Lirinha: “Construir emoções e histórias por meio dos sons”

O artista fala do seu mais recente disco solo, uma criação experimental, dentro de uma estética onírica, que teve influência do slam, a competição de poesia falada da cultura hip hop. Também comenta como o trabalho com o Cordel do Fogo Encantado contribui para popularizar a poesia. (Foto: Thaís Taverna)

A partir de um desejo de experimentação, de imaginar e inventar coisas novas, José Paes de Lira, o Lirinha, produziu MÊIKE RÁS FÂN, um disco em que esse experimentalismo é elaborado de forma intimista, numa atmosfera onírica que também nos remete ao cosmos. Não por acaso ele menciona Glauber Rocha, nesta entrevista concedida a Cláudia Santos por videoconferência, em São Paulo, onde reside. O cineasta baiano recorreu a uma “estética do sonho” para encontrar saídas para o surrealismo da realidade brasileira. Lirinha fez o mesmo para abrir as possibilidades da criação.

Nessa empreitada, o músico, escritor, cantor e compositor de Arcoverde se encantou pela voz e pelos sons. Um encantamento que o levou à ideia de conceber o novo trabalho a partir de uma fictícia rádio cósmica que recebe o já reportado nome de MÊIKE RÁS FÂN. Talvez nem tão fictícia assim já que, no segundo semestre, Lirinha planeja lançar um podcast. Nesta entrevista, ele fala das concepções desse novo disco, da experiência de usar uma ferramenta de inteligência artificial numa das faixas e de como seu trabalho com o Cordel do Fogo Encantado tem descartado a concepção de que brasileiro não gosta de literatura. Isto porque em seus shows uma multidão costuma declamar com ele poemas de Zé da Luz ou João Cabral de Melo Neto.

Quando a gente ouve seu novo disco, a impressão que temos é de uma atmosfera cósmica, um tanto onírica. De onde vem essa inspiração?

Esse disco nasce de um desejo de experimentação com essa atmosfera da invenção, desde o próprio título do disco que são palavras que não existem: MÊIKE RÁS FÂN, um nome inventado para uma também fictícia rádio cósmica, interplanetária. A ideia da rádio é para construir emoções e histórias por meio dos sons, do áudio. E esse é um poder que a rádio tem.

Então o disco segue dessa forma, quase todas as canções indicam essa ligação com a imaginação, com o sonho, talvez com a influência da estética do sonho que é algo que eu conheci por meio de Glauber Rocha. Mas o próprio Glauber Rocha já cita outras influências para esse conceito da estética dos sonhos. Há uma música do disco que diz que “tem palavras pra inventar” que é a música Oyê e é isso que conduz, vamos assim dizer, a narrativa do disco: o sonho, a imaginação, o entendimento dessa metáfora do universo como uma realidade aberta que ainda está sendo criada, desenvolvida.

Outra coisa que chama atenção no disco é que assim como outros trabalhos que você fez, você declama muita poesia. Só que antes você recitava e depois cantava. Desta vez a fala permeia a música, você quase não canta. O material de divulgação do disco, afirma que você está investigando o som, a voz. Isso está relacionado com esse processo?

Tem a ver com esse processo, tem a ver com isso da primeira pergunta que eu te disse sobre a rádio. A ideia da rádio é exatamente essa experimentação que eu trago de um determinado estudo desses últimos anos da rádio arte, que é muito ligado à voz, ao grão da voz, ao corpo da voz. Também tive inspiração nos movimentos de declamação, de récita, aqui na periferia de São Paulo, através do slam, do gênero que hoje está muito forte dentro do universo do hip hop.

As experiências do rap com as vozes é algo que também me interessa porque eu comecei como declamador, a minha primeira função artística, meu primeiro envolvimento com a música foi com a poesia falada dita em voz alta. Como dizia João Cabral de Melo Neto: “poesia para a voz alta”, dita, declamada. Comecei a desenvolver o meu trabalho com música, mas a canção era uma coisa, a poesia era outra, entendia como movimentos separados.

Esse disco é o momento que eu tento fazer com que essas duas coisas se fundam e que a minha interpretação passe a ser entre essas duas expressões: música e poesia. Considero que é o meu trabalho em que eu mais consegui unir esses dois elementos. São construções harmônicas, em alguns casos complexos, com muitos instrumentistas, mas a interpretação é mais ligada à fala. A gente pode definir como um canto falado — que é um exercício de outros artistas também — e que eu acho que, de alguma forma, com esse disco, contribuo com essa discografia do canto falado.

Você usou um recurso de inteligência artificial numa das faixas. Como foi essa experiência?

Foi na música Antes de Você Dormir. Ela fala desse momento que precede o sono, o mergulho no adormecer. Eu já tinha pensado algumas coisas sobre isso, que nesse momento nós experimentamos algumas coisas sobre-humanas, vamos dizer assim, temos a capacidade de teletransporte, temos o poder de modificar nossa massa física, tudo através do sonho.

Essa ferramenta é bem comum hoje, é um programa que transforma texto em fala, a gente escreve um texto e uma voz traduz esse texto, fala. Mas o que há de interessante para mim é que esse corpo não existe, essa voz ganha uma materialidade, mas ela é feita por inteligência artificial. Porém, ela ganha expressividade também, faz uma entonação de declamação. Eu deixei a voz um pouco confusa propositalmente, pois meu interesse não era que entendessem, mas era a sua textura mesmo.

É uma voz em inglês falando sobre um momento de lançamento de um foguete, que está prestes a alçar voo. Achei muito curioso que existia essa ferramenta e trouxe para o disco mais uma textura de voz. Existem várias texturas no disco, várias participações e de várias formas. Tem uma música chamada Bebe, que Nash Laila, que é uma atriz, gravou num rádio intercomunicador mesmo, não é um plugin que eu apliquei. Porque era esse o objetivo do disco: trazer vários elementos de textura de vozes diferentes e completei essa ideia com uma voz de um corpo que não existe, de inteligência artificial.

O disco tem uma pegada eletrônica, que também nos faz remeter a um ambiente espacial.

Isso. Um dos objetivos era trazer essa sonoridade eletrônica, ligada a toda cultura da tradição dessa música que é muito ampla, que passa por muitas experiências ao longo desses anos. Mas eu quis trabalhar com sintetizadores também, com esses elementos que dialogavam com as letras, com as poesias, com os arranjos.

No material de divulgação do disco, anuncia que você está pensando em lançar uma série de podcasts. É isso mesmo? Quando será esse lançamento?

Sim. Esse disco, desde que estava sendo elaborado, a ideia era que ele tivesse desdobramentos, que ele provocasse outros exercícios ligados a todo esse conceito que estou te falando e colocar essa ideia da rádio para ter uma vida. E aí entendi que um formato interessante seria um podcast que entra mais como um formato de divulgação mesmo, do que a forma conceitual do podcast, que é um pouco diferente.

Acho que estou fazendo mais um programa de rádio do que um podcast. Mas ele vai sair como podcast, já tenho alguns programas e pretendo lançar final de junho, assim que passar o São João, que é uma festa muito importante na minha vida porque eu sou de Arcoverde, do interior. Provavelmente entre final de junho e início de julho lançaremos o podcast MÊIKE RÁS FÂN rádio cósmica.

Você está pensando em fazer show? Quando virá se apresentar no Recife?

Sim, vai ter show, é um outro movimento importante para mim, porque uma das coisas que eu mais jogo energia no trabalho artístico é na apresentação, é no espetáculo. Venho dessa relação com o teatro também, mas pela primeira vez eu estou organizando separado esse movimento. Agora é o disco, pretendo que as pessoas o conheçam bastante, que virem íntimos do meu disco e, a partir disso, iremos circular nacionalmente com o espetáculo.

Provavelmente irei estrear aqui (São Paulo) no começo de agosto e já tenho alguns contatos para levar para o Recife porque é muito importante pra mim. O Recife é uma cidade fundamental no meu trabalho, pois foi onde tudo se estruturou na minha vida de artista, é uma cidade muito na vanguarda nessa questão musical e artística. Então eu tenho esse cuidado, esse carinho especial. Nesse segundo semestre, com certeza, estarei no Recife com o espetáculo.

Leia na íntegra na edição 219 da Algomais: assine.algomais.com

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