“Sou a realidade de 70% da advocacia que começa ganhando R$ 1 mil” – Revista Algomais – a revista de Pernambuco

“Sou a realidade de 70% da advocacia que começa ganhando R$ 1 mil”

Ingrid Zanella, vice-presidente da OAB-PE, analisa a participação de mulheres e negros no judiciário e o combate às fake news nas eleições, afirma que há muitos cursos cuja qualidade de ensino não garante ao aluno passar no exame da ordem, e conta como teve sucesso ao investir no direito marítimo.

Todos os anos, as faculdades formam um grande número de advogados que encontram dificuldades para entrar no mercado de trabalho. A trajetória da vice-presidência da OAB Pernambuco, Ingrid Zanella chama a atenção por conseguir escapar dessa estatística, mesmo não tendo uma família de advogados, como é comum no setor. Nesta conversa com Cláudia Santos, ela conta como viu no direito marítimo uma oportunidade de ascensão, analisa as possibilidades para ampliar a representatividade de gênero e racial na área jurídica, e aponta as perspectivas do futuro da profissão diante da transformação digital das lawtechs e dos demais setores econômicos.

Fale um pouco sobre sua trajetória profissional. É verdade que a senhora não vem de uma família de advogados?

Costumo dividir minha carreira em três vieses: a carreira relacionada ao ensino, como advogada e como atuante na política da OAB. Quando me formei – e acredito que isso ocorre com 90% dos alunos de direito – fiquei um tanto perdida. Não tenho origem jurídica, não tinha ninguém para me dizer: “venha aqui trabalhar comigo, tem uma vaguinha te esperando e, se fizer tudo certo, você vira sócia”. Então decidi traçar minha trajetória na vida acadêmica e como advogada, porque eu teria duas chances de dar certo. Quando saí da faculdade fiz a seleção para o mestrado na UFPE e passei. Como não tinha muito dinheiro, estudei tanto que passei em primeiro lugar para poder ter bolsa.

Recebi a bolsa durante três meses, até que o professor Sérgio Torres, que é desembargador do Tribunal do Trabalho e era coordenador da Faculdade Boa Viagem, me convidou para dar aula lá. Como não podia acumular os dois recebimentos, larguei a bolsa, que era de R$ 1.200, para ganhar um salário de R$ 700 na faculdade, porque eu não podia perder a chance de ser contratada. Não era o salário. Era começar. Antes disso, durante a graduação, fui tripulante de navio, trabalhei três meses embarcada e adorei a vida náutica.

Como a senhora foi trabalhar num navio?

Quando era estudante, morei um tempo os Estados Unidos e quando retornei mantive a relação com alguns amigos de lá e um deles era filho de um agente marítimo. Um dia ele disse: “meu pai está agenciando um navio de Cruzeiro que está indo pra aí. Estamos refazendo a tripulação, se você tiver interesse em ser, por exemplo, chefe da contabilidade, você faz um curso na Capitania dos Portos, tira seu certificado”. Eu era estudante 6º período, ia ter a chance de viajar, entender uma nova realidade, fazer novos amigos. Aceitei na hora.

Aprendi um monte de coisas e me apaixonei pelo navio e decidi atuar nessa área como advogada. Como estava na graduação ainda e não existiam cursos ou palestras sobre o assunto em Pernambuco, comecei a estudar o tema. Meu projeto de mestrado foi sobre o direito marítimo. Depois que fui contratada pela Faculdade Boa Viagem – olha só como é o mundo! – o agente marítimo que havia me contratado naquela época, estava com um navio preso no Porto do Recife. Ele me ligou, dizendo que precisava de um advogado para entrar com ação judicial. Estava com 700 passageiros a bordo e não sabia o que fazer.

E eu era bem novinha, nunca tinha feito um mandado de segurança. Mas ali era uma oportunidade. Eu disse: eu faço esse mandado. Eu não tinha nem blazer para vestir (risos). Na época não havia processo eletrônico, liguei para a juíza e expliquei a ela que a causa era urgente porque isso era de uma sexta para o sábado. Não dormi, passei a noite fazendo a ação, fui despachar com a juíza e consegui a liminar. O agente marítimo ficou tão satisfeito que me contratou para prestar um trabalho mensal.

Nesse momento, abri meu escritório em 2010, no primeiro ano de formada, com um cliente, rezando para ter outro. Como eu disse, não tenho origem jurídica, ninguém me indicava cliente. Comecei a perceber que precisava rodar o ambiente. Procurei a OAB, pedi uma reunião com Henrique Mariano, o presidente, e Catarina Oliveira, sua vice. Eles foram muito acessíveis, porque eu era uma jovem estudante, ninguém me referenciou ou pediu para eles me receberem.

Propus a criação de uma comissão de direito marítimo porque era uma área de advocacia que precisava ser estimulada em Pernambuco. Todos os escritórios eram do Rio e São Paulo e tínhamos que mostrar que aquela área podia crescer: temos Suape, Noronha, o turismo. Eles gostaram do projeto e me nomearam para ser presidente da comissão. Foi uma outra surpresa. Tinha um ano de formada!

Comecei a fazer eventos, me comunicar com outros advogados, chamar os estaleiros para discutir como Pernambuco poderia crescer mais no âmbito marítimo e portuário, além de pensar e desenvolver projetos também para a jovem advocacia. Como eu não tinha escritório, pensei no Projeto Co-office, que começou há cinco anos, porque era minha principal necessidade. Precisava de um lugar para atender clientes, fazer audiência. O projeto cresceu e na gestão passada, eu e Bruno (Baptista, ex-presidente da OAB) inauguramos no 5º andar um espaço compartilhado, com computador para advogados trabalharem sem pagar nada, onde podem fazer audiências, reuniões. O projeto foi tão de bem-sucedido que está sendo copiado em outros Estados.

Bem, meu escritório foi crescendo. Depois de 10 anos, eu tinha parceria com muitos escritórios e acabei negociando com o Queiroz Cavalcanti. Hoje sou sócia titular deles, toda a minha equipe foi para dentro do Queiroz. Não foi uma escolha aleatória, eles têm 60% do corpo formado por advogadas e um comitê de diversidade, voltado para pessoas que se autoidentificam não só em relação à questão de raça, mas também de gênero e LGBTQIA+, além de focar em pessoas com deficiência. Também é um escritório que congrega inovação com formas de resolução do conflito.

Você manteve as atividades acadêmicas?

Minha carreira foi crescendo nos três lados. Na academia, fiquei na Faculdade Boa Viagem por um tempo. Depois do mestrado, entrei no doutorado, fiz concurso para a Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Passei em primeiro lugar e fiquei dois anos como professora dessa universidade. Mas, como estava muito cansativo conciliar com a vida de advogada e a política de Ordem, pedi exoneração e fiz um novo concurso UFPE. Passei também em primeiro lugar e hoje sou professora da Federal. Eu me orgulho muito de falar isso. Tem gente que tem vergonha de dizer que ganhava pouco. Eu não, porque eu sou a realidade de 70% da advocacia que começa ganhando R$ 1 mil ou com um só cliente.

Na ordem também fui subindo degrau por degrau. Fui presidente de comissão, fui diretora acadêmica da ESA (Escola Superior de Advocacia), conselheira estadual, no triênio passado fui vice-presidente e voltei como vice. Isso faz com que a gente tenha que pensar nos menos favorecidos. Os projetos que encabeçamos na OAB, a maioria, foi para os que estavam precisando, como o advogado do interior, que não tem nem internet. O piso salarial foi uma luta que tivemos para que o advogado não fosse contratado por menos de R$ 3 mil.

O ambiente jurídico, nas cortes e diretorias de entidades, é ainda muito masculino e formado por pessoas brancas. Como reverter essa situação?

Na gestão passada, lutamos muito a nível nacional para conseguir que as chapas da OAB fossem formadas por equidade de gênero e que existisse 30% de cota racial. Pernambuco foi um dos primeiros Estados a votar a favor. Essa foi uma mudança de rumo na OAB de Pernambuco, porque se somos uma casa democrática, que pugna pelo Estado Democrático de Direito, vamos querer ambientes igualitários e temos que dar exemplo.

Quando estávamos em campanha política nessa gestão, tínhamos várias propostas em prol da representatividade da mulher. Uma delas era estabelecer que a lista sêxtupla (com indicações de nomes para vagas de desembargador nos tribunais locais, o chamado Quinto Constitucional) fosse formada com equidade de gênero (50% de mulheres) e colocasse 30% de cota para negros e pardos. Conseguimos aprovar isso no conselho.

É óbvio que isso é uma política afirmativa, mas em um estado desigual, temos que ser afirmativos mesmo. A escravidão acabou há tanto tempo e não vemos negros nos restaurantes, nas faculdades, nos tribunais. Por si só, as coisas estão demorando muito para se reajustar. Para você ter uma ideia, temos 52 desembargadores do Tribunal de Justiça de Pernambuco e uma mulher! Não dá, esse não é um cenário em que nós, mulheres, podemos nos sentir representadas.

Outra ação que realizamos no ano passado foi o Censo da Advocacia Pernambucana, porque para termos política estratégica e política afirmativa temos que saber quem somos, qual percentual dos negros, de mulheres, de brancos, quem ganha quanto, quais são as prerrogativas que estão sendo violadas. Com base no censo, entendemos onde temos que investir mais. Por exemplo, o censo mostrou que 70% da advocacia que tem as suas prerrogativas violadas não procurou a OAB. Temos que fazer uma campanha de valorização de prerrogativa. O censo mostrou que 49% da advocacia em Pernambuco é composta por mulheres para 51% de homens. É muito pouca a diferença.

Leia a entrevista completa na edição 194.3 da Revista Algomais: assine.algomais.com

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