*Por Leonardo Dantas
No Brasil Holandês (1630-1654), tempo em que ainda não se encontrava solidificado o sentimento nativista e a consciência de uma pátria, como a temos nos dias atuais, a deserção era fato corriqueiro dentro das fileiras dos exércitos litigantes.
No seu relato, o soldado Ambrosius Richshoffer, que escreveu o Diário de um soldado da Companhia das Índias Ocidentais, registra constantes fugas das hostes holandesas e de outras, particularmente de mouros (negros) e brasilianner (índios), do lado das forças da resistência; os primeiros chegaram a formar um regimento e esses últimos, graças ao seu conhecimento das trilhas e veredas do território ocupado, foram de grande valia para a causa dos holandeses.
Do lado dos holandeses torna-se notável o número de mercenários franceses que fogem em busca de refúgio do lado contrário, talvez por sua condição de católicos e por não suportarem a fome que lhes fora impingida durante o cerco do Recife; “os desertores são na sua maioria franceses, de sorte que os desta nacionalidade estão sendo muito suspeitos e odiados entre nós”, relata Richshoffer.
O caso de um agente duplo aparece nas crônicas holandesas, durante o período da Guerra de Resistência. Trata-se do holandês Adriaen Verdonck, natural de Brabante e morador na vila de Olinda, quando da invasão em 1630. Para angariar simpatias do Alto Conselho, tomou para si a tarefa de escrever um longo relatório acerca da situação da vila de Olinda, particularmente no que diz respeito a lugares, aldeias e comércio, “bem como Itamaracá, Paraíba e Rio Grande, datado de 20 de maio de 1630”, conforme consta no Relatório de Adriaen Verdonck, publicado por José Antônio Gonsalves de Mello.
Com isso, ele adquire as simpatias dos holandeses, chegando a privar do convívio em seus passeios e da própria refeição do general comandante Theodorus van Waerdenburch (Jonkheer Diederick van Waerdenburch), tomando assim conhecimento de informes preciosos do desenvolvimento da guerra. Tudo caminhava sem atropelos até que, em dada de 26 de dezembro de 1630, segundo registra Richshoffer em seu Diário:
Passou-se para o nosso lado um mouro [negro escravo] do inimigo, que referiu haver entre a nossa gente um traidor, que diariamente vai ter com os nossos adversários na floresta, e lhes dá notícia da força que guarnece todos os nossos postos, dos navios que chegam da pátria, e quantos soldados, víveres e munições trazem.
A denúncia toma corpo a 15 de janeiro, quando um escravo de Adriaen Verdonck vem a ser reconhecido por um indígena, que se passa para o lado holandês, adiantando ser ele o portador das cartas destinadas a Matias de Albuquerque de três em três dias, comunicando-lhe todos os nossos planos, e revelando-lhe tudo o que se passava ou lhe era confiado.
O agente espião foi de imediato recolhido à prisão, com ferros nas mãos e nos pés e lá fica recolhido até que novas acusações lhe foram feitas, inclusive por um velho monge português, que vem a ser libertado pelos holandeses, mas cujo nome não é revelado. Diante das denúncias, a partir de 3 de abril o prisioneiro vem a ser submetido a contínuas sessões de torturas, sendo levado ao potro [cavalete de atormentar; instrumento de suplício] e à prancha [instrumento de suplício], e assim foi obtida a sua confissão. Desesperado, tenta ele o suicídio, atirando-se por um pequeno buraco que havia junto à prisão com o propósito de quebrar o pescoço. Sofreu apenas um pequeno buraco na cabeça, sendo em seguida ainda mais severamente torturado e melhor guardado.
Não suportando as torturas que lhe foram impostas, Adriaen Verdonck vem a falecer na noite anterior ao dia da sua execução, 10 de abril de 1631.
Não se conformando com a morte de Verdonck, as autoridades holandesas determinaram que fosse o seu cadáver retirado da prisão e arrastado pelas ruas por quatro mouros até o lugar da execução onde, após a leitura da sentença condenatória, veio a ser estrangulado, como narra Richshoffer, em seu Diário:
Ali, em virtude da condenação, foi estrangulado, sendo-lhe cortados dois dedos e a cabeça. Em seguida foi esquartejado; colocaram a cabeça num alto poste no hornaveque do forte de Bruyn, e o quarto junto ao Vijfhuck ou Trots den duivel [orgulho do diabo]; o outro foi pendurado numa forca diante da trincheira nova kyk in de pot [olha para dentro do pote]. Os outros dois [quartos] foram mandados para Olinda, devendo um ser pendurado da mesma forma no monte e o último no lugar em que a nossa gente foi abatida a 3 de janeiro último [1631].