"É Preciso Pensar A Casa Como Parte Da Cidade E Seus Espaços Públicos" - Revista Algomais - A Revista De Pernambuco
"É preciso pensar a casa como parte da cidade e seus espaços públicos"

Revista Algomais

O atual modelo brasileiro de habitação destinado às populações mais pobres é contestado pelo arquiteto, professor da UFPE e coordenador-geral do Projeto Recife Cidade Parque, Roberto Montezuma. Ele defende que não basta oferecer a casa. É preciso integrá-la à cidade e promover o acesso dos moradores a infraestrutura, serviços, lazer e áreas verdes. O tema será debatido em seminário nesta semana.

á décadas, o Brasil tenta resolver o problema da habitação para os mais pobres erguendo conjuntos habitacionais nas periferias das cidades. São casas com acesso deficitário a infraestruturas, distantes dos locais de trabalho dos moradores e de serviços como escolas, atendimento médico, e de áreas verdes e de lazer. Além de impactar a qualidade de vida dessas populações, esse modelo resulta em problemas na mobilidade e repercute em prejuízos para toda a cidade. 

Para contrapor a visão de conceber a residência sem estar articulada ao meio ambiente, às infraestruturas e às maneiras adequadas de uso e ocupação do solo, surgiu o conceito de habitabilidade que defende uma concepção de moradia integrada à cidade.  

Nos próximos dias 6 e 7 de agosto, arquitetos, urbanistas, gestores públicos, representantes de moradores de comunidades vulneráveis e agentes financeiros vão debater a habitação popular sob esse prisma durante o II Seminário Recife Cidade ParqueOs Desafios da Habitabilidade no Recife. Será no auditório do Espaço 235 e a realização é do Projeto de Pesquisa de Desenvolvimento e Inovação Recife Cidade Parque (fruto de um convênio entre a Universidade Federal de Pernambuco e a Prefeitura do Recife) em parceira com as Secretarias Municipais de Desenvolvimento Urbano e de Habitação.

Nesta conversa com Cláudia Santos, o arquiteto, urbanista e coordenador geral do projeto, Roberto Montezuma, contou como serão as discussões do seminário que vai apresentar experiências exitosas de habitação popular no Recife, no Brasil e no exterior. Montezuma também defendeu na entrevista um planejamento habitacional inclusivo, que não seja apenas voltado para as classes mais favorecidas, e criticou os condomínios murados com cercas elétricas. “São uma anticidade, é uma cidade medieval, não uma cidade contemporânea”.

O II Seminário Recife Cidade Parque vai debater os desafios da habitabilidade no Recife. De que se trata esse conceito?

Recife Boa Viagem

Habitabilidade é qualidade do habitar. O conceito não se restringe apenas à moradia, é perceber o habitar de forma mais complexa e ampla, que é a própria cidade. Para formular um Recife mais democrático, um projeto de toda a população, três campos são fundamentais: meio ambiente, uso e ocupação do solo – que é como as casas, os comércios e espaços públicos são organizados – e as infraestruturas (água, luz, saneamento etc.). Nessa perspectiva, as habitações 

de interesse social precisam se reorganizar levando em consideração esses campos. É preciso também pensar a casa como parte da cidade e seus espaços públicos, próxima de serviços como escolas, comércio, parques, tudo isso articulando a cidade com um organismo vivo.

O modelo em que se acreditava que o problema da habitação social era apenas a casa já foi descartado desde a época do BNH (Banco Nacional da Habitação, instituição financeira pública brasileira criada em 1964). Construía-se a casa na periferia, a quilômetros de distância do centro da cidade, sem infraestruturas necessárias, de água, luz, esgoto, coleta de lixo. Um modelo que interfere inclusive na mobilidade. Como é que as pessoas circulam nessa cidade, já que residem tão distante? Nesse padrão de se pensar a casa de forma isolada, muitas pessoas que foram transferidas para residências na periferia retornaram ao local onde moravam ou, então, ocuparam novos espaços próximos ao seu trabalho. 

Construtora Casa Popular

Por isso, não é mais possível pensar a cidade apenas como um planejamento da classe média e da classe mais privilegiada. Porque, para ela funcionar, tem que contemplar as várias classes sociais, a própria espacialização tem que responder a esse conjunto amplo que forma a cidade, sem excluir a habitação social. 

Também não se pode simplesmente construir, na periferia, conjuntos habitacionais bloqueados por muros, cercas elétricas, como é comum no Minha Casa Minha Vida, por exemplo. Esse modelo de condomínio para classe mais vulnerável não resolve o problema porque foi pensado para a classe média, que segue a perspectiva de viver dentro de um muro lacrado, de isolar-se da cidade, do meio ambiente, criar uma bolha autônoma e isso é muito ruim para a cidade. É preciso interagir, a cidade é um tecido que tem que ser oxigenado de forma total, em seus diferentes pontos.

Quais os problemas advindos desse modelo de cidade cercada por muros? 

Essas muralhas urbanas, cercadas, fechadas, opacas e protegidas por cercas elétricas são uma anticidade, é uma cidade medieval, não uma cidade contemporânea. Quando esse tipo de condomínio cercado é construído para as classes mais vulneráveis, em vez de ser um elemento que interage com a cidade, passa a ser algo hostil a ela. Não há interação nem transparência interior e exterior, não há continuidade da malha urbana articulada aos espaços públicos. Isso é muito ruim.

Ou seja, esse modelo comum para a classe média, que visa se isolar, vem sendo o modelo tradicional da habitação nas comunidades, nas ZEIS (zonas especiais de interesse social). É um grande engano pensar que o problema da habitação de interesse social é apenas a casa isolada. Se pudéssemos fazer um grande resumo da lógica urbana, poderíamos dizer que o meio ambiente, isto é, o sistema ambiental, tem que estar articulado ao sistema das infraestruturas e também ao sistema de como se ocupa a cidade, como é que se constrói nessa cidade, como se permite que a moradia seja articulada com o espaço público de qualidade. 

passarinho

Por isso, a habitação não pode estar simplesmente jogada no morro, porque pode sofrer deslizamentos, não pode estar nas margens dos rios sem nenhum tratamento de esgotamento sanitário e ficar vulnerável à elevação das águas. Mas, a necessidade faz com que essa população vá ocupar esses lugares com fragilidades ambientais, geralmente espaços públicos de matas, de frentes d'água, sem infraestrutura. A habitação de uma maneira geral, tanto social e quanto a das classes mais privilegiadas, todas elas têm que ser pensadas e planejadas na cidade de forma articulada e não de maneira excludente.

É muito complexo você planejar um bairro e não pensar as habitações de interesse social como parte desse bairro. Na França, isso é uma questão fundamental. Lá, ao se planejar um determinado projeto urbano de habitação de classe média, ou seja, de poder aquisitivo maior, ele tem que contemplar uma parte de habitação com poder aquisitivo menor, quer dizer, essa mescla é fundamental para a cidade continuar viva. Essas pessoas não se organizam socialmente de forma interativa na cidade. Imagina, são criados condomínios fechados, isolados de tudo, a população que vai prestar serviço a esse condomínio está onde? A quantos quilômetros de distância. A mobilidade não pensada de uma forma articulada vai gerar mais um problema, um problema de deslocamento. 

O senhor mencionou que um dos campos importantes para uma cidade democrática é o meio ambiente. Como essa questão ambiental insere-se na habitabilidade do Recife, especialmente nesse contexto de mudanças climáticas? 

A questão ambiental do Recife é muito particular. Quando os holandeses chegaram aqui, abandonaram Olinda que está no alto, nos morros, e se voltaram para o Recife, onde construíram uma cidade de alma holandesa, e a capital passa a ser uma cidade nas águas, porque a área de interesse deles era o porto. Com a saída dos holandeses, a lógica de continuar sendo um urbanismo sensível às águas foi esquecida e passou-se a fazer um urbanismo aos moldes do português, de cidade nos altos. 

Isso ganha uma outra configuração, e as habitações precisam responder a essa maneira de viver numa cidade que tem uma relação muito próxima com o oceano, com os rios. Uma cidade que atenda a essa natureza tropical onde a gente vive, de modo a protegê-la caso aconteça um eventual aumento do nível das águas. 

A história tem mostrado que num modelo de habitação sem essa visão articulada, as pessoas acabam ocupando as matas, as áreas mais frágeis, principalmente públicas. Quando essa ocupação passa a ocorrer, o problema que acarreta depois também é muito grande. É preciso, então, um planejamento complexo que encare essa realidade não apenas como um problema, mas crie a solução necessária. É preciso entender que o problema é uma oportunidade de repensar as coisas.  Então, é necessário se valer dessa oportunidade para fazer um bom projeto. 

A qualidade do projeto urbano é fundamental para o sucesso da própria cidade. Pensar no bem-estar ambiental, no bem-estar social e na qualidade urbana. Tudo isso de forma que a fricção social e a redução das desigualdades ocorram, que as oportunidades de emprego aumentem. 

CAPIBARIBE

Como a habitação se insere na pesquisa do projeto Recife Cidade Parque?

O Recife Cidade Parque busca exatamente essa reconexão com a natureza, a reconexão da cidade com as águas, reconexão com o meio-ambiente e a habitação social não pode mais ser um modelo genérico, mas um modelo próprio que surja e possa emergir da própria cidade. Utilizando suas perspectivas, sua ventilação as brisas marinhas benéficas que o Recife tem, incorporando o sombreamento nessas habitações, conectando essas habitações com os espaços públicos de qualidade, as praças, os parques. 

O projeto Recife Cidade Parque não propõe apenas uma cidade só de parques. Uma cidade-parque possui sentido muito mais amplo, é um parque ecológico, um parque ambiental, um parque de negócios, um parque de comércio. O projeto propõe uma cidade inclusiva, saudável, próspera e pacífica. Só teremos uma cidade menos agressiva quando ela for trabalhada nesses diferentes aspectos que mencionei. O exercício dessa habitação social é fundamental para constituir essa cidade. No seminário vamos discutir essas alternativas, mostrar cidades que avançaram nessa perspectiva. A ideia é trazer a reflexão de valores que foram desenvolvidos em casos com os quais o Recife possa aprender.

Como será o seminário? 

O seminário vai acontecer nos dias 6 e 7 de agosto, no Auditório do Espaço Apolo 235. Será um conjunto de palestras trazendo experiências locais, nacionais e internacionais de habitação para as populações mais vulneráveis. As locais tratam de casos de habitação de interesse social, pois o Recife foi a primeira cidade a criar a ZEIS (Zona Especial de Interesse Social), foi pioneira nessa forma de replanejar o espaço público, não apenas jogando habitações nas periferias mas entendendo como urbanizar e qualificar esses lugares. 

Então, isso vai ser mostrado, incorporando respostas a outros desafios e outras soluções urbanísticas, arquitetônicas, paisagísticas no território brasileiro sobre a demanda por habitação de interesse social. O seminário também contará com casos de palestrantes de São Paulo (o arquiteto e urbanista Marcos Boldarini) e Santa Catarina (o arquiteto e urbanista Ricardo Wiesse) com foco nesse espírito do lugar, tentando entender as necessidades de cada situação e mostrar como a resposta a essas necessidades surgiram de um trabalho de interação, de articulação do tecido urbano, da requalificação do que existe, pensando o habitar para além da casa. 

Vamos pensar o habitar em seu sentido mais amplo. Isso é uma discussão que precisa ser aprofundada para o futuro do Recife. Temos pouquíssimos terrenos. A demanda por habitação é muito grande, não podemos recorrer, mais uma vez, à visão de que construir a casa por si só resolve o problema da cidade e das pessoas. Não é apenas a habitação, mas é um conjunto inteiro articulado.  

Qual sua expectativa do evento? O que o senhor espera como resultados dessa troca de experiências?

Espero que o seminário possa influenciar as secretarias municipais, os arquitetos, as pessoas que atuam com habitação de interesse social. Isso porque a demanda de um terreno não se restringe apenas ao terreno mas, sim, à articulação dele com a cidade. O terreno não pode ser visto isoladamente e entre muros. Esperamos pensar nessa perspectiva de ter o apoio dos órgãos públicos, dos arquitetos, da própria comunidade para que ela possa fazer o seu destino. O destino da comunidade é para além da casa. 

Não é pensar, por exemplo, em “minha casa minha vida”, como está colocado no programa do Governo Federal, mas em “minha cidade minha vida”. É a cidade que tem a casa, a casa como parte da cidade. A perspectiva desse seminário é pensar com essa visão. A habitabilidade é a qualidade do habitar de todas as pessoas.  Como é que essa cidade pode servir a todos em seus diferentes lugares, com valores diferentes, não querendo igualar o Morro da Conceição a Casa Forte ou Boa Viagem a Brasília Teimosa? São ambientes diferentes, espíritos diferentes, mas o direito à cidade tem que ser compartilhado por todos.  

Uma cidade rica é uma cidade de vários “temperos”, não é uma cidade uniforme. Temperos no sentido urbanístico de vários valores, espíritos diferentes que essa cidade tem. Pensar numa forma de conviver com tudo isso de maneira sustentável, com qualidade de vida. Quando a cidade tiver qualidade de vida, será sustentável. Vamos atingir essa cidade pacífica, quando houver qualidade ambiental, quando ela for socialmente inclusiva e economicamente próspera. 

Não é possível pensar o País sem pensar nessa cidade pacífica de que todos nós precisamos. Por isso, esse debate do Recife Cidade Parque é necessário. Esse é o segundo seminário do projeto e que venham outros seminários para se discutir e fazer com que as pessoas participem e deem sua voz sobre esse imenso desafio que é planejar e projetar a cidade do futuro. O Recife tem o desafio imenso de ser a primeira capital brasileira a fazer 500 anos e de se reinventar como uma cidade-parque. Esse é o conceito e a habitação de interesse social é um ponto importante desse processo.

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