*Por Beatriz Braga
As princesas da minha infância não tinham voz. Ora dormiam em sono eterno, ora presas numa torre, ora mudas pela maldição da bruxa. Todas à espera dos príncipes que tinham o poder de devolver-lhes a fala e a vida.
Antes da família real entrar em cena, Meghan Markle era ativista, fazendo parte de organizações internacionais como a UN Women. Casou-se com o Príncipe Harry e a pergunta agora é se há vida feminista após o Castelo de Windsor.
Meghan abriu mão da carreira como atriz e apagou sua presença na internet - redes sociais e seu blog The Tig, onde escrevia sobre estilo, viagens e afins. Resta o site da família britânica, na qual ela se proclama orgulhosamente feminista.
O movimento reivindica que a participação de homens e mulheres seja igual na sociedade. Quando uma mulher abre mão de sua independência econômica, social e artística porque a família do cara exige uma anulação do que ela construiu até então, a luta perde um ponto.
No entanto, é preciso diferenciar a estrutura macro do movimento das escolhas individuais de cada mulher. Meghan fez um caminho consciente até o altar. Lutamos, sobretudo, pelo respeito. De puta à princesa, lugar de mulher é onde ela quiser.
Confesso, porém, que se retirada a pompa do conto de fadas; se fosse Recife e não Windsor; se fosse minha amiga e não a colega de Oprah e Clonney a abandonar coisas que aparentemente as faziam feliz em decorrência de um casamento; eu organizaria uma intervenção.
Mas é o Royal Wedding, Elton John vai cantar, a Globo está transmitindo na TV aberta e o mundo, chorando de emoção.
A verdade é que cada era tem a princesa que merece. Ariel, Rapunzel e Bela Adormecida não se encaixam na nova geração. O mundo mudou. E assim mudará, mesmo que timidamente, as grandes estruturas patriarcais que conhecemos.
Agora temos a princesa que consegue dialogar com o público que passou o sábado suspirando: afrodescendente, divorciada e (ex) atriz e advogada da equidade de gênero.
Se Meghan poderá e fará o esforço necessário para ir além disso - a duquesa amada pelos milleniuns que mordenizará a imagem da monarquia - ainda é incerto. Enquanto acena discretamente ao público e senta graciosamente conforme a etiqueta das mulheres da realeza, quem sabe conseguirá usar a poderosa plataforma da qual agora faz parte para ecoar sua posição política.
Se “princesa” e feminista são duas qualidades contraditórias, cabe a sua conduta enquanto duquesa de Sussex revelar.
Ao passo que o movimento feminista aumentou seu poder de alcance, suas pautas deixaram de ser exclusividade das mulheres que lutam e vivem de acordo com toda a cartilha do feminismo.
O movimento estará, também, em versões mais fracionadas e tímidas de homens, mulheres, famílias e membros da realeza. E isso é uma boa notícia.
É importante que os tentáculos do feminismo cheguem até onde nem passavam perto, mesmo que muitas vezes pareça uma afronta às “feministas raiz”. São os reflexos de sua repercussão. Cabe a cada indivíduo mostrar que não é apenas um surfista na nova onda do momento.
Se for para ter contos de fadas que seja como alguém como ela a entrar na família da rainha Elizabeth II que, há pouco mais de 60 anos, foi contra ao casamento da irmã com um homem divorciado.
Apesar de Harry ser um controverso cidadão (tendo aparecido fantasiado de nazista por aí), ele herdou certa dose de coragem de sua mãe, Lady Di, conhecida por quebrar padrões e casos amorosos polêmicos.
Da última vez que alguém da família real britânica quis casar-se com uma americana divorciada - o tio de Harry, Eduardo VIII, em 1936 - foi obrigado a abdicar do reinado em nome da sua relação com Wallis Warfield.
Sobre as tradições casamenteiras, é possível dizer que somos tão antiquados quanto o Palácio de Buckingham.
Olhe em volta. Ainda temos rapazes “pedindo a mão” de suas namoradas aos pais delas; esses últimos, por sua vez, ainda entregam suas filhas no altar ao próximo homem (dono?) da sua vida; ainda jogamos buquês e brincamos o quão desesperadas as solteiras estão para pegá-los.
Após a festa, o papel doméstico ainda recai sobre mulher. A gravidez ainda é uma forma de prisão feminina. Há uma passagem tão natural por esses caminhos que seguimos sem refletir, nos julgando muito distantes de Windsor.
Meghan, aparentemente, esteve consciente do que estava abrindo mão. E nós, por aqui, o quão cientes somos das nossas escolhas? Dentro dos nossos relacionamentos, conseguimos ser feministas “o suficiente”? Temos o apoio necessário para isso? Ou fechamos os olhos diante de contos de fadas impossíveis?
Que bom seria se o feminismo - mesmo que discretamente, para começar - chegasse às nossas vidas tão reais e abandonássemos os protocolos sem sentido que herdamos.
Para que, enfim, o movimento signifique muito mais que o retrato de uma nova princesa super agradável. Que ele possa alcançar sua expressão máxima de poder: o momento que nos tornamos responsáveis – nós mesmas e não algum aparente príncipe – pelo resgate das nossas vozes tantas vezes esquecidas no dia-a-dia das nossas vidas plebeias.
*Beatriz Braga é jornalista e empresária