Todos os dias, nos mesmos horários, João Câmara labuta no seu ateliê. Ele brinca dizendo que a rotina de expediente de trabalho é um hábito herdado do pai, funcionário público. Talvez isso explique o volume de sua produção tão grande quanto o tamanho dos painéis que caracterizam sua obra. Quadros, aliás, que podem ser apreciados e adquiridos no casarão nas Graças que pertenceu a José Antonio Gonsalves de Mello (autor do clássico No tempo dos Flamengos). Lá o artista recebeu a equipe da Algomais para uma conversa sobre suas influências artísticas, o mercado de arte e a paixão por textos “pedreiras”, como os de James Joyce.
Você nasceu na Paraíba e veio para o Recife. Conte um pouco dessa trajetória.
Nasci em João Pessoa, em 1944. Quando era menino ainda, nos mudamos para o Rio. Meu pai trabalhava nos Correios e foi transferido para lá. Passamos dois anos e meio no Rio, depois meu pai foi retransferido para o Recife, em 1957. Meu pai é pernambucano e minha mãe, paraibana. Estudei no Salesiano, Nóbrega e fiz Faculdade Católica para psicologia.
Por que o interesse pela psicologia?
Não sei. Ia fazer medicina, mas achava que requeria muita matemática. Terminei fazendo psicologia, mas nunca exerci porque nesse meio tempo eu também fazia curso livre de belas artes. A medicina escapou de mim (risos).
Essa inclinação pela artes plásticas veio desde a infância?
Eu desenhava um pouquinho melhor que os outros meninos, mas não exageradamente bem. No Salesiano havia um colega que desenhava bem direitinho e disse que ia fazer o curso na Escola de Belas Artes. Ele perguntou se eu não queria fazer também. Fui, sem muita pretensão. Fiz o exame para desenhar modelos de gesso e fiquei lá três anos. Como eu tinha outras atividades, não dava para cumprir os horários. Fiz algumas cadeiras: paisagem, natureza morta, figura e história da arte. Você faz arte por dois motivos: uma vocação irresistível (porque ninguém é obrigado a fazer isso), ou porque você quer se profissionalizar. Comecei a fazer pintura porque achava bonitinho e depois me profissionalizei. Minha única atividade é a de artista plástico.
Algum artista o influenciou?
Na época da Escola de Belas Artes convivi muito com Vicente do Rego Monteiro. Fui aluno dele durante pouco tempo na cadeira que ele regia de natureza morta. Mas Vicente viajava muito para a Europa. Com ele teve uma coisa muito boa: os alunos mais jovens levavam as obras para ele dar a sua opinião, era uma espécie de aula informal. Depois tive um bom professor que era Laerte Baldini, um iberoargentino. Conhecia muito a arte e com ele aprendi muita coisa de cultura. Minha formação foi mais ou menos essa. Então o que aprendi foi vendo, olhando, fazendo, experimentando, errando.
As pessoas ocupam um espaço privilegiado no seus quadros.
A única coisa que sei fazer é figura. Quando eu era estudante de Belas Artes a voga era a pintura abstrata por causa das bienais nos anos 60 e de artistas como Pollock. Todos nós, jovens da Escola de Belas Artes, queríamos ser mais modernos do que o que era ensinado lá. Uma vez peguei uma tela muito grande e gastei uma fortuna das minhas pobres tintas para fazer um quadro abstrato, que resultou num desastre (risos). O professor Baldini quando viu disse: “volta a fazer suas figuras porque você não é muito bom na arte abstrata”. O homem era sensato (risos).
Você é conhecido por suas séries de pinturas. Uma delas é Cenas da Vida Brasileira, em que você se inspira na Era Vargas. Por que Vargas?
A partir dos anos 70 comecei a trabalhar em conjuntos mais fechados que são séries. A mais volumosa foi a Cenas da Vida Brasileira, que começou em 1974 e concluí em 1976. São 10 painéis de pintura muito grandes que estão no Mamam e 100 litografias. Vargas porque, quando eu era menino, em 1954, estava no Rio quando ele se suicidou. Tenho uma lembrança infantil do acontecimento. É uma série com personagens e eventos políticos, tentei fazer uma espécie de rememoração da minha infância política.
Nessa época o País estava sob ditadura.
Ainda estava. Era 1974, mas estava em curva descendente, porque aí veio o Geisel e a abertura. Tive alguns problemas, com obras apreendidas, a exposição de Cenas da Vida Brasileira foi monitorada pelo Dops, foi filmada, fotografavam quem ia visitar. Essas coisas. Mas nada muito heroico, viu?
E a série Dez Casos de Amor?
Enquanto a série sobre Vargas é um discurso visual sobre o estado político e da rememoração, Dez Casos de Amor é uma espécie de teorema em quarto fechado, porque são temas amorosos, sobre a pintura tomada como uma relação amorosa. Depois passei 14 anos desenvolvendo uma série chamada As Duas Cidades, onde retratei o ambiente externo de novo, mas dessa vez, quase sem figuras. São paisagens, o ambiente, os emblemas das cidades de Olinda e Recife.
Como é a sua relação com as duas cidades?
Tive um ateliê em Olinda em 1965, depois, quando me casei em 1971 comprei uma casa lá. Depois fiz a reforma da casa que virou também um ateliê. Em seguida comprei outra que virou só residência. Esta casa (Casarão que pertenceu a Gonsalves de Mello) veio depois porque estava ficando muito incômodo mostrar minhas obras. Olinda é uma cidade que tem muito turismo. É um aborrecimento, as pessoas batem na porta pra ver os quadros. Transferi as obras para cá para poder ficar mais trancado dentro das minhas coisas.
Qual a importância da Oficina Guaianases de Gravura?
A experiência na Oficina Guaianases foi importante para nós – um grupo de artistas de diversas orientações estéticas – exercermos a administração e a gerência do trabalho coletivo, darmos perfil profissional e negocial à editora de gravura, trabalhar de forma cooperativa com impressores e colaboradores não artistas. (Conheça a história da oficina Guaianases no site da Algomais http://migre.me/vcrVH)
Você publicou livros e tem um texto interessante. Você gosta de literatura?
Eu me interesso mais por literatura do que por outras artes. A minha pintura me interesso muito, vivo disso. Mas do ponto de vista da atração cultural me interesso mais por literatura do que por pintura. Hoje em dia eu leio muito a produção pós-moderna, a literatura americana moderna, mas de vez em quando faço umas incursões mais maníacas sobre alguns autores, vamos dizer, heroicos. Passei 14 anos da minha vida lendo Joyce, por causa do meu pai que gostava muito dele. Ele ficou velho e não conseguiu ler o Wake (Finnegans Wake), então eu comecei a ler o Wake.
É um livro difícil…
É uma pedreira (risos). Li com um monte de literatura auxiliar, que mandava buscar nos Estados Unidos e muitos dicionários. É difícil de ler por causa das aliterações, muitos trocadilhos, citações em outras línguas. Embora seja enfadonho, às vezes, no final das contas é divertido. Recentemente tenho me fixado muito nos cantos do Pound (Ezra Pound). Gosto dessas pedreiras (risos). Mas hoje com a internet é bom porque você tem vários círculos de leitores que trocam ensaios. Também sou associado a um grupo de nabokovianos. Eles trocam informações. É muito bom porque ler Nabokov (Vladimir Nabokov) é meio complicado. Muitos pensam que Nabokov é apenas o autor de Lolita, mas não é só. Ele fez coisas mais complicadas.
Como está o mercado de arte?
Muito ruim, como também acontece com outros mercados. No mercado de arte existem as pessoas que colecionam e as que decoram a casa. Algumas colecionam e decoram ao mesmo tempo, mas são poucas. Os colecionadores envelheceram e os filhos não levaram adiante as coleções, eles estão vendendo as obras. Então, hoje em dia, não existem muitos colecionadores no sentido estrito da palavra, pessoas que têm mais de uma obra. Existem colecionadores com 60 obras minhas aqui e no exterior. Mas, de uma maneira geral, as pessoas compram um quadro, às vezes vem um arquiteto que acompanha a pessoa. O mercado de arte é um pouco dependente dessas contingências de moda, de decoração, enfim da harmonia do lar.
Também não existem mais críticos de arte na imprensa, não é?
Da mesma maneira que os artistas dessa geração foram morrendo, o mesmo ocorreu com os críticos dessa geração, que também se aposentaram e não houve renovação. Por outro lado, houve uma coisa curiosa no Brasil: a maioria dos artistas jovens refluiu para as universidades. As coisas acontecem muito no ambiente universitário, são ciclos de atividade acadêmicos, que embora muito avançados do ponto de vista da concepção poética, se resolvem dentro da mecânica e do protocolo universitário. Então não é exatamente essa coisa do artista pobre, de classe média que conseguiu vender suas obras e pagar as suas contas. Os curadores são alunos das universidades, ou do departamento de arte ou são funcionários de museu, trabalham no Ministério da Cultura. Há um perfil muito acadêmico, diferentemente do escritor ou jornalista que tinha uma visão poética, que escrevia sobre arte, dava sua opinião.
(Entrevista a Cláudia Santos e Rafael Dantas. Foto: Diego Nóbrega)
Veja algumas obras do artista: