Aldrin Pérez, pesquisador titular do Insa (Instituto Nacional do Semiárido) informa que estudos científicos têm desmistificado a ideia de que a Caatinga é pobre e sem vida. A verdade é que ela é rica em espécies e realiza um papel fundamental na resiliência do planeta às mudanças climáticas.
A visão de que a Caatinga é uma área sem vida e sem riquezas tem sido desfeita por pesquisas científicas que mostram a importância dela para a resiliência às mudanças climáticas e para a possibilidade de novas atividades econômicas no semiárido. Um dos mais recentes estudos foi coordenado por Aldrin Pérez, pesquisador titular do Insa (Instituto Nacional do Semiárido), que pertence ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação. Um dos resultados mais surpreendentes desses estudos foi a revelação de que se trata do bioma mais eficiente do Brasil no sequestro de carbono.
Nesta entrevista a Rafael Dantas, Pérez ressalta a importância de instalar no semiárido atividades econômicas que não afetem o meio ambiente e evitem o desmatamento da vegetação local que contribui para a retenção do CO2 e preservação da água na região. Caso contrário, vão surgir ameaças, como a desertificação, a mudança do clima, a perda de biodiversidade e a expulsão das pessoas do campo. “Elas vão ocupar as periferias e os morros nos grandes centros, onde também há outros problemas ambientais, como deslizamentos de terra, que acontecem porque as famílias chegam sem condições nenhuma”, alerta o pesquisador.
Quando começaram os esforços para desvendar a Caatinga?
Somos um grupo de pesquisa que desde 2010 busca entender o bioma e desenvolver modelos ambientais como suporte para políticas públicas, focando na conservação e no uso sustentável da Caatinga. Uma dessas pesquisas, foi compreender a dinâmica e a variação sazonal tanto do carbono, quanto da água, no processo contínuo de renovação da energia do bioma em seus três componentes principais: o solo, a vegetação e a atmosfera.
Desenvolvemos esse trabalho, inicialmente em grupos separados. O Insa e a Universidade Federal de Campina Grande se uniram para estudar sobre o semiárido e seus recursos naturais. Havia uma equipe da Embrapa Semiárido e um grupo da Universidade Federal Rural de Pernambuco, que ficam em Serra Talhada. Depois agregou-se outro grupo da Universidade Federal Rural do Rio Grande do Norte.
Começamos, em 2010, o trabalho em Serra Talhada, e em 2012 em Petrolina e no Araripe. Também em 2012, iniciamos a pesquisa juntamente com a Embrapa em Campina Grande (PB) e na Reserva Biológica de Serra Negra (PE). Em 2016 apareceu um edital do CNPQ, dentro de um programa que se chama Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia. Nesse momento dissemos: estamos cada um pesquisando separadamente e precisamos juntar forças para ganhar o edital. Fizemos um reforço com o Insa, a Embrapa Semiárido, UFRN, UFRPE e especialmente a UFPE, com pesquisadores conceituados que se mobilizavam em uma rede para estudar conjuntamente a Caatinga e para apresentarmos o projeto.
Então, o trabalho surgiu para nos juntarmos e para desenvolver uma pesquisa que tivesse mais solidez e fosse mais articulada em cima de objetivos e problemas comuns dos impactos das mudanças do clima, da desertificação e como isso afeta na biodiversidade.
Qual era a percepção sobre a Caatinga quando vocês iniciaram essa pesquisa?
Historicamente, a Caatinga já foi vista como um bioma pobre, tanto em espécie quanto em florística. Houve a necessidade de desmistificar essa visão. Montamos um grupo de biologia e, desde 2016, estudamos esse balanço do carbono, a dinâmica e a formação de energia ao longo desse período.
Ao contrário do que se falava, que a Caatinga não contribuía para o sequestro do carbono, desde 2010 até o momento, ela se mostrou uma extraordinária solução para as mudanças climáticas. Não esperávamos esse resultado. Passamos a ter consistência nos dados. De 2010 para cá são 14 anos. Depois que acumulamos uma série de dados, começamos a publicar os resultados em revistas científicas internacionais desde 2020. Há alguns marcantes, como os que saíram na revista Nature (Scientific Reports) e na Science of the Total Environment, entre outras.
Estamos elaborando um artigo-síntese em que confirmamos que no fluxo de carbono entre a atmosfera e a vegetação, mesmo nas áreas mais secas, há um robusto sequestro de carbono. Mesmo aquela Caatinga localizada em regiões com menos chuva – em torno de 300 milímetros – ocorre o sequestro em torno de 1,5 a 2 toneladas de carbono por hectare por ano. Naquelas localidades mais úmidas, na transição do Agreste, que se chama ecótono do Agreste, a Caatinga sequestrou de forma mais consistente 5,5 toneladas de CO2.
Fizemos também uma campanha de coleta de amostras de solo do semiárido, do perfil de até 1,5 metro de profundidade, com representação de 97% dos tipos de solo da região, uma amostragem grande. Nesse artigo, também já publicado, identificamos o que se chama estoque de carbono. Veja: o fluxo de carbono é o que está circulando. O estoque é a parte do CO2 que foi sequestrada e fica retida na vegetação e no solo. Apenas quando há um desmatamento, é que não há retenção de carbono. Se considerar um quilômetro quadrado de vegetação da Caatinga conservada, há um estoque de cerca de 3.350 toneladas de carbono, o que dá aproximadamente 35 ou 40 toneladas por hectare. Isso apenas na vegetação. Na parte que está no solo, a Caatinga está protegendo em média 12.500 toneladas de carbono por quilômetro quadrado. Então verificamos que é mais valioso manter a Caatinga conservada porque ela está prestando esse serviço para o clima.
Como é a relação de contribuição no sequestro de carbono da Caatinga comparada a outros biomas brasileiros?
No Brasil é significativa a contribuição da Caatinga. Esse bioma está entre as maiores representações do mundo em floresta seca. Imagina o impacto para o clima global ter uma vegetação que está sequestrando carbono além de ter um papel importante para programas de conservação da vida silvestre! Dos 3.346 tipos de planta que temos na Caatinga, 526 são endêmicas, ou seja, só ocorrem dentro desse bioma. Isso transforma o espaço em algo extraordinário para a conservação da vida silvestre.
Numa segunda etapa da pesquisa fomos tentar responder outra questão: qual é a eficiência desse sequestro de carbono? Será que é menor que o da Amazônia, do Cerrado e do Pantanal? Verificamos, para a nossa surpresa, que a Caatinga é o mais eficiente dos biomas brasileiros para sequestrar carbono.
O que vem a ser essa eficiência do sequestro de carbono?
Quando eu digo eficiência é o seguinte: a cada 100 toneladas de carbono que a Caatinga retira e transforma em madeira, folha, galhos e frutos, entre 45% e 60% do CO2 fica sequestrado, retido e o resto é liberado. E esse processo funciona assim: as plantas em geral absorvem CO2 da atmosfera, elas utilizam, processam e depois respiram (isto é, liberam o restante do carbono). O balanço entre o que ela absorve e transforma em madeira, folha etc. e aquilo que sai é o que se chama de balanço líquido do carbono. Esse balanço está sendo positivo, por isso que falamos com bastante propriedade que a Caatinga é um excelente sumidouro de carbono em relação a outras biomas porque a produção primária (a absorção de carbono) é sempre maior que a “respiração” (liberação de CO2) do ecossistema como todo.
Quando a produção primária é maior do que a respiração, dizemos que o ecossistema é sumidouro de carbono. Quando você compara com o centro-oeste amazônico, a produtividade primária é de 3.425 toneladas de carbono que a região absorve, mas respira 3.591, então quando fazemos o balanço, ela fica apenas com 5,7 toneladas. A eficiência fica entre 2% e 11%, dependendo do ponto da Amazônia. Na Amazônia Central ficou 5%, na Guiana que também é na floresta amazônica ficou 4%. Na Indonésia Tropical ficou 11% e a Caatinga aparece com mais de 40% de eficiência.
Como vocês conseguem fazer essa medição?
Existem torres para medimos os gases em várias florestas do mundo. Medimos o fluxo de calor sensível, o fluxo de calor latente, a precipitação, a temperatura, o déficit de vapor e os gases em três direções, tanto à noite quanto de dia. As torres têm 15 metros de altura e ficam em cima tem um aparelho que faz várias medições a partir dos gases que passam por esse medidor, que são registrados no computador a cada cinco segundos e a cada 10 segundos. Então, estamos falando de algo bem pragmático. A Caatinga é uma solução para o tema da mudança climática. Existem dois cenários: a área que já foi desmatada e a área que não foi, que é um raio em torno de 55%. Enquanto os outros 45% já foram desmatados, o que inclui as estradas, a construção de casas e a área para usos agrícolas.
Há alguma alternativa para reverter o cenário dessas áreas desmatadas?
Nessas áreas que já estão abertas podemos trabalhar com o sistema de manejo agroecológico, que também ajuda a reter o carbono. Podemos fazer esse sistema que tem vários tipos de modelos e na área que tem caatinga podemos ampliar a conservação. Ao invés de desmatar, o proprietário pode fazer o uso sustentável dela.
Quando há o desmatamento, ocorre a erosão do solo, que se perde de forma natural pela água e pelo vento. Mas não se perde apenas o solo, perdem-se nutrientes. Uma tonelada de solo perdida acarreta no desaparecimento de 300 litros de água, que é uma quantidade significativa de carros-pipa, por exemplo.
Além disso, quando a caatinga é conservada, há menos perda de água da precipitação. Na via da transpiração da vegetação, ela chega a 74%, quando você desmata ela vai para 90%. Aqui eu só coloquei como exemplo o valor desse processo, mas a Caatinga presta outros serviços socioambientais.
Que outros serviços ambientais o senhor destacaria?
A retenção do CO2 está relacionada à regulação do clima, contribui com a qualidade do ar, controla a erosão e a perda de solo, mantém a saúde da terra. Ainda ajuda na polinização e no cultivo das plantas e frutas nativas, porque forma um habitat para muitos polinizadores. Isso beneficia a dispersão de sementes e, portanto, na continuidade da floresta ao longo de toda a Caatinga. Também ajuda no controle de secas e inundações, porque contribui na regulação do clima. Uma floresta favorece a entrada da chuva de forma equilibrada e o controle biológico de pragas e doenças, além da regulação da umidade do ar.
Há os serviços culturais. Aqui no semiárido temos muitos povos indígenas. Depois da Amazônia, a Caatinga é o lugar onde há a maior concentração de povos indígenas e as plantas tem múltiplos usos na vida cotidiana, como para o artesanato, a utilização de madeiras e de plantas medicinais. Sempre dizemos que há muita riqueza na Caatinga, porque são muitos os serviços ecossistêmicos que ela presta e o Brasil ainda não despertou para esse potencial.
Há os frutos nativos, como mencionei, além de plantas ornamentais. Existem muitas plantas para fazer perfume, fragrâncias que precisam ser exploradas, além da questão dos minérios que precisam ser trabalhados de forma sustentável, do artesanato e da gastronomia. Há um potencial grande. Então, dizemos que o Brasil não despertou ainda para as riquezas e para os milagres do desabrochar da vida no bioma da Caatinga. E com esse tema da mudança do clima, a Caatinga é realmente uma riqueza.
O que acontece quando uma área entra em um processo de desertificação?
A porta de entrada do processo de desertificação é quando cortamos a vegetação e o solo fica descoberto. Em geral, se nenhuma forma de manejo se deu naquele solo, aquele carbono se vai pela água ou pelo vento e a decomposição dele mesmo vai para a atmosfera. Com o tempo, esse solo resseca e se impermeabiliza, mesmo quando chove, a água não entra e não tem banco de semente para nascerem as plantas, porque o solo perdeu sua pujança. Numa área sem cobertura, um campo aberto “sem chapéu”, é muito mais quente que o que está dentro na área de floresta.
Aquele ambiente sem uma árvore, sem Caatinga, desidrata-se e se aquece. Quando isso acontece a quantidade de chuva diminui ou míngua. Mesmo com a pouca chuva que cai, o solo está compactado e não permite a penetração. Então diminui a reserva de água da profundeza do solo, nos rios subterrâneos, porque o solo é uma grande caixa de água, como eu falei, uma tonelada dele tem 300 litros de água. E quando isso acontece, esse carbono é liberado para a atmosfera e as pessoas não conseguem transformar o recurso em bem econômico e, sem as condições ambientais, a população tem que migrar. Quando cortou e botou pasto, já era. Foram embora toneladas de carbono. Mesmo se parar de usar aquela área de pastagem por 20 anos, sem mexer, ela não chega ao valor original, o que pode levar mais de 30 ou 40 anos.
No caso do solo, o processo é mais lento, mas em 25 anos, você perde 45% do carbono. Igualmente, mesmo deixando em repouso após o desmatamento, ele não consegue chegar àquele valor de 12.500 toneladas por quilômetro quadrado.
O que mais ameaça esse bioma atualmente?
Numa dinâmica de degradação aqui no semiárido são esses parques eólicos e solares, que, juntos, promovem uma nova dinâmica do desmatamento e de degradação da Caatinga. Essa demanda por commodities no Brasil também conduz o País a focar toda a sua produção em grandes negócios, como o agronegócio de Matopiba, inclusive o Maranhão, Bahia e Piauí são áreas com maior desmatamento, incluindo o Ceará aí nesse processo.
A implantação de grandes parques solares sem levar em consideração a população local, com uma visão de exploração econômica, depuração e ocupação do espaço, traz uma ideia de que: “ah! a região não presta, a Caatinga não presta, não serve, nós somos a solução, geraremos mais empregos”.
Então, quando se foca nisso, aumenta a concentração de terra, tudo para atender a atividade primária. Isso promove um impacto direto sobre os recursos naturais e vem gerando uma grande ameaça, como a desertificação, a mudança do clima, a perda de biodiversidade e a expulsão das famílias do campo, que vão ocupar as periferias e os morros nos grandes centros, onde também tem outros problemas ambientais, como deslizamentos de terra, que acontecem porque as famílias chegam sem condições nenhuma.
Esses quatro problemas se retroalimentam e terminam se tornando problemas políticos, de caráter social e cultural. Por isso que estamos fazendo um reforço para valorizar a Caatinga. Ela está nos dando essa lição: “eu sou a segunda floresta do mundo mais eficiente em sequestro de carbono nas zonas secas”.