Série "3 Rios, 3 Comunidades, 3 Desafios" apresenta os problemas ambientais e sociais que se entrelaçam na Região Metropolitana do Recife. Ouvimos estudiosos e o poder público sobre como solucioná-los. A produção é apoiada pelo Programa Acelerando a Transformação Digital, desenvolvido pelo International Center for Journalism (ICFJ) e Meta, em parceria com associações brasileiras de mídia. *Reportagem: Rafael Dantas *Fotos: Midiã Tavares Apoio Pernambuco é um Estado de relações conflitantes com as águas. Uma tensão que vai do processo de desertificação no interior às chuvas intensas e enchentes na Região Metropolitana do Recife. A capital é uma cidade anfíbia, entre as águas do mar, dos seus três rios e mais de 100 riachos. Muitos viraram canais, com cursos d’água quase mortos pela poluição. Com o advento das mudanças climáticas, uma série de problemas sociais e históricos, que estavam escondidos nos cantos dos municípios, começaram a surgir aos olhos da cidade formal. Escombros de realidade passaram a emergir nos dias de chuvas mais intensas, cada vez mais frequentes. Nesta série que começamos hoje, visitaremos os problemas mais emblemáticos que habitam às margens do Rio Beberibe, por onde começaremos, seguindo nos próximos meses pelos cursos do Tejipió e do Capibaribe. Nascido nas matas de Aldeia, em Camaragibe, o Beberibe atravessa o Recife e Olinda, se une ao Capibaribe no Bairro do Recife e deságua no oceano. Cada curso d’água tem suas nuances e desafios. O Beberibe, segundo o professor Wemerson Silva, do Departamento de Ciências Geográficas da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), está diretamente relacionado com o alto contingente de comunidades de baixa renda que vivem nas suas margens, em alguns casos dentro do seu leito e em extrema vulnerabilidade social. A vida do rio está implicada com a dos moradores que lhe são vizinhos. “O Beberibe, do médio para o baixo curso, tem uma altíssima densidade habitacional, chegando praticamente sobre a área do rio”, afirmou o docente. Adelma da Silva, 45 anos, mora no bairro de Dois Unidos, no extremo da Zona Norte do Recife. Natural de Cupira, município do Agreste, ela encontrou há 22 anos um lugar para chamar de lar pertinho das margens do Rio Beberibe. Vizinha de outros familiares, ela enxergava na capital mais oportunidades que na sua cidade natal. A primeira casa, que ela diz que era “um barraquinho", não aguentou as cheias que passou a enfrentar em cada inverno. Com as paredes cedendo e chão rachando, ela recorreu aos parentes para reconstruir tudo. “Qualquer chuva que dava já enchia. Todo ano tinha. A casa ficou muito ameaçada, eu tinha medo dela cair com a gente dentro. Minha família ajudou a aterrar 80 centímetros, justamente por causa das águas. Fizemos a base dobrada. Ficou cinco anos sem encher”, lembrou Adelma. Ela pensou que não veria mais as águas do rio entrarem nos seus cômodos e destruírem sua mobília. Mas, no ano passado, em um dia de temporal no Recife, ela saiu de casa com água próximo aos ombros. Após esse episódio extremo, teve até vizinho que abandonou a residência. Mas, a opção para a maioria é continuar e seguir resistindo. Novos moradores, inclusive, chegaram. Em 2023, as águas avançaram até o segundo degrau da casa. Ameaçou, mas não entrou. Mais de duas décadas após sua chegada, com três filhos e agora já com um netinho, Adelma continua convivendo com o medo dos dias e noites de chuvas mais intensas. “Foi algo que eu nunca tinha visto. Antes, a gente já tinha saído com água acima do joelho. Mas, assim do jeito que foi no ano passado, acima dos peitos, eu nunca vi. Os móveis da vizinha da frente ficaram boiando. Perdemos centro, raque, cama. O fogão já ficou dentro d'água umas três cheias”, relatou a moradora. Na saída às pressas da última cheia mais forte, a cama do filho mais novo, Anthony da Silva, 11 anos, foi atingida pelas águas. Os dias de chuvas intensas e alagamentos estão nas lembranças de normalidade da criança. Meio lúdicas, meio amedrontadoras. O rio que o assiste brincando com os amigos ao longo do ano quase o encobriu. “A gente até gosta de passar por dentro d'água que está geladinha. E, às vezes, fico com medo da água aumentar e invadir a casa. Eu tive medo da última vez, quase me cobriu, ficou perto da minha boca. Uma chegou no meu peito, na outra semana ia me cobrindo”. A percepção de Adelma do surgimento de chuvas mais intensas está ligada às mudanças climáticas, na avaliação de Wemerson Silva. “Há uma relação de aumento dos processos de inundação e chuvas com as mudanças climáticas. Os danos são intensificados devido à presença de moradias em espaços que deveriam ser preservados, não ocupados”. Anthony viveu na pele os efeitos dessa mudança do clima do planeta e ficou alguns dias sem cama até receber uma doação. Essa rotina de perder os móveis e eletrodomésticos e lutar para conquistar de novo se repetiu muitas vezes na vida da família de Adelma e das pessoas que moram também do outro lado do Rio Beberibe, já em Olinda. O OUTRO LADO DO RIO Enquanto no lado do Recife as vilas que estão às margens do rio são pequenas, conjunto de casebres que se espremem em meio aos becos que partem da avenida principal do bairro, em Olinda o número de moradores é mais extenso. Centenas de casas ocuparam em 1994 uma área verde da margem no bairro de Passarinho, entre o Rio Beberibe e o terreno da antiga Rádio Olinda. Com a vitória da seleção brasileira na Copa do Mundo, o lugar passou a se chamar Comunidade do Tetra. As primeiras vias abertas, mesmo de barro, ganharam nomes dos jogadores tetracampeões. Quase 30 anos após a conquista daquela copa, a vila permanece sem saneamento, sem uma rua calçada, com muitos postes de madeira, com fiação irregular inclusive que vem do outro lado do rio. As ruas exalam mau cheiro de lixo e dos esgotos que navegam por entre as casas até o Beberibe. E em muitos dias