Ecossistema de inovação precisa dos olhares da periferia e do interior

*Por Rafael Dantas

Inovação virou palavra de ordem nos últimos anos, um motor para o crescimento econômico e para transformações sociais. É a semente dos novos negócios para resolver problemas do mundo real. Porém, para conhecer as dores de um grupo mais amplo de pessoas e enxergar soluções a partir de outras lentes, nasce nos ecossistemas que fomentam as startups uma atenção maior aos inovadores que vêm das periferias ou de fora dos grandes centros urbanos.

O caminho nessa cena da inovação para quem nasceu nos subúrbios ou no interior ainda não é fácil. De acordo com pesquisa realizada pela FGV, os negócios sociais estabelecidos fora da periferia apresentam um capital inicial médio 37 vezes maior do que os empreendimentos iniciados dentro dela. “Isso é um dado muito alarmante no sentido de gerar oportunidades ou mesmo de sobrevivência dos negócios. Porém, por outro lado, temos na periferia uma coisa que é fundamental, principalmente em inovação, que é ter conhecimento e vivência dentro do problema que você tenta resolver”, destaca Philippe Magno, diretor da FOZ, o Centro de Inovação em Saúde e Educação da FPS e do Imip.

Apesar desse cenário nacional, estão surgindo em Pernambuco iniciativas importantes com essa proposta de valorizar as outras vozes que estão se propondo a protagonizar mudanças na sociedade. Dentro desse perfil, a recém-inaugurada no Recife Startupbootcamp, terceira maior aceleradora do mundo, iniciou sua operação com uma promessa bem clara: “Vamos priorizar negócios com pessoas pretas, periféricas e do interior”, declarou o head da empresa no Brasil, Edgar Andrade, em entrevista à Algomais.

Também de Pernambuco, o ITCBIO (Instituto Tecnológico das Cadeias Biossustentáveis) tem trabalhado com vários negócios inovadores dos diversos territórios pelo Agreste, Sertão e Zona da Mata, como o Lactoquito. A própria FOZ, também apoia iniciativas que vêm das periferias da cidade, a exemplo do Prol Educa.

Philippe Magno considera que as periferias do Brasil tem muito a ensinar aos negócios tradicionais sobre as verdadeiras faces do Brasil. “Cada cantinho do Brasil, cada interior, cada periferia têm realidades distintas. Neles temos um laboratório cheio de oportunidades. Onde tem problema, tem oportunidade de inovação. Essas pessoas são um capital humano muito rico, repleto de inteligência para inovar. A vivência delas é um laboratório constante de criatividade e de soluções. Como em uma startup de saúde, a presença de um profissional do setor é fundamental, entendo que para resolvermos problemas sociais a vivência de quem sofre esse problema é fundamental. Quem sofre com as dores tende a conhecer muito mais sobre as formas de solucionar esses problemas”, declarou Philippe.

ABRINDO PORTAS NA EDUCAÇÃO

Dentro da FOZ está um dos negócios com esse perfil, construído por gente que sofreu a dor da dificuldade de acesso à educação, o Prol Educa. Em sete anos de atividades, a startup já beneficiou mais de 20 mil famílias, conectando estudantes de baixa renda a escolas privadas com vagas ociosas. As crianças e adolescentes cadastrados, dentro do perfil alvo do projeto, recebem bolsas de estudo ou têm acesso a preços menores das mensalidades.

“Sou morador da Mustardinha, fui aluno de escola pública e ganhei bolsa de estudo na melhor escola do meu bairro. Depois estudei logística, mas minha grande formação foi o empreendedorismo social. A Prol Educa é um trabalho de inclusão social, empoderamento, enfrentamento da desigualdade e acesso à educação para famílias de classe C e D que não poderiam pagar mensalidades integrais. Trazer a tecnologia junto à educação que transforma a vida nos motiva a cada dia. A favela é potência, não é carência”, afirma Pettrus Nascimento, COO (diretor de operações) da Prol Educa. Estão também à frente da startup Petrus Vieira e Manuella Nascimento, que são do Conjunto Muribeca, onde o projeto deu os primeiros passos.

Já são mais de mil instituições parceiras da Prol Educa, que foi criado por esses jovens que tiveram a oportunidade também de serem beneficiados com bolsas no seu período escolar. A maioria das parcerias é com escolas (80%), mas a startup também oferta vagas em cursos técnicos (10%), de idiomas (5%) e graduações (5%). Com as mensalidades e matrículas dos alunos envolvidos no projeto, mais de R$ 8 milhões entraram no caixa dessas escolas.

Além de ser incubada na FOZ, a Prol Educa recebeu investimentos do Anjos do Brasil, da GVAngels, do Investe Favela e da Google Black Founders Fund. Após um período difícil de travessia na pandemia, com os sistemas educacionais em grave crise, a startup está avançando na região Nordeste em 2023 e mira um voo nacional nos próximos anos.

UM HUB PARA INOVAÇÕES DA PERIFERIA

O ecossistema de inovação do Porto Digital passa a contar com o HUB.Periférico. Instalado em um prédio cedido pela Santa Casa de Misericórdia, no Porto Digital, o espaço se propõe a ser uma aceleradora dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável nas favelas e periferias. Liderado por Daniel Paixão, 22 anos, que iniciou sua trajetória de empreendedorismo social em Maranguape I, em Paulista, o empreendimento tem como principal foco ser um hub de alta performance periférica, atuando com educação, tecnologia, empreendedorismo e desenvolvimento de soluções sustentáveis, para transformar as vulnerabilidades desses territórios em oportunidades dignas.

“O Recife Antigo era ocupado com prostituição, usuário de drogas e, no passado, com escravização. Quando unimos pessoas negras e de periferia para construir o HUB.Periférico, entendemos que estamos construindo um processo de reparação histórica, política e de ocupação de um espaço aonde a gente também está para desenvolver as nossas próprias resoluções a partir do que a gente acredita”, declarou Daniel Paixão, que é universitário de jornalismo.

O insight dessa iniciativa foi ainda em Paulista, antes da pandemia. Mas sem adesão e apoio, Daniel e outros jovens envolvidos no projeto apostaram no Recife. Na prática, o HUB.Periférico vai desenvolver no Porto Digital programas de educação laboratorial, programas de inovação periférica, hackathons e apoiar outros projetos pilotos com raízes nas periferias urbanas de Pernambuco e do Brasil.

O jovem empreendedor acredita nos valores que nascem nas periferias, mas avalia que ainda há um processo em amadurecimento do Estado e dos seus ecossistemas a fim de reconhecer essa força que nasce nas comunidades. “Pernambuco precisa valorizar o que vem das periferias. Nosso Estado, ainda hoje, por mais que entenda a importância de transformar a periferia, ele ainda não dá o protagonismo de inovação para ela. Há ainda muitos receios de acreditar que nas periferias também surgem processos de transformações que precisam de incentivos”, afirmou Paixão. Para trilhar um novo horizonte, a estratégia do HUB.Periférico é de conectar o setor público, o setor privado e as universidades com as comunidades.

PARA COMBATER A VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES NOS COLETIVOS

Nascida no bairro de Dois Unidos, na periferia da Zona Norte do Recife, Simony César ganhou as páginas de jornais e revistas em 2020 ao ser um dos destaques do ranking da Forbes Under 30 Brasil. Esse e tantos outros reconhecimentos à empreendedora nos últimos anos vieram pelo trabalho na startup e consultoria Nina, que fornece tecnologia integrada a diversos aplicativos para rastrear denúncias de assédio e violência.

Filha de uma ex-cobradora de ônibus e usuária do sistema de transporte público do Recife, ela começou a pensar na inovação quando fazia um estágio em uma grande empresa de transporte na cidade, e ficou muito incomodada com o contexto de violência de gênero na mobilidade urbana. “A Nina se coloca como a empresa que fornece solução de base tecnológica, mas também de consultoria, para formulação de políticas públicas e privadas no que tange a combater e prevenir a violência de gênero ou o assédio, tanto no espaço público, na mobilidade, como em ambientes corporativos”, explica Simony.

A empresa fornece treinamento de prevenção ao assédio e dispõe de um canal padrão de denúncia para que as pessoas consigam fazer os registros de forma anônima. “Os serviços que a gente tem são tanto fornecimento de tecnologia como, também, a inteligência de dados para que possam ser pautadas ações de caráter emergencial e preventivo”, relatou Simony.

Como a solução desenvolvida pela Nina tinha no transporte o seu carro-chefe, durante a pandemia a startup sofreu bastante com a crise do setor. Agora, já sem as restrições sanitárias e com os incentivos ao enfrentamento da violência de gênero pelo Governo Federal, com a sanção da lei de 14.457 (Programa Emprega + Mulheres), a empresa começou a prospectar novos campos comerciais, não só com o software, mas também da consultoria. “A projeção da Nina até 2024 é que a gente consiga estender a nossa operação para oito Estados brasileiros, tanto de caráter público, negociando diretamente com o Governo, mas também de caráter privado, atendendo às demandas da Lei 14.457”.

TRANSFORMAÇÃO DIGITAL PARA PEQUENAS EMPRESAS

Maria Eduarda Oliveira, 19 anos, moradora da Várzea, sempre estudou em escolas públicas no Recife e desde cedo se interessou por tecnologia. Seus primeiros passos no ecossistema de inovação foram com as aulas de robótica ainda na rede municipal de ensino. Uma experiência que a levou a competições na Alemanha e até no Japão representando o Brasil.

Hoje, além de estudante de Licenciatura da Computação na UFRPE e estagiária no CESAR, ela desenvolveu uma startup focada em transformação digital para pequenos negócios, a Oxente Software House. Inicialmente o foco era na criação de aplicativos mas, hoje, são os sites institucionais, páginas de e-commerces e landpages os principais produtos desenvolvidos por sua equipe.

“A Oxente se intitula uma casa de softwares. Atuamos para um público de pequenos e micro empreendedores, para trazer transformação digital desde o início, por um preço que faça sentido para ele. No Porto Digital há empresas gigantes que oferecem esse serviço. Mas nossa busca é por empreendedores que querem fazer a transformação digital, mas acham que não tem dinheiro e não conseguem ser atendidos pelas empresas que estão nesse mercado”, conta a universitária.

Entre os primeiros clientes da Oxente estão organizações sociais, escritórios de arquitetura, instituições de educação e escritores. A depender do nível de personalização, a empresa consegue entregar o site entre 2 e 7 dias para o cliente final.

Como uma estudante que atravessou a pandemia sem um computador em casa e sempre precisou de apoio para participar de feiras e eventos aonde seus projetos já foram selecionados, Maria Eduarda destaca a importância do suporte do ecossistema de inovação para impulsionar as criações que partem das periferias. “Muitas empresas querem desenvolver soluções para a periferia mas não conseguem nem ouvi-las. Levantando a periferia, levanta todo mundo. Todo mundo ganha com uma periferia segura, com saúde, saneamento básico e segurança alimentar. Inovação é melhorar as coisas que existem hoje. Queremos resolver problemas e os problemas maiores estão na periferia”, ressaltou a estudante.

INOVAÇÃO NA BACIA LEITEIRA

De Garanhuns, um dos berços da bacia leiteira de Pernambuco nasceu a Lactoquito. A startup de base tecnológica e sustentável foi criada para resolver um problema dos produtores de leite e queijo coalho no Agreste: a perecibilidade dos seus produtos. A partir de pesquisa científica e muitos testes, a empresa criou um conservante natural (um biopolímero extraído da carcaça e da cabeça do camarão que seriam descartadas pela indústria), que aumenta em mais de três vezes a vida de prateleira do queijo coalho.

“A produção de queijos no Agreste é grande mas os produtores não conseguiam manter a qualidade deste produto. Um desafio desse setor é manter o produto com qualidade no mercado por mais tempo. Mesmo seguindo todas as boas práticas de produção, hoje o tempo de prateleira desse queijo de leite cru é de 12 a 15 dias. Minha solução é trazer para o mercado um produto com vida de prateleira mais elevada. Dentro da minha pesquisa consegui 50 dias com qualidade, com o padrão de sabor e visual e todos os aspectos que podem ser liberados pelas agências que fiscalizam isso”, afirma a pesquisadora e coordenadora da Laquitoquito Elizabel Melo.

Além de contribuir para o setor de pescados, utilizando os seus resíduos, a inovação aumenta muito a competitividade da produção de queijos. Para oferecer esse conservante de forma contínua e sustentável, a Lactoquito, que é parceira do ITCBio e está pré-incubada no PoloTec (Polo Tecnológico e Criativo da UFPE), está desenvolvendo uma biofábrica. Inicialmente o objetivo é atender 50 fábricas, gerando um volume mensal de 100 quilos do componente, que é vendido como uma farinha. A expectativa de Elizabel é de atender 100 produtores até o final do ano.

“Por meio da biofábrica poderemos receber a casca e a carapaça do camarão, fazer a extração e as entregas, vendendo direto aos produtores. Além de vender esse produto, estamos interessados em trabalhar com essas fábricas, oferecendo orientação até elas chegarem a ter o registro do produto”. Com o registro, muitas dessas empresas que trabalham na informalidade, tendo a sua disposição apenas um mercado local muito restrito, poderão acessar novos clientes, inclusive de outros Estados. Embora o queijo seja o primeiro produto testado pela Laqtoquito, essa inovação pode atender outros segmentos da cadeia láctea.

Uma lição desse universo da inovação é a necessidade de sentir ou estar bem perto dos problemas para encontrar as soluções. O conhecimento das dificuldades precede a criatividade e o uso das novas tecnologias para solucioná-las. Com as experiências exitosas de quem nasceu fora do centro das oportunidades, aonde estão os negócios tradicionais, a tendência é de vermos mais vozes e olhares para problemas locais que podem atingir escalas globais.

*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)

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