Descarbonização: etanol na transição energética

*Por Rafael Dantas

A eletrificação da frota de veículos é uma tendência sem volta em um mundo que luta contra as emissões de carbono. No entanto, a disponibilidade brasileira de etanol e a estrutura socioeconômica do País apontam para uma transição de descarbonização híbrida. O modelo a ser adotado pela indústria automobilística do País tem impacto direto em Pernambuco, visto que o Estado possui tanto uma montadora, em Goiana, como uma das gigantes do fornecimento de baterias, em Belo Jardim, além de ter também tradição no setor sucroenergético, fornecedor de etanol.

Diante da pressão global pela descarbonização da mobilidade brasileira, as expectativas do mercado são do aumento da produção de veículos elétricos alimentados a bateria (BEV) e ao etanol. Além dessa aposta de migração para o carro 100% elétrico mais lenta e gradual, a expectativa das empresas do setor e da sociedade civil organizada é de que essa virada comece pelos ônibus.

“O Brasil passará por um processo de eletrificação gradual dos seus automóveis. Isso não tem a ver com modismo, mas bastante a ver com a legislação. Ela é também, em muitos casos, indutora de inovação. Tira as pessoas e empresas de uma situação de acomodação para que busquem a inovação”, afirmou Luiz Mello, diretor de baterias industriais, BESS, Lítio e Rede de Serviços da Moura.

Apesar das definições serem internas, a agenda de transição é internacional, diante do aquecimento global, com suas previsões catastróficas. “Até 2050 precisamos alcançar a meta de atingir o equivalente a 10% do que emitimos hoje no planeta de CO2. É urgente a mitigação das emissões”, destaca o vice- -presidente de Compliance de Produto da Stellantis na América do Sul, João Irineu.

Ao fazer uma comparação entre o cenário do Brasil e do mundo, ele destaca que o País está melhor posicionado mas defende que todos precisam contribuir nessa agenda climática global. “O setor de energia é responsável por dois terços das emissões de CO2 no mundo para gerar energia e transporte. No Brasil é um quarto, porque temos uma matriz energética favorável nesse aspecto. Mais de 85% da nossa energia é renovável, de baixo carbono”, destacou.

Dentro do setor de transporte no Brasil, os caminhões são responsáveis por 45% das emissões de CO2, enquanto que os veículos de passeio e comerciais leves representam 41%. Completam essa lista os ônibus, com contribuição de 11%, e as motos, com 3% de emissões. Os números são de um combinado de estudos do SEEG (Sistema de Emissões de Gases de Efeito Estufa), do Observatório do Clima, do Boston Consulting Group e do Cait, ranking global de emissões do World Resources Institute. “Da frota circulante de 44 milhões de carros, 2 milhões são veículos pesados e 42 milhões são veículos leves. Ou seja, 5% da frota é responsável por 56% das emissões”, destacou o diretor da Stellantis. “Todo mundo tem responsabilidade e tem que fazer o dever de casa”.

As metas da empresa são, inclusive, mais ousadas do que aquelas assinadas nos compromissos internacionais com o clima. A Stellantis projeta reduzir 50% das emissões catalogadas em 2021 até 2030, quando será feito um novo inventário.

Enquanto o mundo tem observado as emissões diretas dos carros (exclusivamente o que sai do escapamento do veículo), há um conjunto de especialistas que têm defendido observar toda a cadeia produtiva do processo de fabricação, desde a extração da natureza ao transporte e matéria-prima dos seus componentes. É um cálculo do poço à roda. Ou seja, nessa conta, o etanol brasileiro possui patamares de emissões bem próximos aos dos identificados em toda a cadeia dos carros elétricos. Daí está a competitividade do setor sucroenergético na pauta de descarbonização.

“O CO2 fóssil não é renovável, vai para a atmosfera e acumula. Mas todo CO2 que sai na combustão do motor etanol é capturado pela plantação da cana-de-açúcar da próxima safra. O CO2 que sai da frota que está rodando com etanol ao longo do ano está sendo capturado pela plantação de cana-de-açúcar que está crescendo e que vai gerar o etanol da próxima safra. Ele só não é 100% renovável, mas é baixo carbono porque se usa ainda muita máquina diesel para produzir e distribuir o etanol. Caminhões, colheitadeiras, serviços de irrigação ainda usam diesel. Por isso, o etanol é entre 70% a 80% renovável”, afirmou João Irineu.

O presidente do Sindaçúcar-PE, Renato Cunha, afirma que o setor tem avançado em iniciativas para reduzir as suas emissões, bem como tem avançado no desenvolvimento de combustíveis para outros setores. “O setor sucroenergético é pioneiro nessas iniciativas e caminha com avanços no transporte agrícola com o biogás e biometano, também na rota do chamado SAF (sustainable aviation fuel – combustível de aviação sustentável), assim como, no abastecimento verde de combustíveis marítimos. A atividade do setor envolve ciclos de produção sustentáveis, notadamente pela biomassa da cana com seus derivados, que representam cerca de 16% de nossa matriz energética”, afirmou Renato Cunha.

Em Pernambuco, a safra que terá início de moagem entre julho e agosto deve resultar em produção e processamento de mais de 14,5 milhões de toneladas de cana e no mínimo um milhão de toneladas de açúcar e em torno de 370 milhões de litros de etanol.

Para incentivar o setor, a grande expectativa fica por parte do Renovabio, programa que envolve as distribuidoras de combustíveis e as usinas de etanol e de biodiesel. De acordo com Renato Cunha, o objetivo desse sistema é que as distribuidoras tenham metas de compras de Certificados de Descarbonização para compensação por distribuírem combustíveis fósseis. “Constitui-se em um programa de incentivos aos créditos de carbono, bem consolidado, inclusive com penalidades financeiras para o não cumprimento de metas. Assim, os programas de descarbonização, para terem mais eficiência, necessitam de compromissos bilaterais que não fiquem apenas no voluntarismo das partes”.

APOSTA EM CARROS HÍBRIDOS PARA DESCARBONIZAÇÃO

Quando colocado na balança todo o processo de produção e uso dos veículos e não apenas os resíduos que saem do escapamento, a contribuição do etanol para a descarbonização dos transportes se aproxima muito do desempenho do carro elétrico. Como o País ainda não tem uma cadeia para produção de baterias elétricas e como o custo dessa transição ainda é muito elevado, a Stellantis promete uma transição mais gradual. Em outras palavras, a multinacional promoverá a descarbonização da sua frota combinando o etanol e a eletrificação.

A montadora produzirá um percentual de seus veículos 100% elétricos, com baterias de alta capacidade. Mas, em paralelo, irá fabricar modelos com menor potência elétrica e capacidade de bateria, mas que funcionem também com etanol. Esse caminho permite ao País ter tempo para desenvolvimento de novas indústrias que suportem as demandas das novas frotas, ao mesmo tempo que permitirão aos consumidores brasileiros veículos mais acessíveis, pois os carros elétricos com baterias que fornecem maior autonomia estão chegando ao mercado consumidor ainda muito caros.

João Irineu lembra que se a opção do mercado fosse fazer uma transição rápida para os modelos BEV, haveria um alto impacto da cadeia produtiva automotiva de hoje, no Brasil. Ela jogaria fora todas as linhas de produção de sistemas de refrigeração, do motor, da transmissão, do sistema de escapamento e de alimentação de combustível. Além disso, como o País não tem fábricas de bateria, todo esse equipamento, que corresponde entre 30% e 40% do BEV, seria importado.

“Enxergamos uma forma de buscar um equilíbrio ambiental, social e econômico não jogando a cadeia de motores fora, mas continuar produzindo os motores de combustão interna, sistemas de refrigeração, escapamento. E agregar ao sistema de combustão um sistema de eletrificação de entrada, com uma bateria 40 vezes menor à de um carro elétrico, que chega a ser acessível nos segmentos médios e de entrada. Assim desenvolvo uma cadeia de eletrificação para pequenos motores elétricos e pequenas baterias”.

Além da mudança da frota, para alcançar o patamar de neutralidade de carbono (net zero) em 2038, João Irineu declarou que a montadora investirá nos próximos anos também para compensar as emissões por meio da captura natural ou artificial do CO2. “A captura natural é investir em florestas, em crescimento de árvores para capturar CO2, ou quimicamente será filtrar o ar, tirar o CO2 dele e enterrar. Investir em equipamento. Para fazer 50% de redução de emissões em 2030 e o net zero em 2038 existem duas ações: de tecnologia de produto e de processos na cadeia inteira”.

Embora a expectativa seja do avanço da frota de carros elétricos, o etanol brasileiros tem ainda um longo percurso na matriz energética dos transportes individuais no País, com a aposta nos modelos híbridos. “O hibridismo de uso de várias fontes, sobretudo pela relação ambiental e socioeconômica de custo x benefício, será a realidade que envolverá o caminho das matrizes energéticas de muitos países. A agricultura tropical com a agroenergia terá um espaço de relevo, tanto na produção do etanol para uso direto em motores, como com espaços mercadológicos para aqueles que se destinam às misturas com os fósseis, o que já ocorre em cerca de 70 países”, afirmou Renato Cunha.

DEBATE TRIBUTÁRIO ESTÁ NO CAMINHO DA ELETRIFICAÇÃO VEICULAR

Luiz Mello considera que o crescimento da escala dos veículos elétricos é que permitirá a sua redução de custo e uma maior popularização. “Quem compra um celular de última geração vai pagar duas vezes mais caro que o anterior. Nessas novas tecnologias isso é comum. Acreditamos que essa curva de redução do custo passa pela escala”, afirmou o diretor da Baterias Moura.

LUIZ MELLO: “As compras de equipamentos para geração de energia de fontes renováveis, verdes, no Brasil têm isenção de impostos, como ICMS e IPI. Por que não termos uma redução para viabilizar também a mobilidade verde?”

Além da redução de preço proveniente do aumento da produção, ele destaca que no caso brasileiro há uma discussão a ser amadurecida sobre a carga tributária. “Se precisamos e queremos contribuir para um mundo melhor e mais saudável, a legislação tributária tem que dar esse suporte, pois parte significativa do custo do automóvel está nos impostos. Por que não temos uma legislação que entenda essa necessidade e faça curva de entrada, reduzindo esses tributos paulatinamente? As compras de equipamentos para geração de energia de fontes renováveis, verdes, no Brasil têm isenção de impostos, como ICMS e IPI. Por que não termos uma redução para viabilizar também a mobilidade verde?” questiona Luiz Mello.

Ano após ano, a geração de energia solar vem quebrando recordes no Brasil. Esse sucesso tem o suporte do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da Indústria de Semicondutores, que zera quatro tributos (Imposto de Importação, Imposto sobre Produtos Industrializados e o Programa de Integração Social e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido), sobre a produção de chips e de semicondutores, até o final de 2026.

DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO

Um dos desafios da transição para a eletrificação da frota de veículos é a garantia da longevidade das baterias. Esse é um dos focos do desenvolvimento tecnológico dentro do ITEMM (Instituto de Tecnologia Edson Mororó Moura). “Ao longo dos anos temos pesquisado sobre como as baterias inteligentes podem performar melhor nos veículos e estender a sua vida. Como o carro elétrico é caro, há um esforço especial para estender a vida útil da bateria para torná-la a mais longeva possível. Talvez permitir que sequer exista a substituição da bateria”, afirmou Spartacus Pedrosa, diretor executivo do ITEMM.

O instituto possui 60 pesquisadores, entre suas unidades no Recife e em Belo Jardim. Spartacus afirma que a equipe realiza tanto testes em baterias mais simples, homologadas em poucos meses, como processos mais complexos, que envolvem vários parceiros e demoram alguns anos entre a ideação, os testes em campo e a homologação final.

Foi por meio do ITEMM que a Moura estabeleceu um consórcio com a Volkswagen Caminhões e Ônibus (VWCO) para desenvolver o caminhão e-Delivery, um veículo elétrico. A empresa pernambucana foi a responsável pelo fornecimento dos sistemas de baterias de lítio, por meio da parceria com a chinesa Contemporary Amperex Technology Co. Ltd. (CATL). Os sistemas de baterias foram produzidos na unidade industrial de Lítio em Belo Jardim. Após a produção em Pernambuco, os sistemas seguem para a fábrica da VWCO, na cidade de Resende, onde a Moura está na linha de produção do caminhão.

Além de atuar no desenvolvimento, a empresa foi a primeira cliente da VWCO, ao adquirir um desses caminhões eletrificados. O e-Delivery 14 toneladas têm potencial para deixar de emitir quase 20 toneladas de CO2, o que equivale ao impacto positivo de plantar mais de 60 árvores em um ano.

AVANÇO NA ELETRIFICAÇÃO DOS ÔNIBUS DEVE CHEGAR PRIMEIRO

Apesar das experiências com os caminhões e com os veículos elétricos que já circulam nas cidades, é com os ônibus que Luiz Mello projeta uma transição mais acelerada de eletrificação no Brasil. “Acreditamos que a eletrificação plena chegue primeiro nos ônibus, nos veículos de transporte coletivo nas grandes cidades. Já existe essa conscientização das nossas autoridades da importância de transformar esse foco de agressão à saúde das pessoas em algo saudável. Eles devem ser transformados em elétricos primeiro que os automóveis por força de lei”, avalia o diretor da Moura.

Para incentivar o debate sobre a transição dos coletivos para o uso de veículos eletrificados, um grupo de seis organizações não- -governamentais (iCS, Idec, ICCT, ISS, ITDP e WRI) produziram no ano passado uma carta ao Ministério do Desenvolvimento Regional propondo a criação de programa de aluguel de ônibus elétricos. “A ideia foi desenvolver uma proposta com a qual o Governo Federal pudesse ajudar profundamente as cidades a eletrificarem suas frotas, mas com melhora de serviço e eventual alívio nas tarifas cobradas aos usuários”, disse Rafael Calábria, coordenador de Mobilidade Urbana do Idec (Instituto de Defesa do Consumidor).

Ele propõe que em vez de só emprestar dinheiro às empresas, o Governo Federal desenvolva um modelo de aquisição dos ônibus e repasse aos municípios, sem custos para eles. “Dessa forma, além da frota nova e não poluente, há um apoio financeiro à prefeitura, que pode facilmente aumentar a frequência do serviço ou reduzir a tarifa. Como o Governo Federal tem mais capacidade financeira, ele consegue fazer um pedido maior, em escala, e com isso, também se aquece as indústrias do setor e reduz o preço do veículo gerando impacto no País todo. Por fim, em vez de comprar o veículo, outra ideia é que o Governo Federal faça um aluguel da frota, dessa maneira ele não vai precisar lidar com a frota velha ao final do programa, e terá no contrato uma empresa responsável pela manutenção”. O Chile, em especial a capital Santiago, é a inspiração desse modelo.

Calabria afirma que o governo se interessou pelo projeto e que há por parte dos municípios uma pressão de prefeitos para que esse debate saia do papel. “As empresas fabricantes de veículos também se interessaram bastante, pois conseguiriam ter um aquecimento na fabricação e direcionar suas linhas de montagem para veículos mais sustentáveis, beneficiando até os negócios que eles realizariam fora do programa. O horizonte inicial é incluir a proposta no PPA (Plano Plurianual) do governo, para que entre no orçamento dos próximos quatro anos”. Como o PPA será aprovado no final do ano, o diretor do Idec avalia que os pormenores do projeto só devem se definir a partir de 2024.

A transição energética é mais complexa do que uma simples substituição de um motor. Há várias outras definições e investimentos nesse processo, como o desenvolvimento de uma maior infraestrutura de postos de carregamento rápido, além de como se dará a durabilidade e o descarte desses veículos. Como Pernambuco tem atuação em vários elos dessa cadeia, os rumos adotados na descarbonização dos transportes podem afetar várias empresas no Estado.

*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)

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