*Por Francisco Cunha
Entre as décadas dos anos 40 a 70 do século passado, as cidades de Porto Alegre (em 1941 e 1967, sobretudo) e do Recife (em 1966 e 1975, principalmente) foram vítimas de grandes enchentes que deixaram a maior parte dos seus territórios debaixo d’água, impingindo desolação às milhares de pessoas atingidas.
No caso do Recife, a decisão técnica considerada mais adequada para a proteção contra as cheias foi a construção de grandes barragens na bacia do Rio Capibaribe (Tapacurá, Goitá e Carpina). Isso, de fato, defendeu a cidade e, desde 1978, quando o sistema de proteção por barragens foi concluído, o Recife não sofre nenhuma grande enchente provocada pelo Capibaribe.
Já no que diz respeito a Porto Alegre, a solução, pelo que ficamos sabendo por conta da tragédia atual, foi construir uma barreira de proteção em torno da parte baixa da cidade, incluindo o seu centro, às margens do Lago Guaíba. Esse sistema de proteção é composto por 68 quilômetros de diques e um muro de concreto armado de 3 metros de altura na Avenida Mauá onde não há largura suficiente para colocar uma barreira de terra como no restante da área protegida, além de 14 comportas e 23 casas de bomba.
Esse sistema parece ter funcionado a contento até que se deu o dilúvio atual provocado por um nível de precipitações recorde nas bacias dos rios que desaguam no Lago Guaíba, os principais do estado. Aí, acontece o inaceitável: a vedação dos portões (comportas) do muro e as bombas de esgotamento da água de refluxo falharam, pelo que dizem os especialistas, por falta de manutenção. Houve grandes vazamentos nas comportas, tendo uma delas, inclusive, rompido pela força da água. Segundo a prefeitura, das 23 estações de bombas, 19 tiveram de ser desligadas em razão de inundação das dependências e por risco de “choque elétrico”.
Guardadas as devidas proporções, seria como se as comportas das barragens que protegem o Recife das cheias do Capibaribe, por falha de manutenção, deixassem passar toda a água que deveriam reter, inundando a cidade como em 1975…
O risco do Recife repetir Porto Alegre em termos de inundação não está propriamente em falhas do sistema de proteção de enchentes dos rios que deságuam na capital, já que o do sistema pernambucano tem-se mostrado mais seguro ou, no mínimo, menos vulnerável a descasos tão danosos quanto os verificados em Porto Alegre. O risco do Recife está mais relacionado, por um lado, à intensificação das precipitações com deslizamentos de encostas e alagamentos decorrentes e, por outro, no médio e longo prazos, à subida do nível do mar em decorrência do aquecimento global.
De fato, o Recife é considerada a cidade brasileira mais baixa em relação ao oceano (média de apenas 4 metros acima do nível do mar, contra 10 metros de Porto Alegre, por exemplo) e já foi classificada pelo IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) da ONU como a 16ª cidade mais vulnerável do planeta às mudanças climáticas por conta da elevação do nível dos oceanos.
Diferentemente também de Porto Alegre, o Recife já começou a tratar, de forma estruturada, o problema da regeneração urbanística pela via ambiental com o desenvolvimento da pioneira pesquisa urbana aplicada que resultou no Parque Capibaribe, o mais importante plano ambiental-urbanístico da história do Recife. Esse plano, por intermédio do que se poderia chamar do “urbanismo-lego”, aquele que produz o “desenho” geral do “quebra-cabeças” que se pretende montar e permite a colocação de cada “peça” à medida que surge a oportunidade e/ou os recursos disponíveis para executá-la.
Com este conceito é que já foram “colocadas” as “peças” ou conjunto de “peças” do Jardim do Baobá em Ponte D’Uchoa, da Praça Otávio de Freitas na frente do memorial da Medicina no Derby, do Parque das Graças, dos Jardins Filtrantes no Parque do Caiara na Iputinga e do Cais da Vila Vintém perto do Shopping Plaza no Parnamirim, sem falar das Praças da Infância, influenciadas pelos conceitos desenvolvidos pelo Parque Capibaribe, em especial os aplicados no Parque das Graças. Todos dentro do “desenho” geral do Parque Capibaribe que prevê uma zona-parque de 500 metros de cada lado do Rio (contados a partir do seu eixo) de cerca de 15 km (30 km se consideradas as duas margens), desde a entrada do Capibaribe no Recife (na Várzea) até sua chegada ao oceano (no Bairro do Recife).
A importância da pesquisa que produziu o Parque Capibaribe foi não só relevante por ter produzido o desenho do “quebra-cabeças” do plano como também por ter lançado a hipótese de que, a partir da experiência bem-sucedida do Parque, o Recife tem o potencial de vir a tornar-se uma cidade-parque no horizonte do seu aniversário de 500 anos em 2037, o da primeira capital brasileira a completar cinco séculos. Uma cidade-parque capaz de, não só se regenerar urbanisticamente pelo verde (com parques, praças, jardins e ruas fartamente arborizadas), como também proteger-se eficazmente contra as mudanças climáticas com soluções baseadas na natureza.
Neste sentido é que a Prefeitura do Recife e a UFPE, com o envolvimento direto do Laboratório da Paisagem e do Departamento de Oceanografia, firmaram um novo convênio para a realização de uma outra pesquisa, já em andamento, intitulada Recife Cidade Parque – Plano de Qualidade da Paisagem, que preconiza a extrapolação do conceito do Parque Capibaribe (que “corta” o território, mais ou menos, no meio geográfico da cidade) para o norte, com o Parque Beberibe, e para o sul, com o Parque Tejipió (onde, inclusive, como se pode ver na reportagem de capa desta edição da Algomais, já está em curso o programa ProMorar com recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento com o objetivo de adequar a macrodrenagem da bacia às novas exigência do clima). Além desses três parques, um quarto, o Parque Marinho (na frente atlântica da cidade) também está sendo estudado com o objetivo específico de criar uma proteção face ao aumento do nível do mar.
Ou seja, diante do fato, que tudo faz crer irreversível, de que as mudanças climáticas estão promovendo, tanto o aumento e a intensidade das precipitações pluviométricas (com efeitos intensos sobre a estabilidade das barreiras nos morros e sobre o alagamento da áreas baixas da cidade), quanto a subida do nível do mar (também com potenciais efeitos dramáticos de inundação sobre as áreas costeiras e mais baixas da cidade), torna-se essencial que os estudos e as pesquisas avancem para caracterizar bem o problema e os riscos do Recife.
Isso porque, diante da realidade complexa da cidade, face aos novos cenários do aquecimento global, não existe uma solução mágica, a chamada “bala de prata” para matar com um tiro só no coração o “lobisomem” do clima. Serão necessários muitos estudos, muita conscientização e debates aprofundados, além de soluções criativas e, com toda certeza, o mais possível baseadas na natureza, para salvar o Recife do desabamento e da inundação. E todos os recifenses estamos convocados para isso, acompanhando o que acontece e participando ativamente dos debates. O futuro da cidade depende disso.