Gilberto Freyre: um sociólogo na cozinha? - Revista Algomais - a revista de Pernambuco
Cultura bem temperada

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Raul Lody

Gilberto Freyre: um sociólogo na cozinha?

Para celebrar os 80 anos da primeira edição do livro “Açúcar” (1939), obra que traz um homem interessado por receitas de bolo, doces de frutas; e, mais ainda, por papel de seda recortado como se fosse renda para enfeitar pratos, tabuleiros, foi um verdadeiro escândalo. Como um sociólogo na cozinha?

Sim, na cozinha, pois era na intimidade da casa, e notadamente na intimidade de quem fazia a casa pulsar, o fogão funcionar; as receitas reviverem os mosteiros, as vendas e ganhos nas ruas; das sobremesas dos restaurantes populares aos hábitos de comer e de beber dentro de casa.

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A comida, e tudo que se relacione com processos culinários, tecnologias artesanais, receitas e rituais de comensalidade, formam as bases conceituais e emocionais para Gilberto interpretar o açúcar e o doce no âmbito da casa, um lugar de destaque dentro da sua obra de interpretação do homem lusitano situado no Trópico.

No ambiente de Gilberto, para formar sua obra a partir de “Casa-Grande & Senzala”, a casa e tudo que ritualmente se vive dentro dela, como as complexas relações sociais, marcaram e orientaram Gilberto no seu mergulho multicultural sobre o homem português, o colono oficial que trouxe o açúcar.

Sem dúvida, a cozinha é o lugar mais profundo e memorial para se trazer referências e experimentar a cultura pela boca, na sua diversidade de emoções, e nas variadas maneiras que nos alimentamos.

Estes contextos sociais estão na obra de Gilberto Freyre, onde são destacadas matrizes etnoculturais que estão nos sabores, nas escolhas dos ingredientes, nas receitas e na estética dos pratos.

Comer é um ato social que é ritualizado na forma de oferecer, nas diferentes formas de comensalidade do cotidiano e nas festas, especialmente nas celebrações religiosas.

Também em Gilberto, há temas dominantes que interpretam os lugares sociais, que eram bem determinados nas hierarquizações das casas de engenhos, onde os ofícios de cozinhar e da confeitaria se uniram para celebrar os doces já tropicalizados, que integravam frutas nativas e outras, que apesar de serem do Oriente, nacionalizadas nos hábitos à mesa.
Desse modo, os repertórios de comidas e de bebidas passam a mostrar as muitas maneiras de se representar e apresentar o açúcar, juntamente com a farinha de mandioca, e outros temas do dia-a-dia dos engenhos.

Nessas bases de história e de economia são formados mercados, escolhas sobre o que comer, onde comer, com quem comer. São múltiplas as relações para se afirmar o poder do açúcar.

Outros contextos, como as vendas ambulantes, trazem as relações das muitas e diferentes cozinhas com as comidas rápidas, comidas de rua. Traduções de ingredientes e de receitas nos cenários sociais das cidades, ainda com as suas representações patrimoniais e patriarcais que ditavam as tradições não só do comer, mas do fazer e do vender.

Cozinhas ambulante que acontecem na frente do freguês, são rituais de fazer comida no momento da sua venda. Há interações entre o culinarista e freguês, vive-se o processo da receita e, sem dúvida, a memória traz as referências e os símbolos da comida desejada.

Todos estes temas, e maneiras para se viver a comida, interpretá-la, mostrar as suas matrizes etnoculturais, é uma forma de traduzir o Nordeste, e a civilização do açúcar. E todo esse olhar traz o pioneirismo de Gilberto Freyre, que há 80 anos atrás já pensava na valorização dos sistemas alimentares, e na afirmação das identidades e dos patrimônios culturais da região.

*Raul Lody

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