“Eu me sinto privilegiada, abençoada e agradecida”. Essa frase está tatuada no braço direito de Jéssica Pacheco. Baiana de nascimento, ela é portadora da síndrome dos ossos de vidro, a osteogênese imperfeita. Seu deslocamento pelo Recife, onde mora há quatro anos, é um desafio diário na sua cadeira de rodas motorizada. Engajada na luta pelo espaço público acessível, ela conseguiu ingressar na graduação em arquitetura e urbanismo na UFPE. Em 2019, a universitária foi selecionada para executar uma pesquisa sobre as calçadas na capital pernambucana. A cidade não foi bem. Uma realidade que ela já conhecia na prática antes do estudo em campo.
Mesmo em meio às provações da mobilidade no Recife, o sentimento de gratidão de Jéssica tem uma razão. Natural do pequeno município de Várzea da Roça, a 300 quilômetros de Salvador, que tem menos de 15 mil habitantes, ela encontrou na capital pernambucana tratamento na AACD para poder literalmente dar os primeiros passos, com apoio de uma órtese. A instituição também doou a cadeira de rodas, que é o principal bem da universitária. “A cidade me deu oportunidades que eu não poderia alcançar no interior. Vim para turistar, depois para o tratamento. E decidi morar aqui, onde consegui fazer outras terapias e tratamentos”, comemora.
Ela afirma que, apesar de todas as barreiras, gosta de estar no ambiente público. “O único problema é que a rua nunca me deu o acesso que eu gostaria de ter”. As calçadas irregulares, comércios ambulantes no caminho, insuficiência de faixa de pedestres, dentre outros obstáculos não a paralisaram. Destemida, conseguiu passar na seleção justamente no curso de arquitetura e urbanismo. “Chegar ao quinto período é um grande passo. Não é um curso simples ou fácil. Mas é um desafio que me motiva a continuar”.
No final de 2018 ela teve a dica de um amigo de que estava aberto o processo de seleção para a aplicação de uma pesquisa do portal Mobilize Brasil sobre as calçadas. Mais uma vez foi selecionada. A pesquisa, realizada em 2019, deu ao Recife a nota de 5,92, ficando em 12º lugar entre as capitais brasileiras. Quatro eixos foram avaliados: conforto, acessibilidade, sinalização e segurança.
“Temos agora um leque de informações novas. Além das notas, registramos muitas fotos, comentários e detalhes que foram captados e que nos permitem realizar um trabalho para qualificar o espaço público. A média do Recife e a nacional são ruins. E o primeiro passo para melhorar a mobilidade é trazer um olhar mais dedicado para as calçadas. É a parte do nosso sistema de transporte mais importante”, avalia Jéssica.
A má condição dessa via para os pedestres é um desconvite para a população acessar os espaços públicos a pé, na opinião da universitária. Ela aponta que isso traz uma série de consequências para a população e para a própria vitalidade urbana da capital.
“Sem pessoas nas ruas, a cidade fica menos segura. Quando todos estão em transporte motorizado, há um impacto na saúde pública, tanto pelos acidentes de trânsito como pela falta de movimentação dos cidadãos. Se todos andássemos mais, teríamos uma vida mais saudável. Posso dizer que os cadeirantes que querem continuar vivendo e se deslocando pela cidade são verdadeiros heróis”, aponta.
A pesquisa da Mobilize avaliou 20 calçadas que estavam nas proximidades de prédios públicos ou em lugares de grande circulação de pedestres. A pior nota (3,23) ficou para a Av. Professor Antônio de Sá, na Várzea, vizinha à UFPE. No ranking das piores estão também o trecho entre a Rua Real da Torre e a Rua Castro Leão, na Madalena, na cercania na Escola de Formação de Professores Paulo Freire (3,60); e no trajeto entre a Rua do Esparadrapo e a Rua dos Coelhos, na Boa Vista, perto do Imip (4,13).
Apenas três lugares ficaram acima da média mínima aceitável do estudo, que era 8,0. Os melhores cases foram do calçadão da Av. Boa Viagem (8,97); da Av. Cais do Apolo, na altura do Forte do Brum e próxima à Prefeitura do Recife (8,60); e da Rua do Futuro, nas imediações do Parque da Jaqueira (8,23). A nota da Av. Boa Viagem, inclusive, a coloca como uma das vias que está no ranking das 10 melhores calçadas do Brasil.
Entre os critérios analisados na cidade do Recife, a falta de sinalização (que inclui mapas e placas) e a ausência de rampas de acessibilidade foram os pontos mais críticos. Esses dois itens tiveram notas respectivamente de 3,30 e 3,55.
Apesar dos desempenhos negativos, Jéssica pondera ainda que a média da cidade seria mais baixa se fossem avaliados mais trechos. Essa consideração é devido ao recorte da pesquisa, que observa muitos espaços que estão nas proximidades de prédios públicos, como instituições jurídicas, universidades e hospitais.
Na sua defesa por um desenho universal das calçadas - que é a acessibilidade para qualquer pessoa, sem barreiras, a todo tipo de serviço, produto e uso da cidade - Jéssica segue sua luta. Além do esforço diário de se deslocar no Recife, ela circula também discutindo os resultados da pesquisa e agregando novas pessoas na causa da mobilidade ativa.
*Por Rafael Dantas, repórter da Algomais (rafael@algomais.com)