*Por Rafael Dantas
As crianças estão tendo acesso às tecnologias cada vez mais cedo e por mais tempo. Em uma sociedade completamente mergulhada em um mundo virtual, os pais dessa geração de “nativos digitais” têm tido dificuldades para tirar os filhos dos ambientes online. O tempo excessivo nas telas dos celulares, tablets ou computadores provoca impactos e riscos que merecem atenção das famílias e também do poder público.
Pesquisa do Cetic.br – centro de estudos vinculado ao Comitê Gestor da Internet no Brasil, com o respaldo da Unesco – apontou que 95% das crianças e adolescentes, com idades entre 9 e 17 anos, fazem uso da internet no território nacional. Predominantemente, a conexão se dá por meio de dispositivos móveis, com a grande maioria optando pelo uso do celular.
O estudo constatou que 24% dos participantes da pesquisa afirmaram ter iniciado sua conexão com a internet antes mesmo de completarem 6 anos de idade. Essa proporção representa um notável aumento em relação a 2015, quando apenas 11% dos entrevistados indicaram ter começado a se conectar nessa faixa etária.
O acesso precoce pode trazer problemas sérios relacionados ao desenvolvimento até motor das crianças, segundo a doutora em psicologia Itala Daniela. A professora da Faculdade Nova Roma, que integra o Grupo de Pesquisa Fenomenologia e Práticas Corporais da USP (Universidade de São Paulo), em Ribeirão Preto, afirma que ao refletir sobre o impacto das tecnologias na infância, é importante atenção aos estágios de desenvolvimento infantil.
“A criança precisa passar por experiências sensoriais, olfativas, perceptivas, para desenvolver aquilo que a gente chama de processos psicológicos básicos, que é a percepção, a sensação, a atenção, a linguagem, a memória, a emoção, a motivação. Isso vai desenvolver na capacidade de aprender e de construir inteligência”, explica a professora. “No momento em que a criança está exposta à tela, alguns desses processos psicológicos básicos, inclusive físicos, acabam por não ser desenvolvidos e estimulados como deveriam ser. O uso das tecnologias pode afetar inclusive a coordenação motora”, alerta.
Itala explica que faz parte do desenvolvimento da criança viver experiências sociais e físicas típicas da infância, como brincar, correr, interagir com outras, ter estímulos sensoriais diversos. São processos de percepção, de equilíbrio, de desenvolvimento do movimento de pegar objetos, que vão influenciar no desenvolvimento motor fino e percepção de lateralidade (diferenciar direita e esquerda).
“Tudo isso só é conquistado quando a criança é estimulada em cenários diversos de sociabilidade. No momento que a gente reduz essa interação à tela, estamos tirando tanto esse desenvolvimento físico, como esses múltiplos estímulos necessários para o desenvolvimento infantil e, portanto, para o desenvolvimento dos processos psicológicos básicos”, explicou a doutora em psicologia.
A decorrência do tempo maior de telas – com os excessos de luminosidade e de informações –nesse período da vida geram dificuldades na atenção e no desenvolvimento psicomotor, neuromotor, neuromuscular. Os pequeninos começam a ser prejudicados até com a postura e com os movimentos repetitivos, que influenciam também a sociabilidade da criança, porque ela deixa de interagir com o meio e passa a interagir com uma tela. A professora afirma que isso afeta diretamente o desenvolvimento da maturação cognitiva, linguística e corporal.
Professor da Universidade Federal de Pernambuco e da Cesar School, Luciano Meira, lembra que a Organização Mundial de Saúde recomenda zero tempo de uso para crianças até 2 anos de idade e no máximo uma hora diária – que ele considera até excessivo – para crianças dos 2 aos 6 anos de idade. “O uso excessivo do tempo e o mau uso têm provocado um conjunto de efeitos negativos, mas não estão limitados à adição de telas. As pessoas ficam excessivamente conectadas causando uma certa dependência, inclusive, já relatada também pela OMS, em que não se pode ficar sem essas coisas porque causaria ansiedade, eventos de depressão, distúrbios de sono”.
MAIOR ATENÇÃO ÀS REDES SOCIAIS
Luciano explica que os efeitos nos meninos e meninas têm sido diferentes, pelo tipo de consumo. Enquanto os garotos passam mais tempo proporcionalmente em jogos online, as garotas estão mais conectadas às redes sociais que ele considera perturbadoras da autoconfiança das pessoas, principalmente em crianças e adolescentes.
Entre os fenômenos negativos que estão mais relacionados às redes sociais que a outras formas de consumo online estão a normalização da automutilação e a promoção de padrões de vida e de beleza que são irreais. “Há um efeito de promoção de um corpo supostamente perfeito, de uma vida supostamente perfeita, que obviamente não existem. Isso causa crises de autoestima. As meninas, segundo as pesquisas, estão mais conectadas. Todo mundo está submetido a algum tipo de estresse, sejam redes sociais ou jogos online. Embora as meninas estejam bem mais, porque acessam mais as redes sociais, que têm esse caráter degenerativo da autoestima das pessoas. Os meninos estão menos expostos a interações dessa natureza, porque acabam preferindo os jogos online, porém não estão isentos. Mas nos dois casos existe bullying cibernético”, destacou Luciano Meira.
O docente explica que o mergulho nesse mundo virtual resulta na redução do tempo de exposição das pessoas a atividades face a face, com outras pessoas em ambientes criativos. Luciano alerta que diante desse cenário as chances de ter eventos de estresse emocional, de melancolia, de depressão, de ansiedade e de distúrbios do sono se acumulam, com fortes consequências sobre a saúde física, mental e intelectual das pessoas.
PARA ENFRENTAR A DEPENDÊNCIA DAS TELAS
Os pais estão no centro das soluções para reduzir o tempo de exposição das crianças às telas. A missão, porém, não é fácil, quando eles estão conectados, seja pelas redes sociais ou por trabalho em boa parte do dia. Itala destaca, inclusive, que o primeiro desafio é dos próprios pais compreenderem o uso saudável e os objetivos do acesso à web. Tanto deles, como dos seus filhos. “É a primeira geração de pais de crianças que nascem na era da tecnologia, no entanto esses pais também estão mergulhados nessa tecnologia. Tivemos um boom de mergulho tecnológico. Eles precisam primeiro entender os limites”.
No contexto de pressões da vida adulta, as telinhas são uma fuga das frustrações e sentimentos. “É preciso compreender os danos que estão sendo causados aos próprios pais”, alerta. “A gente tem um contexto social de uma medicalização em excesso, de uma patologização em excesso e de um consumo excessivo de vários outros estímulos”, afirma Itala.
A intervenção maior desses pais que pode ocorrer na vida dos pequeninos envolve o equilíbrio e a orientação. “É crucial estabelecer limites de tempo de dispositivos e promover atividades ao ar livre”, afirma Luno Gomes, professor na área de tecnologia na Rede Wyden e especialista em gestão educacional e empresarial.
Diante das pressões da vida adulta, também repleta de ansiedades, Luno menciona que é comum que os pais entreguem o telefone para que as crianças se conectem aos entretenimentos virtuais para se acalmar. “Então, nós acabamos dando orientações erradas e não estabelecendo esse equilíbrio. As empresas não estão visualizando isso. Elas têm um propósito que é fazer as vendas. Então, essa preocupação tem que estar principalmente com os pais. É preciso incentivar mais atividades ao ar livre, de leitura, em papel físico”.
O docente, que é também é pai, desenvolveu uma estratégia em casa para controlar de forma lúdica o tempo que a filha passa diante das telas. Luno criou um “token” de acesso para a filha. É um conjunto de cartões, em que cada um vale 30 minutos de tempo de tela. Ao longo do mês, ela deposita em um cofrinho os cartões todas as vezes que vai usar o celular ou a televisão.
“Eu tenho uma tabelinha, os “tokens”, que imprimi, plastifiquei, e entrego para ela, que tem um cofrinho para depositar. Então, ela acaba brincando bem mais do que usando o telefone”, afirmou Luno. Ele conta que os próprios dispositivos digitais têm alertas de tempo de uso e bloqueios programados, que podem ajudar no controle dos filhos.
Além do tempo, uma preocupação no radar da família está relacionada aos conteúdos. Os pais precisam participar da curadoria do que os filhos estão assistindo, jogando ou acessando nas redes. Ter um perfil em uma rede social, sem a vigilância dos pais, é uma porta aberta para riscos graves de segurança.
O docente cita que nessa questão do comportamento do usuário no universo online, há derrapadas até simples de serem resolvidas, como o respeito à classificação etária. Muitos pais não estão atentos ou mesmo permitem que os filhos consumam conteúdos que têm expressamente indicações para faixas etárias maiores.
Muitas polêmicas, por exemplo, ocuparam o debate após o lançamento do filme Barbie. O longa-metragem, porém, tinha classificação indicativa acima dos 12 anos. Apesar de ter seus personagens baseados em brinquedos, a classificação indicava que a obra tinha atributos de violência, linguagem imprópria e temas sensíveis. A atenção à classificação etária não é o único indicativo a ser observado. Luno lembra que mesmo plataformas ou serviços com o selo de “kids”, nem sempre, de fato, têm uma curadoria educativa e adequada às crianças.
Luciano Meira afirma que a orientação dos pais tem um caminho “padrão” que é o diálogo com os filhos. “A primeira recomendação talvez seja a mais difícil de proporcionar: é construir um ambiente de diálogo na família, na casa. Um ambiente de diálogo quer dizer que a criança, o jovem adulto, chegará para contar o que está fazendo ao ser perguntado: o que você está acessando? A primeira coisa será sempre estabelecer um ambiente de confiança em que o diálogo seja o primeiro e mais central instrumento de acompanhamento, de acolhimento dessa criança, desse adolescente”.
Ele faz uma ressalva de que o diálogo talvez não funcione sozinho, havendo a necessidade do disciplinamento. “Então é um D de diálogo e outro D de disciplinamento. É dizer: ‘você só vai usar x horas por dia e você não tem o seu próprio celular, você usa esse aqui, esse é da casa’. Cada família vai ver como se arranja. A criança tem que ser disciplinada ao uso: ter um tipo de limitação temporal, que é recomendado pelos especialistas. Há instrumentos para fazer o disciplinamento, instrumentos tecnológicos para bloquear o tempo, mas também bloquear acesso que é o terceiro item dessa equação ou seja, permitir acesso somente às coisas que são curadas pela própria família”.
Para avançar no conhecimento dos caminhos para proteger seus filhos na web, Luciano Meira recomenda que os pais acessem sites especializados, como o SaferNet Brasil ou o CGI (Comitê Gestor de Internet no Brasil).
SEGURANÇA NA WEB
Se o impacto no desenvolvimento infantil e os riscos de consumo de conteúdos inadequados já seriam motivos suficientes para uma atenção redobrada à vida online dos pequenos, há problemas ainda mais agudos nesse passeio infantil pelo mundo digital.
“As dificuldades enfrentadas pelos pais de hoje vão desde a falta de consciência dos riscos e perigos online para crianças e adolescentes até a dificuldade em saber como proteger filhos na internet. Alguns pais e mães sentem total segurança ao ver que os filhos estão em casa, em seus quartos usando o celular, desconsiderando que as interações deles na internet oferecem riscos e perigos, tais como: ser alvo de xingamentos, cyberbullying, ameaças, aproximação de adultos mal intencionados, pedido de produção de imagens íntimas, consumo de conteúdos de pornografia, dentre outros”, afirmou Kelli Angelini especialista em educação digital e direito digital e autora do livro Segredos da Internet que Crianças e Adolescentes Ainda não Sabem.
Acerca das ameaças das crianças “livres” na web, ela compara com os riscos que teriam se estivessem na rua, sem o acompanhamento de um adulto. “Crianças e adolescentes na internet estão soltas numa rua pública digital. Assim como correm riscos quando saem numa rua física também enfrentam riscos e perigos online”.
Diante da ausência de filtros ou proteções para filhos na web, eles estão expostos a consumir conteúdos inapropriados. A especialista menciona que um garoto de 8 anos acessou um site de pornografia do computador de casa e a mãe só percebeu que ele estava assistindo a esses conteúdos quando entrou no quarto para guardar roupas e se deparou com a cena. Ela não sabia que deveria colocar filtros de acesso a conteúdos.
Em seu livro, Kelli conta mais de 40 casos reais de jovens que se deram mal online porque foram vítimas de cibercriminosos ou porque praticaram infrações ao usar a internet. Apesar dos alertas, ela também descreve casos positivos, de jovens que usam a internet para potencializar o bem social.
Kelli Angelini afirma que há vários caminhos para proteger as crianças dos conteúdos impróprios. “O primeiro é a conscientização. Saber que a internet não tem filtros ou proteção para crianças e adolescentes e que oferece riscos e perigos para elas é fundamental. Pais e mães também precisam colocar limites para tempo e horários das telas, filtros para conteúdos, inclusive usando controle parental, manter diálogo aberto em casa para instruir os filhos sobre perigos e oportunidades online e para se manterem à disposição caso os filhos precisem de ajuda”.
Apesar de pontuar todos os sinais de alerta, os especialistas não demonizam a internet. Muitos dos seus usos são recomendados, contribuem inclusive para a educação e integração dos jovens no mundo digital no qual a sociedade brasileira está imersa.
Além dessa ressalva, outro aspecto é que a atenção ao excesso de uso de tecnologia por parte das crianças tende a escalar para uma esfera pública bem mais ampla que o contexto familiar. Os efeitos maléficos do uso desses dispositivos no processo de aprendizagem e na própria saúde das crianças, segundo os especialistas, já é vastamente tratado no meio acadêmico e tem exigido políticas públicas. Comparando com o famoso provérbio africano que diz que “é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”, a formação dos pequeninos na aldeia global digital que vivemos é um desafio que não pode ser exclusivo dos pais.
*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)