reconhecem que, acima do valor da vida, está o valor do amor. Por causa do amor, até a vida pode ser sacrificada. As coisas que nos dão razões para morrer são as mesmas coisas que nos dão razão para viver”.
Amo a vida! Quero morrer quando estiver velhinho, arrastando as sandálias. Mas entendo perfeitamente as escolhas de Ramón e Eliana. Aparentemente antagônicas, contudo, iguais. Um escolheu morrer e a outra escolheu viver. O que há de comum nesses caminhos? Ambos vão em busca do prazer. Pode haver prazer em morrer? Claro! O extermínio do sofrimento é o encontro com o prazer do não mais sofrer. Não vale a pena uma vida condenada ao sofrimento eterno. Eliana encontrou motivos para seguir em frente porque encontrou o prazer dos desafios. Ramón, sem desafios, encontrou razões para se despedir.
A natureza humana fascina, com sua inexplicável e infinita complexidade. Nem o avanço tecnológico será capaz de alcançar a mais profunda intimidade dos pensamentos de uma pessoa. Mas uma coisa é certa: a vida que vale a pena ser vivida é a vida com prazer, desafios e dignidade. É para isso que estamos aqui, senhoras e senhores. Como diria Millôr Fernandes, “O pior não é morrer. É não poder espantar as moscas”.