“Capibaribe, meu rio,
espelho do meu sonhar,
quero fazer-te o elogio,
mas penso: Se te elogio,
é a mim que estou a elogiar…
– Austro Costa.
O rio Capibaribe tem o seu nascedouro nos contrafortes da serra do Jacarará, no planalto da Borborema, recebendo o nome de Canhoto. Reunindo as poucas águas da vertente sul-oriental da serra, no Sítio Araçá, em terras do município de Jataúba, ganha as caatingas das Duas Barras, unindo-se ao rio da Cachoeira, iniciando o seu caminho em direção à planície do Recife através dos municípios de Santa Cruz do Capibaribe, Toritama, Salgadinho e Limoeiro, como um rio temporário de leito pedregoso. Ingressando na zona da Mata, passa por Carpina, Paudalho, Tiúma, São Lourenço e outras localidades, recebendo como afluentes 79 rios e outros riachos de menor porte até vir entregar suas águas ao Oceano Atlântico.
No seu caminho de viajante preguiçoso, sem qualquer pressa do chegar, dormitando pelos remansos e barreiros, entrando pelo canavial e açudes, em contato direto com engenhos de fogo morto e usinas de açúcar, o Capibaribe chega ao Recife por entre as barreiras dos engenhos São João e São Cosmo, na Várzea, fazendo uma grande curva, cheia de meandros pelo Sertãozinho de Caxangá, onde provocou o primeiro alumbramento do poeta Manuel Bandeira e as observações do poeta João Cabral:
Ao entrar no Recife, / não pensem que entro só. / Entra comigo a gente / que comigo baixou / por essa velha estrada / que vem do interior; / entram comigo rios / a quem o mar chamou, / entra comigo a gente / que com o mar sonhou, / e também retirantes / em quem só o suor não secou; / e entra essa gente triste, / a mais triste que já baixou, / a gente que a usina, / depois de mastigar, largou.
Preguiçosamente, em longas curvas, ainda sem qualquer pressa, o “cão sem plumas” passa por Dois Irmãos, Santo Antônio de Apipucos – onde o sociólogo Gilberto Freyre produziu grande parte de sua obra –, seguindo em direção ao Monteiro, Barbalho, Bom Gosto, Caldeireiro e Poço da Panela, de onde tantas vezes transportou os escravos que buscavam a liberdade em barcaças de capim, cuidadosamente fretadas por José Mariano Carneiro da Cunha e tripuladas pelos destemidos “cupins”.
No embarque de 23 de abril de 1888 foram levados 119 “ingleses” (como eram apelidados os escravos), em batelões capitaneados por Guilherme Pinto, destinados à barcaça Flor de Jardim que os levou ao Ceará.
As moças nuas do Capibaribe…
O rio prossegue o seu caminho, falando pela boca do poeta João Cabral:
Sou um rio de várzea, / não posso ir tão ligeiro. / Mesmo que o mar os chame, / os rios, como os bois, são ronceiros.” . . . E depois de comparar sua viagem com a do trem, que tomou caminho diverso ao entrar no Recife, o rio novamente se explica pela boca do poeta:. . . “Diversa da dos trens / é a viagem que fazem os rios: / convivem com as coisas / entre as quais vão fluindo; / demoram nos remansos / para descansar e dormir;/ convivem com a gente / sem se apressar em fugir . . .
Sem qualquer pressa, chega às terras dos antigos engenhos Cordeiro e Torre, deixando Casa Forte e Santana em sua margem esquerda, iniciando-se, assim, através da parte poética da cidade: Cais do Vintém, Porto dos Cavalos, Porto do Cemitério, Forno do Chapéu de Sol, Taquari, Jaqueira, Ponte D’Uchoa, Graças, Porto Jacobina, Cais Ligeiro, Capunga, até chegar a Passagem da Madalena, em sua margem direita, olhando para o Paissandu do outro lado.
Estas localidades, de Apipucos a Madalena, foram outrora destinadas aos “passadores de festas”, apreciadores dos “banhos medicinais”, frequentadores dos banheiros de palha, assim descritos por Louis François de Tollenare, em suas Notas Dominicais, escritas em 1817:
É nas margens do Capibaribe que cumpre ver famílias inteiras mergulhando no rio e nele passando parte do dia, abrigadas do sol sob pequenos telheiros de folhas de palmeira; cada casa tem o seu, perto do qual há um pequeno biombo de folhagem para se vestir e despir. As senhoras da classe mais elevada banham-se nuas, assim como as mulheres de cor e os homens. À aproximação de alguma canoa mergulham até o queixo, por decência; mas o véu é demasiado transparente! Vi neste banho a mãe amamentando o filho, a avó mergulhando ao lado dos netos, e as moças da casa, traquinando no meio dos seus negros, lançarem-se com presteza e atravessar o rio a nado. A posição do corpo requerida por este exercício não deixa ver a quem passa, nem o seio nem parte alguma da frente do corpo, de sorte que elas consideram o pudor resguardado; mas, há outras formas não menos sedutoras que o olhar pode contemplar à vontade. Confesso que fiquei tão surpreendido quanto encantado ao encontrar um dia, neste estado de náiade sem véus, as senhoritas N., filhas de um dos primeiros negociantes da praça. . . É raro encontrar margens mais risonhas do que as do Capibaribe, quando se sobe em canoa até o povoado do Povoado do Poço da Panela.
O rio, na época dos nossos avós, não este que conhecemos e de que nos fala o poeta João Cabral ou seu “cão sem plumas” –. . . “o outro rio/ de aquoso pano sujo/ dos olhos de um cão” –, era o rio das águas límpidas, que permitia ver o fundo de areia branca, cercado de árvores, “cujos ramos superiores se encontravam ou estão ligados por cipós floridos, pendentes em guirlandas”, habitadas por “mil pássaros adornados de brilhantes plumagens”.
Era o rio das capivaras, como bem deduz o seu próprio nome, habitado por peixes das mais variadas espécies e moluscos diversos, em nada se parecendo ao rio que conhecemos e estamos a legar aos nossos netos.
Para nossa lembrança, restamos versos do poeta Austro Costa:
Capibaribe, meu rio,
que vida levamos nós!
Tu corres: eu rodopio. . .
E há quarenta anos a fio:
sempre juntos – e tão sós!. . .