Arquivos Bruno Moury Fernandes - Página 6 de 6 - Revista Algomais - a revista de Pernambuco

Bruno Moury Fernandes

Superpoderosas (maio/2016)

Você está a dez mil pés. Seu time do coração joga, neste exato momento, a final do campeonato. Você teve um estressante dia de trabalho, na capital federal. Além disso, acima das nuvens, nada de wi-fi, muito menos TV. Você imagina a cena da bola estufando a rede do goleiro adversário, mas logo se dá conta de quão inconfiável é o ataque rubro-negro. Seu assento é o da saída de emergência. Isso mesmo! Aquele que não reclina. Você lembra das palavras da aeromoça, minutos atrás, com instruções sobre como abrir a porta em caso de necessidade. Você pensa em abrir a porta, mesmo sem necessidade. Essa ideia idiota logo lhe abandona. Você não consegue dormir, então pega papel e caneta. Dana-se a escrever. Tenta organizar a agenda do que resta da semana. Você anota que domingo é dia de almoçar com a família. Lembra que é Dia das Mães. E por falar em mãe, você volta a sentir-se culpado por ter, na noite anterior, bisbilhotado aquela mensagem que chegou no celular da mãe dos seus filhos, oriunda daquele grupo de Whatsapp do qual ela não permite que você participe. Mas você pensa em logo agradecer a Deus por ter se atrevido a mexer e por ter se deparado com uma confraria ultrassecreta de mulheres que se intitulam “superpoderosas”. E pensa como é apropriado o nome desse grupo. Praticamente uma seita. E como em toda a seita, o que impera são ideologias e conceitos divergentes dos sistemas dominantes. Nessa confraria ultrassecreta homem não entra, mas você entrou rapidinho. Só uma olhadinha. Lá, somente mães. Tão somente mães de pessoas com autismo. Ali trocam ideias, dividem suas aflições, compartilham sentimentos, frustrações, conquistas. Vibram com a vitória da outra. Estimulam o progresso dos meninos. Divulgam novidades. Tanta mensagem linda, você pensa. De apoio, de amizade. E você lembra o quão raro é o ombro amigo nos dias de hoje. E você descobriu que foi ótimo ter entrado ali e ter dado aquela espiadinha. E descobriu que há tanta força nessas mulheres. Há tanto amor entrega e dedicação. Tanta cumplicidade, bem querer, companheirismo. E é tão bonitinho ver que elas se referem aos filhos como “anjos azuis”. E você lembra que não é somente o fato de todas elas serem mães de pessoas com autismo que as une. Não! Você se dá conta de que há uma energia a mover esse barco onde juntas estão: o amor de mãe. O desejo, talvez inconsciente, de mudar tudo em volta, a sociedade mesmo. O esforço mútuo, contínuo, na tentativa de alterar o curso nada natural do rio. Então você passa a perceber, ainda mais, que a luta diária não é só pelo desenvolvimento dos seus respectivos rebentos. É pela mudança de mentalidade nos outros também. E você pensa em mil maneiras de gritar ao mundo a admiração que possui por essas meninas, mulheres, mães. E você agradece a Deus por existirem Milenas, Danielas, Andréas, Sílvias, Julianas, Cândidas. E você deseja que elas se multipliquem mundo afora. Então você percebe que está emocionado e que está chorando um pouco alto para quem está trancando numa lata velha voadora. E o gordo simpático sentado ao seu lado já está com o braço estendido a oferecer-te um lenço. E a aeromoça, aquela mesma que instruiu sobre a porta, pergunta se você está passando bem. E você tem uma vontade incontrolável de perguntar se essa porta, caso abrisse, nos levaria a um mundo melhor. De mais tolerância, respeito, inclusão, acessibilidade, acolhimento. E ao aterrissar você liga para a mãe dos seus filhos para perguntar o placar do jogo. Com voz doce e suave, ela responde que seu arquirrival foi o vencedor. Então você diz que a ama, que a admira profundamente e que já está com saudade. E antes de desligar você houve ela dizer: “endoidou de vez”. E você sabe que, mais uma vez, ela tem razão. Feliz dia das mães às superpoderosas!

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Meu primeiro encontro com Florbela (abril/2016)

Lisboa, tarde fria de janeiro de 2014. Após alguns imperiais no Ramiro, seguimos a pé, sem destino, rumo às ruas do Chiado. Na companhia de dois amigos que, após poucos minutos de caminhada, cansados, sentaram num café para apreciar um charuto. Em frente, uma livraria. Deixei-os lá entregues ao prazer do tabaco e entrei ali, onde dentro de instantes - ela e eu - nos conheceríamos. Mexi e baguncei tudo o que via pela frente. Não havia orado pelo encontro. Nenhuma reza especial havia feito. Mas dei sorte. Ou seria destino? Bati o olho numa estante lá no fundo da livraria. Pareciam livros fora do circuito. Foi místico. Vi uma coisinha sem cor, meio bege, meio apagada, magrinha, sem graça, sem atrativo. Era ele, o livro. Era (d)ela: Florbela Espanca. Quando li seu nome na capa sabia que já tinha ouvido falar, mas não sabia quando, onde e como. Envergonha-me, hoje, isso. O fato é que não a conhecia, seja superficialmente, seja profundamente. Aquele era realmente nosso primeiro encontro. Danei-me a folhear. Sentei-me ao chão. Fiquei boquiaberto com o que lia. Estava golpeado. Não acreditava. O poder daquela poesia densa, amarga, triste, erótica e egocêntrica, nocauteou-me. Não conseguia parar de ler. Como uma mulher pode ter escrito tudo isso no início do século passado? Florbela me atingiu como um raio. Tudo o que escreveu fez com a alma. Emociona-me a cada encontro. Conheço sua obra há apenas dois anos. Ainda estou a conhecer, na verdade. Sua vida conturbada talvez tenha sido o motor de tanta crueldade nas palavras. Escrevia sem autopiedade. Numa sociedade patriarcal foi corajosa e à frente do seu tempo. Amo Florbela. Às vezes quero encontrá-la, beijá-la, abraçá-la. Nosso primeiro encontro foi inesquecível. Tenho pena, raiva, amor, curiosidade e tesão pela flor, que é bela, e que espanca minha alma com tanto sentimento. Farei uma visita ao seu túmulo este mês, na Vila Viçosa, Portugal, onde nasceu e foi enterrada. Eis uma das várias obras-primas da poetisa alentejana: Fanatismo Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida. Meus olhos andam cegos de te ver. Não és sequer razão do meu viver Pois que tu és já toda a minha vida! Não vejo nada assim enlouquecida. Passo no mundo, meu Amor, a ler No misterioso livro do teu ser A mesma história tantas vezes lida!… “Tudo no mundo é frágil, tudo passa. Quando me dizem isto, toda a graça Duma boca divina fala em mim! E, olhos postos em ti, digo de rastros: “Ah! podem voar mundos, morrer astros, Que tu és como Deus: princípio e fim!…”

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O bom humor

Voando entre Natal e o Recife, lendo a revista de bordo, deparei-me com uma reportagem sobre “os barbixas”, grupo de humoristas. Durante o texto o repórter explica que é difícil arrancar alguma resposta séria dos integrantes do grupo. Levam tudo na brincadeira e no bom humor. Nunca escrevi sobre isso, mas agora o faço: acredito no bom humor como estilo de vida. O pacto que fiz com o bom humor é irrevogável e irretratável. Pode acontecer o que for. E olhe que já aconteceu um lote de merda: AVC na minha madrinha (querida Fatinha), choque (e morte) do meu pai, autismo no meu filho, ligamento do joelho rompido, separação de casais queridos, liturgias cansativas dos ritos processuais no dia a dia da vida forense, seca no Sertão, trânsito caótico, contas pra pagar, etc. Nada disso é capaz de me tirar o bom humor, a alegria de viver. Claro que muitas coisas me entristecem, mas logo vejo o lado positivo em tudo e cuido de extrair da situação alguma coisinha engraçada. É o famoso “rir da própria desgraça”. Não, meu senhor, não é um texto de autoelogio. Não, minha senhora, não estou me “amostrando”, nem me exibindo. Muito menos ficando doido. Estou somente a relatar – porque acredito piamente nisso – que o bom humor cura, ameniza, ensina, empurra pra frente, alivia, engrandece. O sorriso é o alimento da alma. É o que nos faz seguir adiante. Nada forçado. Assim, natural mesmo. Tudo bem que em certas ocasiões posso beirar a tabacudice. Mas ser tabacudo tem lá seus encantos. Quando minha mãe iniciou um relacionamento após ficar viúva, bateu uma ciumeira danada. Coisa boba, de filho. Mas logo cuidei de brincar com as pessoas que, tentando tratar o assunto com seriedade, me diziam “você tem que entender, ela ficou viúva muito cedo”. Minha resposta era sempre ”você diz isso porque não estão comendo sua mãe, tão comendo é a minha”. Pronto! Logo todo mundo caía na risada e o papo sério se transformava em alto astral. Nem por isso deixei de sofrer os problemas que a vida me proporcionou. Mas o bom humor sempre me salvou de tudo e de todos. Lembro que um dia após a morte de painho, estávamos trancados no silêncio profundo do quarto de mãe. Eu, ela e Edmar, meu irmão. Em meio àquelas horas de silêncio fúnebre e no seio daquela tristeza imensa, arrisquei dizer que “dessa vez Deus botou sem cuspe e lambuzado na areia” (perdoem a heresia). E meu irmão emendou com um “tomamos no oiticica”. Assim, caímos na gargalhada, e depois choramos. Choramos muito. Até hoje a gente chora. Mas nunca deixamos de intercalar esses choros com muitas risadas. Doido, eu!? Sou nada! Eu sou é bem humorado. Só isso. Mas peço a Deus que pegue leve porque não sei até onde aguento. Tenho medo de ficar sisudo e amargurado. Se isso um dia ocorrer, peço que me enterrem vivo porque não suportarei ficar por aqui. Aliás, se eu perder a capacidade de rir de tudo é porque, na verdade, já estarei morto.

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