*Por Leonardo Dantas Silva
Durante a Guerra Holandesa (1630-1654), do lado das forças da resistência, comandadas pelo general Matias de Albuquerque, são constantes as deserções e atos de traição, como se vislumbra da leitura das Memórias Diárias, escritas pelo próprio donatário, Duarte de Albuquerque Coelho, irmão do general comandante.
De todos esses fatos, o que mais causou impacto, foi o episódio da deserção do mulato Domingos Fernandes Calabar, em 20 de abril de 1632. Tal acontecimento é atribuído pelos cronistas da Guerra Brasílica como a principal causa da perda da capitania de Pernambuco para as forças de ocupação holandesas. Com a sua ajuda e orientação foram tomadas as vilas de Igarassu (1632), Rio Formoso (1633), Itamaracá (1633), Rio Grande do Norte (1633) e Nazaré do Cabo (1634).
Pouco se sabe dos seus motivos em trair os portugueses, passando-se de armas e bagagem para o lado dos holandeses. Dos relatos e documentos de então informam apenas que era ele filho da negra Ângela Álvares com um português de nome desconhecido, nascido em 1609, na vila alagoana de Porto Calvo, que tomou parte ativa na guerra desde o seu primeiro momento. Fora ele ferido, em 14 de março de 1630, quando na defesa do Arraial do Bom Jesus, estando processado por alguns crimes pela justiça do Rei de Espanha.
Fora ele citado no diário de um seu contemporâneo, o oficial inglês Cuthbert Pudsey, que entre 1629 e 1640 esteve a serviço da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil.
“Por esse tempo veio até nós um português chamado Domingos Fernandes [Calabar], que por haver estuprado uma mulher na região de Camaragibe, e para que depois ela não contasse quem havia feito isto, cortou-lhe a língua da boca. Vivera como renegado por cerca de dois anos entre os portugueses. Então, tendo vindo servir aos holandeses, foi feito capitão. Graças a seus conselhos e meios molestamos muitíssimo o país, sendo ele um sujeito intrépido e político, sabedor de todas as picadas e caminhos através de toda a terra, jactando-se de nada mais fazer senão dano aos portugueses. Sendo ele mesmo um mulato, isto é, com um pai português e uma mãe negra. Desta espécie achamos muitos sujeitos intrépidos.
Graças aos seus conhecimentos da região e do aprendizado rápido da língua holandesa, Calabar logo cativou as autoridades militares e administrativas neerlandesas, gozando das simpatias e recebendo carinho e atenções por parte dos mais grados. Convivia ele com as figuras mais representativas de sua época e, para um mestiço do seu tempo, tal tratamento contribuiria para massagear de sobremaneira o seu ego de mulato e o animava na conquista de novos postos em sua carreira militar, na qual veio a atingir o posto de capitão com o soldo de sargento-mor.
Seria este, quem sabe, talvez o principal motivo que o fez grato aos superiores holandeses, quando a sua condição de mulato, filho de pai desconhecido, o impediria de receber tais honrarias e simpatias por parte dos senhores da terra e da oficialidade portuguesa. Seu prestígio social junto aos novos aliados tornou-se patente quando do batizado do seu filho com Ana Cardosa, na igreja reformada do Recife. Segundo anotações no Livro Batismal 1633 -1654, conservado no Arquivo Municipal de Amsterdã (Gementes Archief Amsterdam), sob o nº 379/211, estiveram presentes ao batizado do menino Domingos Fernandes Filho, em 20 de setembro de 1634, o alto conselheiro Servatius Carpentier (também médico e senhor do engenho Três Paus), o coronel alemão Sigmund von Schkoppe, o coronel polonês Chrestofle d’Artischau Arciszewski e uma senhora da alta sociedade do Recife não identificada. O fato vem demonstrar a importância social de que gozava o mestiço Domingos Fernandes Calabar quando, em simples solenidade familiar, reúne um represente do alto Conselho e os dois principais chefes do Estado Maior do Brasil Holandês.
Outro gesto de consideração do governo do Brasil Holandês para com a memória de Calabar, se dá quando do pedido de sua viúva em favor dos seus três filhos órfãos, em data de 13 de abril de 1636. Na ocasião, “considerando os grandes serviços feitos à Companhia pelo seu falecido esposo”, o Conselho Político concedeu uma pensão de 8 florins por mês a cada uma das crianças, segundo informa José Antônio Gonsalves de Mello in Tempo dos flamengos.
Após a derrota das tropas que defendiam o Arraial do Bom Jesus, Matias de Albuquerque, que se encontrava em Nazaré do Cabo, inicia sua marcha em direção à Bahia. No caminho, ao passar pela povoação de Porto Calvo, no atual território de Alagoas, comandando um pequeno exército de 140 homens, resolve tomar aquele baluarte até então em mãos dos holandeses.
Para isso contou com a colaboração de Sebastião Souto, que fez o chefe holandês, major Alexandre Picard, crer na vantagem numérica das forças da resistência. Porto Calvo vem a se render em 19 de julho de 1635. Nos termos da rendição uma das condições impostas por Matias de Albuquerque ao major holandês que comandava uma tropa de pouco mais de 360 homens, seria a entrega de Domingos Fernandes Calabar e do judeu Manuel de Castro, este último servindo aos holandeses nas funções de almoxarife da povoação.
Foi Manuel de Castro de imediato condenado pelo Auditor Geral “que o mandou enforcar em um cajueiro”, ficando Calabar para o dia seguinte.
Entregue Calabar às forças de Matias de Albuquerque, seu julgamento sumário e sua execução passam a ser descritos com cores fortes e detalhes minuciosos pelo frei Calado, encarregado pelo general de acompanhá-lo nos seus últimos momentos.
Prisioneiro Calabar, foi ele submetido a um julgamento sumário, em 22 de julho de 1635, sendo condenado à morte por garroteamento pelo general Matias de Albuquerque na ocasião representando a pessoa do próprio rei, “pois era seu general naquela guerra”, sendo acusado o prisioneiro de “muitos males, agravos, extorsões que havia feito”.
Após a sentença foi o condenado assistido pelo frei Manuel Calado que o ouviu em confissão e com ele ficou conversando, “das oito da manhã ao meio-dia”, ocasião em que relacionou os nomes dos seus credores, bem como dos seus bens e objetos em ouro, guardados no Recife, e as dívidas do Conselho da Companhia para com ele por conta do seu soldo de militar. Esses apontamentos foram entregues pelo padre-mestre a sua genitora, Ângela Álvares, que residia em Porto Calvo.
Na manhã em que esteve com Calabar, dá o frade o testemunho de que, indagado o prisioneiro sobre a colaboração de alguns portugueses para com as forças de ocupação, pelo ouvidor João Soares de Almeida, respondeu ele “que muito sabia e tinha visto naquela matéria e que não eram os mais abatidos do povo os culpados”.
Das denúncias de Domingos Fernandes Calabar foi o general Matias de Albuquerque cientificado pelo frade, “que o avisou de algumas coisas pesadas, o qual em o ouvindo mandou que não se falasse mais nesta matéria, para não se levantar alguma poeira da qual se originassem muitos desgostos e trabalhos”.
Naquela noite foi o prisioneiro levado pelo sargento-mor dos italianos, Paulo Barnola, que se encarregou de o encostar junto a um esteio ao lado da casa a fim de dar-lhe o garrote, fazendo-lhe, em seguida, em quartos (retalhar o corpo do condenado em quatro partes) “as quais puseram em cima dos paus da estacada”, sendo-lhes obstado qualquer pronunciamento, que na ocasião mostrou o prisioneiro desejo de fazê-lo, “como queria, receosos de que lhe dissesse, ou declarasse algumas coisas pesadas”, conforme ressalta o relato do frei Manuel Calado em seu livro clássico.
Era Calabar, simplesmente um desertor que viu nas forças neerlandesas mais vantagens para a sua carreira de militar do que entre as tropas do general Matias de Albuquerque. Como tantos outros, escolheu ele um dos lados em conflito e, no jogo do perde e ganha, não foi feliz na sua opção.