Em uma entrevista exclusiva, Emanuel Leite Junior, pesquisador pernambucano vinculado à International College of Football na Tongji University (China), compartilha insights sobre o ambicioso Plano de Desenvolvimento do Futebol da China. Explorando os problemas identificados e as estratégias adotadas, o pesquisador destaca a crucial ligação entre o sucesso no campo esportivo e a visão chinesa de liderança global na indústria esportiva até 2035. Além disso, Leite discute possíveis parcerias entre o futebol chinês e os clubes pernambucanos, delineando caminhos para uma colaboração mutuamente benéfica. Em meio a reflexões sobre a crise no futebol pernambucano, o pesquisador oferece propostas estruturais e destaca a necessidade de uma gestão profissionalizada para impulsionar a revitalização do esporte na região.
O pesquisador respondeu ao repórter Rafael Dantas questões relacionadas a possibilidade de instituição de SAFs nos clubes pernambucanos e sobre questões bem específicas do futebol pernambucano e chinês.
Hoje falamos muito sobre a necessidade de profissionalização dos clubes. Na prática, o que é profissionalizar o futebol?
Na viragem do século 21, à luz das rápidas mudanças tecnológicas e mediáticas, do impacto da influência regulamentar de organismos como a União Europeia, das forças da internacionalização e da globalização, e da prevalência de políticas econômicas e empresariais começou a permear um grande número de esportes. O futebol nos ajuda a caracterizar esta transição global como sendo composta por várias fases, desde o século 19 com a fundação e codificação do futebol moderno; passando pela sua estratificação e profissionalização ao longo do século 20; chegando à sua comercialização já nos anos 1990, aprofundando-se na virada do século. Essencialmente, uma viagem em que o futebol evoluiu de uma simples competição desportiva para se tornar uma competição desportiva situada num conjunto complexo de estruturas econômicas, sociais e políticas com enorme significado cultural e financeiro.
Para muitas pessoas em todo o mundo, o futebol continua a ser uma celebração, um hobby, uma atividade de lazer e um rito de passagem; no entanto, o futebol é cada vez mais reconhecido como uma indústria em si, uma indústria que deve ser gerida de forma profissional. O futebol é o esporte mais rentável numa indústria que, considerando o entretenimento desportivo (que inclui ligas desportivas profissionais), produtos desportivos e organizações de apoio ao esporte, gerou 455,7 bilhões de euros em 2022 e deverá atingir receitas de 642,96 bilhões de euros até 2026.
Nos primórdios do futebol moderno, quando se discutia a profissionalização do esporte, o que estava em questão era basicamente a divisão entre as pessoas que defendiam que o futebol deveria continuar a ser praticado apenas pelo prazer de jogar bola (afinal o amador é aquele que ama o que faz, não se importando com o dinheiro) e aquelas que percebiam a necessidade de se profissionalizar o jogo, para que os atletas fossem remunerados, além dos custos cada vez mais crescentes à medida em que o futebol se popularizava cada vez mais. Essa discussão foi travada na Inglaterra ainda nos fins do século 19 e no Brasil se intensificou nos anos 1920, com o reconhecimento oficial da profissionalização nos anos 1930. Tanto na Inglaterra como no Brasil havia, também, um inequívoco recorte de classes. O futebol moderno, como sabemos, foi codificado a partir de diversas práticas de jogar bola nas escolas das elites britânicas. Os primeiros clubes de futebol eram constituídos, essencialmente, pelas camadas privilegiadas da sociedade. Os amadoristas naquela altura não eram meros românticos do esporte, mas pessoas que defendiam a manutenção do seu status quo dominante no jogo. Ao passo que os profissionalistas argumentavam no sentido de se oficializar algo que gradativamente foi crescendo no esporte: o pagamento a atletas para jogarem futebol. Isso porque com o crescimento do futebol, foram surgindo novas competições, o que implicava uma maior frequência de partidas e, principalmente, a necessidade de atração de futebolistas de maior qualidade (e isso tinha, evidentemente, um custo).
Contudo, e finalmente chegando ao âmago da tua questão, quando se fala na contemporaneidade em “profissionalização dos clubes” ou “profissionalizar o futebol” o termo “profissionalização” já tem outra conotação, completamente diferente daquela de 100 anos atrás. Em tempos de hipercomercialização e hipercomodificação do esporte, profissionalização significa a gestão profissional do futebol. Ou seja, refere-se à administração das atividades e responsabilidades relacionadas ao futebol como uma indústria, o que envolve a habilidade de planejar, organizar, liderar, comunicar e tomar decisões eficazes no contexto da grande atividade econômica e financeira que a indústria do futebol se tornou. Os clubes de futebol são uma das principais partes interessadas (stakeholders) nesta indústria, afinal de contas sem clubes não existe futebol, pois foi a partir da paixão, devoção e dedicação dos torcedores de clubes que o futebol evoluiu até se consolidar como um grande setor de atividade econômica. Gerir de forma profissional implica em compreender toda a complexidade de um clube de futebol no contexto contemporâneo no qual está inserido. Um clube “profissional” nos dias atuais é aquele que se organiza e estrutura de forma a gerir de forma eficaz e eficiente, no qual há a reunião dos recursos – as pessoas, o dinheiro, o equipamento – necessários para tornar o trabalho e os trabalhadores mais produtivos. Mas, no que diz respeito ao futebol, é necessário ter em conta que a gestão do futebol também pressupõe a responsabilidade pelo desempenho não apenas financeiro do clube, mas desportivo. E a responsabilidade pelo desempenho envolve combinar e coordenar recursos humanos, tecnológicos e financeiros para atingir os objetivos primordiais de um clube de futebol que são os resultados desportivos. Esta compreensão complexa de um clube de futebol nos obriga a visualizar este organismo como uma estrutura que precisa gerir desde a formação de atletas nas categorias de base até ao time profissional, o que implica na reunião de profissionais como treinadores, psicólogos, nutricionistas, médicos, fisioterapeutas, massagistas, cozinheiros, etc; passando pela gestão do marketing, que envolve tanto a captação de recursos através de patrocinadores até a comercialização de produtos que não se limitam mais às camisas e equipamentos esportivos, mas toda uma parafernália de produtos com a marca do clube; chegando à gestão da comunicação, o que envolve, dentre outros, as redes sociais, produção de conteúdos audiovisuais, etc.
Entretanto, nos últimos tempos no Brasil tem se notado um discurso falacioso na defesa da transformação dos clubes de futebol em empresas, principalmente desde que se intensificou o lobby pela aprovação da lei que criou as chamadas Sociedades Anônimas de Futebol (SAF). E por que falacioso? Porque criou-se uma falsa associação entre gestão profissional de futebol ao processo de “emprezarição” dos clubes de futebol. Como se um clube de futebol para ser bem gerido, ou seja, gerido de forma profissional, precisasse, obrigatoriamente, ser constituído de forma empresarial. Essa narrativa conseguiu lograr êxito se olharmos para as redes sociais e vermos como a imensa maioria das massas torcedoras acredita que as SAFs são a salvação, quase que milagrosa, dos clubes e do futebol brasileiro. Porém, isso não corresponde à realidade. E basta observarmos os dois clubes brasileiros mais bem-sucedidos nos últimos anos: Palmeiras e Flamengo. Ambos os clubes são geridos de forma profissional e até hoje seguem o modelo de clube associativo. Ou seja, Palmeiras e Flamengo são exemplos irrefutáveis de que a profissionalização da gestão de um clube de futebol não passa, obrigatoriamente, pela constituição de uma pessoa jurídica empresarial para este fim.
Baste lembrarmos, ainda, que dois dos maiores clubes de futebol do mundo também seguem o modelo associativo: Real Madrid e Barcelona. Obviamente, não quero dizer que nenhum destes exemplos se refere a clubes perfeitos, e os problemas financeiros do Barcelona nos últimos anos evidenciam isso, mas é inegável que os dois gigantes espanhóis são clubes extremamente profissionalizados na divisão orgânica da gestão de toda a estrutura complexa de um clube de futebol moderno, sendo dois dos maiores conglomerados transnacionais da indústria do futebol global.
Ao passo que não faltam casos de clubes-empresas que foram mal geridos e faliram, como os tradicionais italianos Napoli, Fiorentina e Parma. Em Portugal, diversas Sociedades Anônimas do Futebol (SAD) também faliram, como a do Beira-Mar, campeão da Copa de Portugal de 1999, cujo proprietário da SAD, um estrangeiro, desapareceu e o clube teve que recomeçar na II Divisão Distrital de Aveiro (futebol amador); além do caso emblemático de rompimento entre o clube Belenenses e a SAD que geria o futebol profissional, que originou o recomeço do clube na III Divisão Distrital de Lisboa (futebol amador) e a SAD, que passou a ser B-SAD, a atuar na I Liga Portuguesa (atualmente, o Belenenses está na II Liga Portuguesa, enquanto a B-SAD, depois de uma tentativa de fusão frustrada com o Cova da Piedade caiu para o amadorismo e está na II Divisão Distrital de Setúbal).
Evidentemente não estou com isso dizendo que as SAFs estão fadadas ao fracasso. Apenas busco trazer o contraponto ao argumento de que apenas um clube-empresa pode ser gerido de forma profissional. É falso! Um clube associativo pode ser bem gerido, por pessoas competentes, ou mal gerido, por dirigentes incompetentes; tanto quanto uma empresa também pode ter gestores competentes ou incompetentes. Ademais, é importante lembrar duas coisas: primeiro que não existem xeques árabes ou príncipes sauditas para todas as SAFs brasileiras, ou seja, são poucos os projetos do chamado “multi-club ownership” com fundos soberanos multibilionários nadando em petróleo e gás natural; segundo, cada fundo de investimento ou bilionário que compra um clube de futebol tem sua agenda própria e um clube da semiperiferia de um país da semiperiferia do sistema mundo (Nordeste do Brasil) dificilmente há de ser a prioridade em meio à sua vasta carteira de “investimentos”.
Apesar de muita tradição e grandes torcidas, os clubes pernambucanos enfrentam uma crise de resultados de anos. Onde estão os nossos gargalos?
Na minha percepção, o que explica o insucesso dos nossos clubes é uma combinação de fatores. E como você falou em “gargalos”, eu entendo que o primeiro grande gargalo é estrutural e diz respeito àquilo que o nosso Francisco de Oliveira, ao tratar da chamada “Questão Regional” brasileira, afirmou se tratar “antes de tudo e sobretudo” de um “caso de uma unidade nacional mal resolvida”. De forma resumida, o Brasil é um país com enormes desigualdades regionais. No país, há uma dominação hegemônica de seu centro de poder político, econômico e cultural. A acumulação do capital e sua expansão e o próprio modelo de desenvolvimento capitalista no país gerou enormes assimetrias regionais, criando uma relação centro-periferia interna. Francisco de Oliveira argumenta que o processo de acumulação primitiva que deu origem às novas classes dominantes da burguesia cafeicultora é fulcral para compreendermos a formação de desigualdades, que tem efeitos em todos os setores da sociedade e da economia, inclusive o futebol e a tal da “indústria futebolística”. A ausência de um verdadeiro projeto nacional de desenvolvimento perpetuou até hoje estas assimetrias regionais. E o futebol, como reflexo do ambiente econômico e social no qual está inserido, não escapou ao modelo excludente do processo de acumulação de capital do país. Em termos estruturais ainda podemos falar do formato do Campeonato Brasileiro, que contribui diretamente para o ciclo vicioso de acumulação de capital – econômico e desportivo – e, consequentemente, amplia as desigualdades. Veja que o primeiro Campeonato Nacional, a Taça Brasil, realizada entre 1959 e 1968, apesar de também refletir as assimetrias regionais no que diz respeito aos títulos (dos 10 campeões, apenas um clube fora do Sudeste foi campeão, o Bahia em 1959), por conta de seu regulamento regionalizado, que previa o cruzamento entre representantes do Norte/Nordeste, assegurava a essas regiões a presença nas semifinais e ainda houve anos como 1960, 1961 e 68, em que clubes nordestinos entraram diretamente nas semifinais, fazendo com que o Nordeste tivesse dois times entre os quatro primeiros colocados. Os clubes nordestinos estiveram em 60% das finais da Taça Brasil (o Bahia foi campeão em 1959 e vice-campeão duas vezes; o Fortaleza finalistas duas vezes; e o Náutico uma) e 32% dos semifinalistas foram do Nordeste. Já os diferentes modelos do Campeonato Brasileiro iniciado em 1971 (e aqui ignoro o Robertão, disputado entre 1968-70, porque era essencialmente um Rio-São Paulo expandido), mesmo nos tempos de mata-mata, evidenciam algo incontornável no futebol: o sucesso desportivo reflete a saúde financeira, ou seja, capital desportivo é indissociável do capital econômico. De 1971 para cá, o Nordeste só esteve entre os quatro primeiros sete vezes (seis delas nos tempos do mata-mata) e só foi campeão duas vezes (Sport em 1987 e Bahia em 1988 – ambas em mata-mata), em termos percentuais isso é insignificante. O formato de pontos corridos agravou ainda mais essa desigualdade, uma vez que este modelo impõe a necessidade de bons planteis, pois dificilmente um time com apenas um time titular forte resiste à desgastante maratona que é uma temporada de pontos corridos. Desde 2003, do Nordeste apenas o Fortaleza chegou entre os quatro primeiros (em 2021) e todos os campeões brasileiros nas 21 edições dos pontos corridos foram do Sudeste.
A disparidade econômica ficou ainda maior a partir do surgimento do Clube dos 13. Esta entidade é um bom exemplo daquilo que David Harvey denominou “acumulação por despossessão”. O C13 negociava os direitos de transmissão de todo o Campeonato Brasileiro da Série A e distribuía o dinheiro de forma desigual, privilegiando os seus associados (tendo um sistema de casta interno, inclusive). A violência econômica era tão grande que o C13 negociava com os clubes não-membros o valor que ia pagar a esses clubes, os denominava de “convidados”. Veja bem o ultraje. Os direitos de transmissão não pertenciam ao C13, nem à CBF, que delegava a prerrogativa de negociação para a associação, mas sim aos clubes. E quando o C13 ia oferecer as migalhas aos clubes fora do seu círculo oligárquico, esses eram tratados como “convidados” de um direito que pertencia aos clubes e não ao C13. O C13 surgiu exatamente no período em que a indústria futebolística teve um boom de injeção financeira a partir das vendas dos direitos de transmissão, acentuado principalmente no começo dos anos 1990, como reflexo do desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação. E aquela entidade concentrou em si e entre os seus associados a acumulação de capital gerado naquele período. Mesmo a implosão do C13 em 2011, fruto de uma disputa interna e com influência de agentes interessados externos à entidade, não pôs fim à lógica de acumulação, pois o fim da associação representou o escavar do abismo, aprofundando aquilo que eu denominei de “apartheid futebolístico”, com as negociações individuais dos direitos de transmissão – que nos primeiros contratos basicamente de alguma forma ainda refletia as castas do C13, embora de forma piorada (com uma concentração de recursos ainda maior num cada vez mais seleto e reduzido número de clubes). A existência do Clube dos 13 é reflexo deste país de unidade nacional mal resolvida, ou seja, de uma nação sem projeto nacional desenvolvimento e cujo processo de acumulação e distribuição de capital sempre foi desigual.
Contudo, é importante dizer que esta lógica de acumulação e consequente desigualdade também se reproduz nas esferas regionais e locais. Falando de Pernambuco, onde se deu a acumulação de capital no nosso estado? Essencialmente na capital, Recife. Na história do futebol pernambucano, quantos clubes do interior foram campeões? Apenas um, o Salgueiro, em 2020. Salgueiro que, por sinal, está ameaçado de sequer disputar o Pernambucano 2024 por conta da crise financeira que atravessa. Os chamados “grandes” clubes pernambucanos sempre reclamaram da desigualdade das “cotas de TV” do Campeonato Brasileiro. E com razão, diga-se de passagem. Porém, alguma vez vimos estes mesmos clubes proporem uma divisão mais equânime do dinheiro da TV no Campeonato Pernambucano? Nunca. Ou seja, os três grandes reproduzem, a nível local, a lógica de acumulação e de exclusão que sofrem a nível nacional. Falando nisso, é importante mencionar o papel do Sport naquilo que Francisco de Oliveira chamou de “arquipélago de ilhotas oligárquicas” e que não se deve “absolver oligarquias regionais, mas tratá-las como aliadas” das oligarquias nacionais. Transpondo isso para o futebol nacional, temos a classe dominante – os 12 clubes do centro do sistema econômico fundadores do C13 – e seus aliados oligárquicos nos estados da semiperiferia do país, como é o caso dos nordestinos Bahia (também fundador do C13), Vitória e Sport. Basta ver que os dois pentacampeonatos pernambucanos do Sport, bem como a conquista da Copa do Brasil, aconteceram precisamente no período de existência do C13. Esta acumulação de capital fez com que o Sport tivesse um poderio financeiro muito superior até mesmo aos dois rivais do Recife, ao ponto de parte de sua torcida se orgulhar de dizer que não cabe em Pernambuco e não tem rivais locais. Aliás, não é por acaso que a folha salarial do Sport para o Pernambucano 2024 seja maior que a soma de todos os demais clubes.
Para além de tudo isso, há um outro fator que contribui para o fracasso dos clubes pernambucanos nos últimos anos: a incompetência dos dirigentes. Vale ressaltar que quando falamos do insucesso do futebol pernambucano, pela imposição da lógica excludente, estamos, infelizmente, falando apenas dos três grandes do Recife. E é incontornável que apesar de todos os constrangimentos estruturais que apontei anteriormente, os resultados desportivos de Sport, Náutico e Santa Cruz estão muito abaixo daquilo que poderiam apresentar. Isso, ao meu ver, é fruto de anos e anos de gestões medíocres, ruins e algumas péssimas. Basta ver, por exemplo, a campanha vergonhosa do Náutico no Campeonato Brasileiro de 2013, ano em que o clube teve o maior orçamento de sua história. Ou o Santa Cruz, com o potencial que tem, devido à enorme torcida que possui, estar sem divisão nacional em 2024. Mesmo o Sport, que por conta dos fatores que mencionei anteriormente, tem mais recursos financeiros e nos últimos anos esteve aquém do seu potencial.
Por fim, é preciso fazer uma profunda reflexão sobre as estruturas do futebol pernambucano. A Federação Pernambucana de Futebol precisa fazer uma autocrítica, analisar, dentro daquilo que está ao seu alcance e sua responsabilidade institucional, o que tem faltado para que o futebol pernambucano (e aqui me refiro ao estado todo) tenha estagnado e apresente dificuldades competitivas não apenas a nível nacional, mas até mesmo regional.
Quais os prejuízos indiretos para a sociedade mesmo com o enfraquecimento do nosso futebol?
Se o futebol pernambucano mantiver a tendência atual de decadência, pode impactar negativamente desde a economia local até mesmo a autoestima da população. Várias pesquisas demostram que a presença de equipes profissionais nos mais altos escalões competitivos nacionais beneficiam a economia local de diversas maneiras, como na criação de novos empregos, no aumento dos gastos dos consumidores e no aumento das vendas em determinados segmentos de mercado. Basta pensar, por exemplo, que o sucesso de um time pode contribuir para o movimento da economia local com o aumento da venda de ingressos e a grande afluência aos jogos implica no incremento dos serviços no entorno dos estádios (que beneficiam vendedores ambulantes, por exemplo), bem como a venda de produtos do clube (e aqui é preciso considerar a realidade, ou seja, levar em conta não apenas os produtos oficiais, mas o aquecimento do mercado informal). Até mesmo a imprensa esportiva é impactada pelo sucesso ou insucesso dos clubes locais, uma vez que a demanda pela informação está diretamente relacionada com a frequência e a qualidade das competições e, consequentemente, a atração de anunciantes nos mais variados veículos de comunicação. Em termos de consumo em segmentos de mercado, por exemplo, temos um estudo conduzido pelo banco neerlandês ABN Amro na primeira década dos anos 2000 que constatou que os neerlandeses consomem mais cerveja quando seus times vão bem. Um estudo inglês realizado após a temporada 2019/20 demonstrou que a Premier League inglesa gerou 94 mil empregos naquela temporada e as economias das cidades foram beneficiadas pela presença de deus clubes na principal competição do futebol inglês. Por exemplo, 1,92% de todo o valor agregado bruto (VAB) da cidade de Huddersfield veio do setor da economia do esporte, com a presença do Huddersfield Town na Premier League; Sheffield veio logo a seguir, com o setor da indústria desportiva representando 1,3% do VAB da cidade. O mesmo estudo constatou que quanto mais clubes de futebol e rugby as cidades tinham nas duas primeiras divisões nacionais, maior o faturamento de toda a indústria desportiva e maior o número de empregos no setor desportivo, contribuindo para a economia local.
O enfraquecimento do futebol pernambucano pode gerar a consequente perda da reserva de mercado que nossos clubes ainda têm no estado. Aliás, o fato de os clubes do interior não terem condições financeiras para serem competitivos a nível estadual, somado aos problemas estruturais do desenvolvimento desigual do nosso país, já tem como consequência direta a influência cada vez maior de clubes de Rio de Janeiro e São Paulo, como algumas pesquisas evidenciam. Isso ocorre por conta da própria lógica do sistema. Isso porque a expansão do capitalismo pressupõe a expropriação e a fagocitose de mercados para além dos seus limites territoriais para que ocorra a acumulação de capital (e isso ocorre em todas os níveis, internacional, nacional, regional, estadual). O mercado do futebol não é diferente. Verificamos que esse setor também precisa de uma fronteira externa, de algo para absorver. Os grandes clubes de Rio de Janeiro e São Paulo se expandiram absorvendo os mercados da semiperiferia e periferia do Brasil, consolidando-se, assim, como clubes nacionais. Pernambuco ainda é um bastião de resistência, em que pese a disputa cada vez mais dura no interior. Se o nosso futebol local continuar a se enfraquecer, a tendência é perder cada vez mais esta reserva de mercado e agora com uma ameaça externa que vai além das fronteiras nacionais, que é a expansão avassaladora dos clubes europeus sobre o mercado brasileiro. As novas gerações consomem cada vez mais o produto do futebol europeu. O fenômeno de ver crianças falando em “meu City”, “meu PSG”, “meu Real”, “meu Barça” é preocupante. Nossos clubes, que já competiam pela atenção e atração de consumidores com os maiores clubes do Rio de Janeiro e de São Paulo, agora competem com os clubes mais ricos da Europa. Portanto, a decadência do futebol pernambucano pode fazer com que nos tornemos meros consumidores (massificado pela alta exposição midiática, fruto da hegemonia cultural) ao invés de produtores da indústria futebolística.
Tudo isso, por fim, tem ainda um impacto negativo na autoestima do nosso povo. Vários estudos associam o orgulho e a autoestima das pessoas ao sucesso esportivo do seu país ou do seu clube. O pernambucano sempre se orgulhou do seu futebol. Até hoje os alvirrubros se orgulham dos feitos do Náutico dos anos 1960, que encarou de frente alguns dos maiores times da história do futebol brasileiro, recebendo elogios até de Pelé; os tricolores se orgulham daquele time dos anos 1970; os rubro-negros dos títulos do Brasileiro de 1987 e da Copa do Brasil 2008. Em termos de construção do imaginário coletivo, o pernambucano, independentemente do clube de sua predileção, sempre se orgulhou do fato de ter “três times para torcer”. Isso pode se alterar, como mencionei há pouco. Além disso, se antes tínhamos apenas a Bahia como grande rival no Nordeste, atualmente vemos a ascensão do futebol cearense e a perda de competitividade dos nossos clubes na Copa do Nordeste como uma fonte de vergonha e não de orgulho. Este impacto na autoestima é inevitável, principalmente considerando a importância do futebol para o nosso povo.
Como funciona o Plano de Desenvolvimento do Futebol da China? Por que o gigante asiático decidiu apostar na modalidade com um plano de Estado?
A identificação de um problema a ser resolvido é o pontapé inicial para a definição da agenda e, consequentemente, para a formulação de uma política pública. No caso do Plano do Futebol Chinês, “quais são os problemas” identificados?
Além do problema óbvio que é a fragilidade do futebol masculino chinês, existe outro fatore determinante. O futebol é considerado a força motriz para o desenvolvimento de toda a indústria desportiva chinesa. A China pretende ter a maior indústria desportiva do mundo até 2035. Espera-se que, até lá, o setor represente cerca de 5% do PIB chinês.
Por esta razão, em 2014 e 2015 o Conselho de Estado publicou dois documentos, apontando para a necessidade de formular um plano de médio e longo prazo para o futebol. Depois, em 2016, veio o “Plano de desenvolvimento do futebol a médio e longo prazo da China (2016-2050)” (中国足球中长期发展规划 2016—2050年). Esse Plano elevou o desenvolvimento do futebol ao patamar de interesse nacional.
A implementação do Plano do Futebol está a cargo de um órgão criado exclusivamente para o efeito, o Gabinete do Conselho de Estado da Conferência Interministerial Conjunta para a Reforma e Desenvolvimento do Futebol. Dentre os órgãos estatais, estão 11 Ministérios. O Plano do Futebol se divide em três etapas e o objetivo final é que até 2050 a China tenha sediado uma Copa do Mundo e a seleção chinesa de futebol masculino esteja ao menos no top 20 do ranking da FIFA. Dentre algumas medidas adotadas pelo governo, está a ampliação da carga horária de educação física, com maior ênfase do futebol; a construção de campos de futebol; o estímulo à abertura de escolas de futebol, dentre outras. Parte da execução do Plano fica a cargo da iniciativa privada, mas sempre sob a supervisão do Estado, como aconteceu quando os clubes chineses começaram a gastar muito em contratações ou quando empresas chinesas começaram a comprar clubes na Europa – o governo criticou ambas as situações e a primeira foi solucionada através de medidas adotadas pela Associação Chinesa de Futebol e a segunda com o fechar das torneiras dos financiamentos para empresas e empresários que buscavam empréstimos para aquisição de clubes (vale ressaltar que na China, ao contrário do que ocorre nos países dominados pelo neoliberalismo, o sistema financeiro é controlado pelo Estado e os bancos são Estatais).
Já no segundo semestre de 2022, o “Plano de Reforma e Desenvolvimento do Futebol de Mulheres Chinês (2022-2035)” (中国女子足球改革发展方案 2022-2035年), em 2022. Um documento elaborado pela Administração Geral de Esportes, apresentado junto com os Ministérios da Educação e das Finanças e a Confederação Chinesa de Futebol, que se concentrou em sete áreas, incluindo um sistema de gestão qualificado, uma seleção nacional muito melhorada, um sistema de treinamento e competição juvenil, um grupo de treinadores altamente qualificados e um futebol feminino popularizado no país. O Plano do Futebol de Mulheres também coloca como meta melhorar o sistema de campeonatos nacionais, ampliando de 48 para 50 clubes nas três principais ligas até 2025, sediar a Copa do Mundo na próxima década e consolidar a seleção nacional entre as melhores do mundo até 2035.
É evidente que o desafio chinês, principalmente no futebol masculino é enorme. As autoridades chinesas têm consciência disso e, por essa razão, o Plano vai até 2050. Contudo, os fãs de futebol no país demonstram insatisfação com os constantes fracassos de sua seleção. Por isso, houve até uma tentativa de fortalecer a seleção com jogadores naturalizados, mas que não deu certo e a China não se classificou para o Mundial do Catar em 2022.
A China enfrenta um grande desafio, que exige mais uma vez do Estado chinês o seu papel de indutor da destruição criativa, do fomentador de um segmento industrial, neste caso o da indústria futebolística. Refiro-me ao desafio da inovação cultural que é fazer com que o futebol passe a fazer parte do cotidiano do povo chinês, que a prática do futebol se torne um hábito cultural e, consequentemente, novos talentos possam vir a ser identificados e, assim, também se estimule ainda mais o consumo do futebol e de seus produtos. Isso não é fácil.
Há possibilidades de parcerias do futebol chinês com o pernambucano, com benefícios para ambos os lados?
E é precisamente neste aspecto que Pernambuco pode cooperar com a China. Os clubes pernambucanos, por exemplo, podem contribuir com o fomento da prática do futebol na China buscando parcerias não apenas com clubes chineses, mas principalmente com municípios e províncias e até mesmo faculdades. Por exemplo, Náutico, Retrô e Sport têm o certificado de clube formador da CBF e possuem, os três, boas infraestruturas para o desenvolvimento de jovens atletas, com seus centros de treinamentos. Estes clubes podem oferecer suas estruturas para receberem jovens chineses por períodos de seis meses, um ano ou até mais e estabelecerem contratualmente como podem dividir os frutos de eventuais talentos que se firmem no futebol profissional, por exemplo. Podem, também, irem à China e realizarem seminários, cursos de curto e médio prazo, promoverem, enfim, um intercâmbio com os chineses. Dentro da lógica eurocêntrica do mercado futebolístico global, como falei anteriormente, dificilmente os clubes pernambucanos conseguirão, a curto prazo, competir com os ricos clubes europeus no mercado chinês, porém têm a possibilidade de, com paciência, iniciarem um trabalho de construção de imagem se associarem a sua marca e sua expertise na formação de atletas na ajuda ao fomento de jovens talentos chineses.
A minha faculdade na Universidade Tongji, em Shanghai, a Faculdade Internacional de Futebol foi pioneira na China e a maioria dos alunos e alunas pratica futebol – seja nos torneios universitários, seja mesmo em competições nacionais. O time masculino disputa a quarta divisão chinesa e o time feminino, em parceria com o Shanghai Port, disputa a terceira divisão nacional. E a Faculdade tem todo o interesse em estabelecer parcerias e cooperações com clubes brasileiros.
Agora, os clubes precisam elaborar um projeto, apresentar um programa com metas, objetivos, uma planificação detalhada da execução, etc., ao clube, à província, ao município ou à faculdade com a qual pretende estabelecer parceria.
Quais os caminhos para reverter esse cenário de crise do futebol pernambucano?
Ao meu ver, a primeira medida deve ser estrutural, algo que ultrapassa a questão exclusiva do futebol pernambucano. Como disse na primeira resposta, o futebol brasileiro é desigual, refletindo as assimetrias regionais do desenvolvimento concentrado em poucos estados do Brasil. Um país com a dimensão do nosso não pode ter um Campeonato Brasileiro restrito a apenas 20 clubes. Mas, mais do que isso, o modelo de disputa deveria ser algo semelhante ao da NBA (basquete) ou NHL (hóquei no gelo) da América do Norte. Ou seja, um verdadeiro Campeonato Brasileiro deveria ser dividido em quatro conferências regionais, cada uma com, pelo menos, 20 clubes na principal divisão; os campeões de cada conferência já estariam classificados para a Copa Libertadores e fariam as semifinais e finais do Brasileirão, para definirem o Campeão Nacional. Com isso, garantir-se-ia o acesso de clubes de outras regiões ao elevado faturamento que uma competição como a Libertadores proporciona. E não me refiro apenas aos direitos de transmissão, mas o aumento do poder de barganha e atração para negociar com patrocinadores.
Outra medida fundamental para o desenvolvimento mais justo do futebol brasileiro passa pela divisão equânime dos direitos de transmissão. Basta olharmos os modelos das ligas norte-americanas e das principais ligas de futebol na Europa a fim de ponderarmos um paradigma que se adeque às nossas necessidades.
Por fim, é preciso que os clubes pernambucanos sejam geridos de forma profissional. E, como já disse anteriormente, isso não implica necessariamente em transformar os clubes associativos em SAFs. Ser SAF não é garantia de boa gestão e de competência no futebol. Como eu também já mencionei, todos os clubes que disputam o Campeonato Italiano são empresas, alguns são bem geridos, outros não e vários faliram e tiveram que recomeçar com outro “CNPJ”, digamos assim; na Inglaterra também, todos os clubes da badalada Premier League são empresas e isso não garante sucesso, basta vermos como a família Glazer trata o Manchester United ou como a torcida do Newcastle vibrou com a venda do clube para um fundo de investimento saudita, pois não suportava mais o proprietário anterior. Ademais, com a tendência de muitos clubes brasileiros se transformarem em SAFs, daqui a uns anos vamos assistir a uma competição de proprietários, ou seja, qual o proprietário tem maior condições financeiras para injetar dinheiro no futebol ou qual proprietário vai ter realmente interesse na gestão do futebol para além de usar o clube para fazer dinheiro com vendas de jogadores. Nem todo clube empresa tem como principal objetivo ser campeão. Portanto, o caminho é a profissionalização e toda a complexidade que isto envolve, sem se iludir com medidas milagrosas.