Economista e professor da Unicamp analisa o fim da escala 6x1 e os motivos que levaram à emergência de movimentos como o antiwork, nos Estados Unidos, e o VAT (Vida Além do Trabalho) no Brasil. Ressalta que os pedidos de demissão no País aumentaram e que muitos jovens formados se sentem frustrados por não aturem na área em que foram qualificados.
O fim da jornada 6x1, que ganhou os debates nas ruas e redes sociais, desde que a deputada Erika Hilton (PSOL) apresentou a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) sobre o tema, surge num momento muito particular do mercado de trabalho do País e do mundo, segundo o economista José Dari Krein, professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Os trabalhadores, ressalta o especialista, têm a sensação de trabalhar excessivamente, a remuneração é baixa, muitos se formam e não encontram vagas em atividades nas quais se qualificaram. “Isso fez com que o trabalho perdesse o prestígio, principalmente entre os jovens, a chamada Geração Z, que vem aderindo ao antiwork, um movimento que surgiu nos EUA”, contextualiza o economista que também é pesquisador do Cesit (Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho). No Brasil, constata-se um reflexo dessa situação nas 8,5 milhões de pessoas que pediram demissão somente de janeiro a agosto deste ano.
Nesta entrevista a Cláudia Santos, Krein, que atua ainda na Remir (Rede de Estudos e Monitoramento Interdisciplinar da Reforma Trabalhista) analisa as chances de a PEC ser aprovada no Congresso, a uberização do trabalho e o estímulo ao empreendedorismo. Diante dos desafios, ele propõe um programa de geração de pós- -trabalho de ocupações sociais como uma forma de contribuir para resolver os problemas trabalhistas da atualidade.
O debate sobre escala 6X1 ganhou força agora, mas já vem acontecendo há algum tempo. O que impediu o Brasil de fazer essa discussão nos últimos anos?
A redução da jornada de trabalho é um tema histórico do movimento trabalhista. No Século 19 já se defendia a tese de que o dia deveria ser dividido em 8 horas para trabalhar, 8 para dormir e 8 para afazeres da vida fora do trabalho. Mas só no Século 20 ela ganha projeção. No final do Século 19, mesmo nos países desenvolvidos, trabalhava-se cerca de três mil horas por ano. Na década de 70 do Século 20, houve uma redução progressiva, e o tempo de trabalho diminuiu entre 1.500 e 1.600 horas/ano. No Brasil, graças à emergência do sindicalismo, na década de 1980, o debate consolidou-se na Constituição de 1988, reduzindo a jornada de 48 para 44 horas semanais, que ainda é muito longa.
Assim, muitas categorias conseguiram reduzir as jornadas. Entretanto, faz 36 anos que esse tema não é alterado pelo legislativo brasileiro. Por que demorou tanto tempo? Nos anos 1990, houve uma mudança na forma de operacionalizar a economia, com o processo de globalização e de financeirização, e a transferência de muitas unidades produtivas para a Ásia, que tinha jornadas muito intensas. No ambiente político brasileiro em governos mais progressistas, entre 2007 e 2008, conseguiu-se colocar essa pauta no Congresso Nacional e, por divergências internas, não foi aprovada uma redução gradual, porque alguns setores queriam que ela fosse imediata.
Nesse ambiente mais geral em que se valoriza a competição, a exposição das empresas à lógica da concorrência, a redução da jornada de trabalho ficou secundarizada. O que avançou foi a tese de que, para se resolver o problema do emprego, seria preciso reduzir os direitos, porque a legislação era velha e a modernidade exigia jornadas mais flexíveis, remuneração mais variável, contratos mais fáceis de serem rompidos por parte da empresa com menores custos.
O Brasil até se segurou muito nos anos 2000, mas depois de 2016, essa agenda da flexibilização voltou com força, resultando na Reforma Trabalhista, em 2017, que amplia a possibilidade de as empresas utilizarem a jornada de até 12 horas por dia. Não menciona redução porque segue outra lógica, a mesma seguida no Governo Bolsonaro, de um ambiente político e econômico neoliberal e de inserção na globalização, um período de desconstrução dos direitos com o argumento de melhorar a economia e o mercado de trabalho. Mas nossos estudos mostram que não há nenhuma comprovação empírica de melhorias no mercado de trabalho com a reforma trabalhista.
É nesse ambiente que surge a uberização do trabalho?
O processo de uberização deve ser entendido como uma expressão da ausência de alternativas de trabalho de qualidade no mercado. Com a globalização, as reformas e o neoliberalismo, as opções de trabalho de qualidade são muito poucas. Assinar a carteira, em alguns setores, não significa trabalho de qualidade. O trabalho é muito ruim, ganha-se pouco, em muitos casos, há uma pressão por produção. Isso fez com que o trabalho perdesse o prestígio, principalmente entre os jovens, a chamada Geração Z, que vem aderindo ao antiwork. É um movimento que surgiu nos EUA e reflete essa frustração que aumenta quando a geração jovem está estudando, mas não encontra trabalho compatível com sua formação.
Há também a frustração com a lógica da dominação e muitas pessoas não querem ficar subordinadas e pedem para sair do emprego. Até agosto de 2024, 8,5 milhões de pessoas haviam pedido demissão no Brasil. É um recorde histórico. Parte dessas pessoas quer encontrar algo melhor e outra parte pede para sair porque acredita que aquilo que está fazendo é incompatível com seus valores éticos, não lhes traz realização ou felicidade e, muitas vezes, causa angústia e problemas.
Há a sensação de que as pessoas trabalham excessivamente sem que isso seja compensado. Num momento em que se valoriza a ideia de viver a vida em todas as suas dimensões, há uma mudança cultural, porque as pessoas não querem viver só para trabalhar. Essa sensibilidade está presente entre a juventude e entre as mulheres que trabalham no comércio, em supermercados, farmácias, por exemplo, que são categorias muito femininas. Nesse contexto surge a ideia de acabar com a jornada 6x1. Fala-se que não vale a pena trabalhar 6 dias por semana, se você não consegue ter lazer, encontrar os amigos e a família, porque o dia de descanso vai ser utilizado para afazeres pessoais ou arrumar a casa, por exemplo.
Como o senhor analisa a proposta da redução da jornada 6x1 da deputada Erika Hilton?
Ela propõe o fim da jornada 6x1 e uma redução para 36 horas semanais. A deputada teve o mérito de ter puxado o tema, mas é uma bandeira do VAT (Vida Além do Trabalho). O grande mérito dela e do VAT é colocar o tema em evidência, porque, de fato, ganhou a sociedade e criou constrangimentos, inclusive para partidos de direita. Tanto que alguns setores da direita estão apoiando para não criar indisposição com as camadas mais pobres. É uma questão que ultrapassou a bolha, por ser uma reação à precariedade do mercado de trabalho.
O que é preciso ser feito é redistribuir o trabalho útil na sociedade novamente, e é isso que o fim da jornada 6x1 coloca. É preciso reduzir a jornada de trabalho, progressivamente, para as pessoas trabalharem menos e em algo que se sintam realizadas.
Muitos analistas alertam que o trabalhador brasileiro tem baixa produtividade e essa situação vai piorar se reduzir a jornada de trabalho. Como o senhor analisa esse argumento?
No mundo hoje há várias experiências de jornada 4x3, com 4 dias de trabalho. Na Islândia, mais de metade da população trabalha nesse esquema e, ano passado, foi o país que mais cresceu em toda a Europa. É claro que há outros fatores relacionados ao crescimento mas mostra claramente que a redução da jornada de trabalho não foi um empecilho para a economia crescer. Pesquisas revelam aumento da produtividade e isso vem legitimando a experiência 4x3 em muitos países.
No caso brasileiro, calcula-se a produtividade de forma controversa. O cálculo mais simples, considera a quantidade de riqueza produzida versus as horas trabalhadas, mas como o mercado de trabalho brasileiro é precarizado, obviamente, a produtividade cai. Ou seja, a produtividade é baixa no Brasil porque não há ocupações de qualidade ofertadas, as pessoas se inserem em atividades de subsistência, como vendedores nos semáforos, por exemplo, e essa atividade vai contar negativamente na produtividade geral do trabalho.
Os baixos salários brasileiros com as longas jornadas também diminuem a motivação, causam adoecimento e isso gera distorções na produtividade. E como eu disse, no Brasil e em outros países há muitas pessoas com escolaridade que não conseguem atuar na área da sua formação. Isso gera frustração. Fala-se também que as novas tecnologias criaram ocupações de qualidade. Sim, mas a maioria é de baixa qualidade.
Não somos contra a tecnologia. Ninguém é contra que a mecanização tenha acabado com os postos de trabalho de cortadores de cana em São Paulo, porque é uma função insalubre. Mas, nossa vida social hoje tem uma série de atividades e serviços que são essenciais, como a coleta e reciclagem de lixo, cuidados com o envelhecimento da população, professor e outros que não são possíveis de automatizar e que muitas vezes são desvalorizados.
Também se alega que a redução da jornada prejudicaria os pequenos negócios.
Temos um estudo que mostra que alguns setores que praticam a jornada 6x1 e se manifestam contra o fim dessa escala – como supermercados e farmácias – funcionam 24 horas e fazem parte de uma imensa rede internacional controlada por quatro ou cinco grupos econômicos que não tiveram nenhum pudor de acabar com todas as pequenas farmácias e mercearias familiares. Essas redes, com resultados econômicos promissores, mobilizam o discurso para defender seus interesses mas, na concorrência, não defendem o pequeno negócio. O pequeno só é defendido se estiver subordinado aos grandes negócios, como a terceirização.
A eliminação da escala 6x1 talvez implique uma reorganização da vida social. Tem-se que perguntar, por exemplo, se é preciso ter mercados abertos aos domingos. Se for necessário, contrata-se mais gente, essas redes têm dinheiro, tanto que estão concentrando o mercado. No caso de bares e restaurantes, o setor é muito descentralizado, mas boa parte deles se concentram em alguns momentos mais intensamente de atividade. Se eles têm, por um lado, um aumento de custo, podem, por outro, ser beneficiados com o fim da escala 6x1, principalmente se não reduzir o salário, porque as pessoas terão mais tempo para frequentar esses serviços, ou seja, eles podem ser beneficiados pela economia ativada.
Em 2004, economistas do pensamento hegemônico do mercado, do sistema financeiro e a grande mídia diziam que o aumento do salário mínimo iria gerar inflação, informalidade, desemprego e quebrar o Estado, e os mesmos setores empresariais diziam que isso aumentaria muito seus custos. Quando o salário mínimo aumentou, os setores do comércio e serviços foram os mais beneficiados. Ter mais tempo livre e aumentar a renda pode beneficiar os setores de lazer, cultura, restaurantes e bares. Claro que eles podem ter que fazer algum tipo de ajuste, de racionalização no atendimento às pessoas.
Há chances dessa proposta ser aprovada no Congresso?
Há chance de ser aprovada se continuar o debate nas redes sociais e a pressão popular nas ruas para criar constrangimento aos parlamentares, sabendo que essa é uma bandeira que tem adesão da sociedade. Outra chance é se o Governo Federal assumir uma postura mais ofensiva em torno da proposta, aproveitando a oportunidade de ter uma pauta positiva junto dos trabalhadores. As chances aumentam se o movimento sindical, o movimento popular, as forças progressistas se somarem em torno dessa bandeira, como já vem acontecendo. Mas, mesmo que não avance, só ter colocado no debate já mostra que se as forças progressistas focarem em questões muito concretas, que mudam a vida das pessoas, há chances de ter apoio na sociedade.
Além da jornada de trabalho, que outras questões relacionadas à vida profissional estão em urgência de resolução no mundo?
Deveria haver uma política de permanência da juventude nas universidades, nas escolas técnicas e dar uma opção para a pessoa trabalhar um tempo naquilo em que ela se formou. Seria preciso um financiamento público, de ONGs, de cooperativas, startups para viabilizar essa inserção da juventude na atividade profissional para a qual estudou, nem que seja por um período curto, como acontece na residência médica. Mas isso criando ocupações novas, não substituindo profissionais existentes.
Existe a necessidade de o Estado ter um programa de geração de pós-trabalho de ocupações sociais. Ou seja, hoje a função econômica do Estado para o mercado financeirizado é ser o estabilizador da moeda, mas precisa ter também a responsabilidade de ser o empregador de última instância, garantir o emprego, não só o preço das coisas, o controle da inflação, mas também garantir ocupações, benefícios fiscais, remuneração mínima. Esse programa estimularia a criação de ocupações que atendessem às necessidades sociais e ambientais, como cuidados relativos ao envelhecimento da população, serviços voltados à sustentabilidade ambiental, entre outros. Se o tempo livre avançar, por que também não estimular atividades culturais, artísticas e de formação? Qualquer tipo de atividades que renucleiam as pessoas nos seus bairros para criar movimentos um pouco mais comunitários, que não seja esse individualismo desenfreado que prevalece.
A mobilidade urbana também é importante no que se refere ao tempo e à qualidade do deslocamento do trabalhador. Outra questão que mobiliza a sociedade é o fim das discriminações e das diferenças de raça, de gênero. Mas não adianta combater a discriminação do mercado se não tiver oportunidade de trabalho de qualidade. É preciso uma reorganização do mercado de trabalho, da economia, valorização das universidades para ampliar as oportunidades. Por isso é interessante que a Erika Hilton, uma trans negra, ter conseguido levar a bandeira do trabalho que muitos outros não conseguiram.
O senhor mencionou soluções coletivas mas, na atual realidade, as saídas parecem ser propostas individuais, como o empreendedorismo. Como o senhor analisa essa questão?
Os corações e mentes das pessoas foram conquistadas pela ideia de jogar a responsabilidade sobre o indivíduo e não sobre o coletivo. Isso vai estabelecendo uma condição de concorrência brutal, com um certo culto à ostentação, a enriquecer fácil, rápido. É, por exemplo, o discurso do coach de que você pode enriquecer, só depende de você. Mas nem todas as pessoas conseguem se dar bem nesse mundo.
O empreendedorismo entrou nesse discurso e de como enfrentar os problemas do mercado de trabalho. Um artigo de um filósofo do Rio de Janeiro mostra como o empreendedorismo foi a base do discurso para a extrema-direita se tornar hegemônica. Não podemos aceitar que esse discurso do coach seja a solução. Claro que dentro de uma lógica das ocupações sociais, é preciso estimular as pessoas para que possam realizar seus projetos de vida, fazer atividades que tenham vontade e vocação. Pode ser, por exemplo, na área da cultura, em outras áreas, para que o trabalhador tenha uma liberdade de poder desenvolver algo que lhe traga satisfação e possa ganhar dinheiro com isso.
Não estamos falando de socialismo e nem propondo um discurso crítico jogando a solução para um futuro distante. É preciso uma agenda em cima das questões concretas. O Estado tem que dialogar com os setores informais deixando claro que não é contra iniciativas econômicas que gerem mais bem-estar e liberdade para as pessoas mas, também, com a clareza de que você não vai resolver seus problemas e nem os da sociedade com esse individualismo. Ao contrário, cria-se esse mundo da concorrência, da anomia, como diria Durkheim, um mundo da desagregação social, da guerra de todos contra todos. Por isso, temos que reforçar a ideia de que se não resolver o problema do trabalho, não será possível organizar a vida social.