Marieta Borges é historiadora, escritora e professora. Por décadas desbravou a história de Fernando de Noronha, que resultou na grande obra da sua vida. É também poetisa e tem vocação para percussionista. Nesta entrevista à Algomais, ela fala sobre suas origens, produções e sua luta contra o câncer. Já venceu a batalha contra dois tumores. Hoje enfrenta o terceiro. Mas a julgar pelo vigor demonstrado nesta conversa - que terminou com uma "canja" da pesquisadora, tamborilando na mesa da sua sala um frevo em homenagem ao arquipélago - certamente ganhará mais esse combate.
“Como a história de Noronha ficou escondida!”
Você nasceu aqui no Recife?
Sim, na Rua da Concórdia, a rua do Galo da Madrugada. Meu pai tinha uma fábrica de placas. Foi ele quem trouxe a produção de placas para carro para o Brasil. Ele era português. A produção acabou quando ele morreu. Morávamos em cima da casa e embaixo era a fábrica.
Como começou sua relação com a música?
Meu irmão era o maestro Fernando Borges. A gente fazia cantorias todos os dias em casa. Papai com a guitarra portuguesa, ele com o violino, minha irmã mais velha com o piano e eu na percussão. Nascemos todos no Recife, menos a mais velha, que nasceu em Belém. Meu pai veio direto para Belém e de lá veio para cá. Minha mãe também é paraensse. Meu marido cantou 22 anos no Coral do Carmo do Recife. A primeira coisa que eu pedi a ele quando fiquei noiva foi que entrasse no coral. Foi meu presente do Dia dos Namorados.
Como era o Carnaval daquela época?
Caminhávamos pela rua fantasiados, minhas irmãs, meus vizinhos. No Recife, meu irmão inventou o Esperando O Galo, palco montado na Ponte Duarte Coelho, de 8 da manhã até o Galo chegar. Era uma maravilha! Tínhamos o direito de subir no palco, ficar um pouco em cima olhando. Era impressionante.
Você também faz poesias?
Tenho quatro livros de poesia. O primeiro eu lancei quando trabalhava no colégio Santa Maria: As Muitas Faces do Bem Querer. Tem poema para todo mundo que passou pela minha vida. Seguindo esse mesmo jeito lancei o segundo: Natal Sempre, só com poemas de Natal. Foi prefaciado pelo Monsenhor Bezerra. Depois reuni grande parte do que havia feito e apresentei às edições Paulinas, que fizeram um calendário poético com o nome de Catando Amor o Ano Inteiro. O prefácio é de Dom Hélder. Ele escreveu que no livro há versos verdadeiramente "marietanos". (risos). Há mais de 10 anos declamo esses poemas na rádio Olinda, todo domingo. O último livro de poemas foi lançado pela editora Catolicanet.
Você se formou em história?
Não. No tempo em que estudei o curso de história não era reconhecido. Fiz pedagogia e depois fiz seis meses de especialização. Tenho a autorização do MEC para lecionar história. Comecei a trabalhar com as disciplinas do magistério e o enfoque principal era a didática dos estudos sociais, que entrava geografia e história. Nessa brincadeira, ensinei em vários colégios.
Como começou sua relação com Fernando de Noronha?
Fui uma das pessoas chamadas para participar do curso primeiro e único de suplência profissionalizante em regime de magistério em Fernando de Noronha, quando não tinha ninguém formado. Todo mundo terminava o ginásio e passava a ser professor, sem saber de nada. Daí foi feito um convênio com a Secretaria de Educação, que passou a indicar pessoas com experiência de magistério. Fui uma das indicadas para dar algumas didáticas. Foi uma paixão tão grande a ida e a descoberta, que acabei retornando várias vezes para ensinar didática geral, didática da linguagem, ensinei a alfabetizar. Ficava 15 dias, porque não podia ficar o tempo todo.
Como foi que se interessou pela história da ilha?
Quando eu pegava as professorandas do Santa Maria, Agnes ou IEP, eu levava essas meninas para conhecer, como se fosse hoje, o Instituto Brennand e a Oficina de Ricardo Brennand. Na época, a gente ia onde era possível. Quando eu quis fazer isso em Fernando de Noronha, pedi para me dizerem um resumo da história da ilha. Então me deram uma folha de papel com os tópicos: os franceses viveram aqui, ponto. E dai? Os holandeses viveram aqui. E dai?
Não existia a história da ilha?
Não! Prometi que faria um livro que seria o livro texto deles. Esse é o livro da minha vida (Fernando de Noronha Cinco Séculos de História). Tem 555 páginas e tem 511 fotografias. A ilha foi descoberta na expedição em que estava Américo Vespúcio que chegou lá como representante do fidalgo Fernão de Loronha, que nunca veio aqui. Ele ganhou a capitania, porque foi quem financiou a expedição. É o poder econômico. Abandonada, a ilha foi invadida por muita gente como os franceses. Fui à França atrás de informações, porque a França invadiu a ilha, depois em 1927 instala a Compagnie Générale Aéropostale, precursora da Air France. O grande aviador Mermoz sofreu um acidente lá, por causa disso, se fez a primeira pista de pouso em Fernando de Noronha em 1934. Fui a Air France do Rio de Janeiro. O diretor não sabia da ligação da empresa com Fernando de Noronha e disse para eu procurar a Maison de France no Rio. Lá me deram pistas inclusive do antigo aviador que havia resgatado a história da Air France e publicado duas obras. Aviadores famosos estiveram em Noronha, inclusive Saint–Exupéry (autor de O pequeno príncipe). No livro também tem a cronologia da presença holandesa. Foi a primeira. Eles viveram por 25 anos lá. E isso não se ensina no continente. Ninguém sabe.
Como descobria essas informações?
De várias maneiras. Uma vez cheguei no Bandepe, e o gerente me cumprimentou dizendo: “Oh, minha musa de Fernando de Noronha”. Então, outro cliente atrás de mim falou: "minha mulher nasceu lá". Virei para ele e perguntei: nasceu lá por que? Ele disse que o pai dela foi diretor do telégrafo submarino francês. Era a pintora Délia Aguiar, que morava em Olinda e eu, na época, também. Quando entrei na casa dela estava esta foto na parede (mostra foto do Zeppelin sobrevoando a ilha) tirada pelo seu pai. Fiquei emocionada, ficamos chorando feito duas bestas (risos).
O livro também mostra artistas que pintaram Noronha, não é?
Sim. Mostra quem pintou Noronha e porque pintou. Tem Debret, Luiz Jasmim, Tereza Costa Rego, entre outros. Eu ganhei telas de um cidadão que passou por lá e pintou o antigo armazém de produtos agrícolas. Ele me doou essas telas e disse guarde, quando houver um espaço cultural em Fernando de Noronha, você coloca. Eu guardei anos na minha casa. Meu marido ameaçava fazer uma fogueira porque era coisa demais (risos). E na hora de inaugurar o memorial, nós colocamos isso dentro do navio, tudo bem embalado e o navio (Iracema) afundou.
O que mais se perdeu no naufrágio?
Tudo que estava lá. Inclusive os tapetes do memorial, livros. Um desses livros eu tive a maior dificuldade para encontrar. Era de Pereira da Costa. Antes de mandar para para colocar no acervo do memorial, eu xeroquei tudinho. Foi a minha sorte. O naufrágio foi em 1998. A gente quase enlouqueceu dentro da ilha. A gente lá esperando, terminando de preparar as coisas. Aí, chega a notícia que o navio afundou.
A pesquisa durou quanto tempo?
Comecei 1974. Fui juntando pedaços e as coisas foram crescendo. Primeiramente, guardava esse material na minha casa, porque eu não estava ligada a órgão nenhum. Eu era professora de seis escolas diferentes. Depois de muito tempo criou-se na Universidade Federal de Pernambuco, o projeto Esmeralda, que era de apoio educacional ao território de Fernando de Noronha. Era militar. Aí, eles foram me buscar. Eu transferi meu cargo do Estado, fiquei à disposição da universidade, em 1984. Em 1988, a ilha volta para Pernambuco. Nesse ano Cláudio Marinho interinamente foi o primeiro administrador e, em seguida, foi Roberto Pandolfi. A primeira pessoa que ele chamou para trabalhar fui eu. Então levei meu cargo do Estado para a administração de lá, onde estou até hoje. Teve dois períodos que eu saí para ser secretária de Educação em Olinda. Amo Olinda também. A publicação do livro sobre a ilha aconteceu em 2013.
Quando recebeu o diagnóstico de câncer?
Tive o primeiro câncer em 2004, o segundo em 2007, o terceiro em 2015. Cada um diferente do outro. Os dois primeiros de mama. Fiz inclusive recomposição da mama, porque o primeiro foi muito agressivo. Ano passado me sentia ótima, apesar de ter pulado duas fogueiras. Em abril deste ano descobri o câncer de pâncreas. Não tenho mais pâncreas, foi removida também uma parte do fígado. Mas as sequelas ficam. Com esse tratamento, tive erisipela e perdi 6,5 quilos.
Mas ainda trabalha?
Trabalho no Escritório de Fernando de Noronha, que fica no Centro do Recife. Mas a gente vai sair para perto da Casa da Cultur, no prédio que era da Rede Ferroviária do Nordeste.
Além do livro, o que mais foi feito?
Em 2012, a gente começou a imaginar a ampliação e melhoria do Memorial Noronhense. No final do ano, a gente inaugurou as melhorias todas. Com uma roupagem nova. Ao conhecer o local, a antiga cônsul dos Estados Unidos disse: “Meu Deus, esse é o lugar mais bonito de Fernando de Noronha!” Todo de painéis. Tudo iconográfico, com tradução em inglês. Lá você vai caminhando no tempo. Mostrei para ela a presença americana em Noronha. Ela disse que não sabia que havia essa força americana na ilha.
Quais os planos futuros?
A gente está lutando (tomara que o novo administrador dê corda), para ampliar o Memorial, reformando algumas ruínas para instalar quadros dos artistas plásticos. Só de Luiz Jasmim são 10 telas em grandes formatos. A última vez que soube delas, era que estavam encostadas no almoxarifado. Também estamos fazendo uma galeria de dirigentes de Fernando de Noronha. Tem também um projeto sobre a história do monumento português, que fica na frente ao Palácio São Miguel. Ele foi doado pelo governo português para comemorar os 25 anos da primeira travessia de hidroavião entre Portugal e Brasil feita por Gago Coutinho e Sacadura Cabral. A primeira parada deles foi em Fernando de Noronha.
Incrível como ficou escondida tanto tempo!