Nos últimos tempos, o Recife assistiu ao fechamento de muitas livrarias. Mas, há pouco mais de um mês, os apreciadores da literatura tiveram a boa notícia da abertura da Livraria do Jardim – Espaço Plural, um complexo cultural que conta com a Livraria do Jardim, que oferece títulos de literatura, e também com o Varejão do Estudante – tradicional loja especializada em livros escolares – e o simpático e bucólico Café Celeste.
A história desse negócio começou com o Varejão do Estudante, fundado há 27 anos pelo livreiro Pedro Tavares, que já acumula mais de 50 anos no ramo editorial. A Livraria do Jardim – Espaço Plural – que tem investimento total de R$ 3 milhões, executado com recursos próprios – faz parte de uma virada de chave dos negócios da família Tavares, que agora expande a sua atuação para além do setor escolar.
Nesta conversa com Cláudia Santos, a sócia do empreendimento, Carolina Tavares, conta a trajetória dessa família empreendedora, que tem no pai, Pedro Tavares, uma inspiração. Carolina fala da conexão da família com o bairro da Boa Vista, onde está situada a loja, da relação com o pai e a irmã, Simone, que é sua sócia, conta como a pandemia impactou os negócios, e as perspectivas de transformar o novo espaço num centro cultural e de lazer.
Como começou a história da Livraria do Jardim – Espaço Plural?
Meu pai foi distribuidor de uma editora chamada IBEP, há muitos anos, e o negócio prosperou, foi crescendo. Na década de 1990, abrimos uma papelaria e uma livraria que só vendia livros escolares: o Atacadão de Papelaria, no bairro da Boa Vista. Depois, entramos numa sociedade e mudamos de prédio. A sociedade não deu tão certo, voltamos para o prédio anterior e abrimos o Varejão do Estudante, há 27 anos, para trabalhar apenas com livro escolar, não mais com papelaria. O negócio cresceu, graças a Deus, em termos, inclusive, de público.
A gente atendia muito bem, oferecíamos muitas facilidades aos clientes. Na época em que não se fazia parcelamento muito longo, fazíamos uma promoção no começo do ano em que se pagava em cinco parcelas. Eram cinco cheques pré-datados e a pessoa só começava a pagar em março, porque no começo de ano, as famílias sempre têm muita despesa. Quando vieram os cartões de crédito, conseguimos aumentar o parcelamento. Nós nos tornamos a única livraria do Brasil que só trabalhava com livro escolar.
Tempos depois começamos a trabalhar com literatura. Duas grandes distribuidoras daqui fecharam e eu acabei ficando com o estoque delas. Como na loja antiga não tinha espaço físico, veio a ideia de nos mudarmos para um local maior. O prédio foi construído na frente da loja. Era um galpão, com o triplo do tamanho da loja anterior, com mais de 1.700m², onde construímos o novo negócio.
Como é esse novo conceito de loja?
Ele foi projetado para trabalharmos como um complexo, que chamamos agora de Livraria do Jardim – Espaço Plural, no qual temos vários negócios dentro dele: o Varejão do Estudante, a Livraria do Jardim e o Celeste Café. São três marcas independentes, assim cada uma tem seu lugar, sua gerência, seu nicho de negócio e planejamento. Cada uma tem sua meta e convive dentro do mesmo espaço. A gente se retroalimenta, foi criado para uma marca dar suporte à outra.
A Livraria do Jardim e o Varejão do Estudante têm um acervo de 50 mil títulos. É uma loja grande, muito bem sortida. O Celeste Café está também indo superbem, é um lugar muito bonito e aconchegante. Ao lado dele há um jardim enorme. Daí o nome de Livraria do Jardim. Fazemos muitas atividades lá e temos um estacionamento para mais de 50 vagas.
Em 4 de abril fizemos uma virada de chave para o nome novo, para trabalhar as outras marcas. A Livraria do Jardim também promoverá eventos. Temos atraído um movimento legal de pessoas, encontros, saraus, lançamentos de livros, tarde de autógrafos, contação de histórias para as crianças. Temos parcerias com colégios. O ambiente foi criado para ocuparmos esse espaço na Boa Vista, que já foi o centro cultural da cidade.
Vocês pretendem contribuir para resgatar essa característica?
Nossa proposta é nos tornarmos um centro de cultura e lazer, onde você pode tomar um cafezinho, ver uma exposição, trocar uma ideia com os amigos, escutar uma música legal, ver seu autor preferido, trazer as crianças. O mundo do livro precisa desse contato com o papel. Eu mesma não consigo ler um livro digital, preciso pegar o papel, sentir o seu cheiro.
Também trabalhamos com o público infantil, é importante desenvolver leitores, tornar a leitura algo agradável, mais próxima, mais fácil. O ambiente da criança na livraria foi feito para que ela possa pegar os livrinhos, sentar, curtir.
Como vocês enfrentaram a pandemia?
Antes de trabalhar como um complexo, passamos quase cinco anos em projetos, aprovações das obras até que mudamos em dezembro de 2019 para o novo prédio. Passamos bem o período de época escolar, que foi de dezembro de 2019 a março de 2020. É uma época em que o livro didático é a alma das vendas.
Mas, logo depois, tivemos que fechar a loja por causa da pandemia. Como todo mundo, achamos que seria uma coisa breve. Aí, o negócio foi apertando, a gente foi se aperreando, mas meu pai é uma pessoa muito segura. Ele disse: “calma que a gente vai dar jeito, calma que o negócio vai funcionar, vamos devagarinho”. E viemos vivenciando tudo isso.
E aí, abrimos a loja que foi criada para ser uma loja pop-up. Então, ela cresce o espaço do livro escolar quando precisa ou abre um espaço para eventos, temos essa mobilidade. Mas foi muito difícil porque a gente não tinha público, todo mundo estava em casa, sem aula, sem poder sair. Não tínhamos delivery. Mas, foi muito bom para pensar e reestruturar o negócio. Não demitimos ninguém, mantivemos todos os 63 funcionários.
Voltamos 100% em agosto e encontramos um negócio muito mudado. Era uma mudança que já vinha acontecendo e que ficou mais intensa depois da pandemia: hoje muitas escolas trabalham com livros próprios, produzidos por elas. Dos 50 colégios grandes do Recife, 8 atuam com livros, todos os outros trabalham com sistema de ensino [que produz seu próprio material didático]. O que abalou muito a gente. O Varejão do Estudante, que é a marca que hoje trata só do escolar, de 2019 para cá, perdeu mais de 50% de faturamento.
Meu pai não me deixou enlouquecer. Dizia “vai dar tudo certo”. Pegamos outros subsídios para poder reinvestir no negócio, a gente vem se arrumando e neste ano estamos apostando muito nessa mudança. O negócio do livro é bom e entendemos bem. A parte de eventos, estamos aprendendo e tem uma perspectiva muito boa de crescimento, lento, contínuo. Eu costumo brincar e dizer que quem só vendia livros escolar tinha que esperar o ano todinho para trabalhar. A gente espera, espera, espera… e acontece. A gente tem essa resiliência de esperar um pouco mais.
O Recife perdeu algumas grandes livrarias. Vocês acham que essa lacuna pode ser ocupada pela Livraria do Jardim?
Eu acredito que sim. Adoro esse ambiente de livraria, de café e de eventos. A gente aposta que isso vai acontecer e, principalmente, por estar num local mais central, de fácil acesso de ônibus, com estacionamento para quem tem carro. Estamos com a faca e o queijo na mão para seguir com isso. Mas, trata-se de um trabalho de construção.
Como a senhora vê o bairro da Boa Vista?
Nós torcemos para que tenha mais investimentos na Boa Vista, a Praça Maciel Pinheiro, e a Rua da Imperatriz, por exemplo, estão deterioradas. Os imóveis estão precisando de cuidado e é preciso reocupar aquela área. É preciso olhar para a cidade, senão vamos perder a nossa referência histórica.
Mas a gente está apostando nesse investimento. É um lugar maravilhoso, os negócios do meu pai sempre foram ali, estudei no Colégio Nossa Senhora do Carmo praticamente a minha vida toda. Então, vivo na Boa Vista desde que me entendo por gente. Trabalho desde muito cedo com meu pai. Muitas vezes, eu saía do colégio e ia ficar com ele no trabalho, esperando uma carona. Acabei pegando amor. Meu pai falava assim: “vem pra cá, já que não está fazendo nada nas férias”. Minha vida profissional começou assim, devagarinho e desde os 18 que estou em tempo integral na livraria.
Tenho muito amor pelo que faço. Mas empreender não é fácil, porém, aprendi muito com meu pai a dar esse salto de fé, de acreditar no trabalho da gente, de ter empenho e essa resiliência de saber que nem sempre vai dar certo, de errar e refazer. Minha irmã Simone é minha sócia hoje no complexo das empresas. Faço a parte comercial e administrativa, ela faz a parte financeira.
Seu pai ainda trabalha?
Ele tem 77 anos. Somos um grupo. Meu pai tem uma editora chamada Construir, especializada em livros didáticos. O parque gráfico fica na Mustardinha [bairro do Recife]. A editora tem uns 30 anos, mas a distribuidora já funcionava antes. Somos uma família de empreendedores que atua em muitas atividades e acabamos crescendo os negócios.
O negócio dele hoje é a editora, que tem distribuição no Brasil inteiro. Quem cuida dos negócios da Livraria do Jardim, do Varejão e do Café Celeste somos eu e minha irmã, desde que a gente se mudou em 2019. E ele é nosso consultor, todo dia eu ligo para ele, trocamos muita figurinha.
Enfrentamos os desafios de uma empresa familiar, uma empresa que não sai de você, que está na mesa do jantar, nas festas de família. Meu pai é a primeira geração e nós somos a segunda, não temos terceira geração dentro da empresa ainda. Estamos dentro do negócio, tivemos uma boa formação operacional. Então a gente opera bem.
Mas precisamos de pessoas com mais capacidade, com mais habilidades que a gente possa não ter para poder prosperar. Então, trouxemos do mercado algumas pessoas, iniciamos um processo de profissionalização. Isso deu um novo olhar, uma outra condição, porque todas as decisões, todas as ideias vinham da família. Até ficamos mais tranquilos, com as irmãs tendo um mediador no meio.
Como é a relação com o seu pai?
Tenho uma admiração enorme por ele, é uma pessoa que se construiu em cima de uma dívida. Meu avô tinha uma distribuidora e acabou tendo problemas financeiros e meu pai começou o negócio pagando a dívida dele. Sempre vi meu pai como uma pessoa que trabalha muito e vem prosperando. Ele é um empreendedor fantástico, é um case, mas é uma pessoa muito tímida, não gosta de aparecer, não gosta de falar dos negócios.
Mas é uma grande inspiração porque é um visionário, não por ser meu pai, mas por toda a dificuldade que ele e a geração dele passaram, que veio de um pós-guerra e por ter enfrentado os problemas do Brasil, como a inflação. Ele é um empreendedor nato, se você conversar cinco minutos com meu pai, ele já inventou dois negócios novos para você. A cabeça dele não para.
E a relação com sua irmã?
A gente convive muito bem, nem sempre é fácil mas a gente combina bem no que faz, trabalhamos juntas. E nunca saberia dizer se é bom ou ruim porque eu nunca trabalhei em outra coisa. Costumo dizer que o trabalho é minha segunda casa, praticamente vivo dentro da empresa.
O Café Celeste é inspirado na sua avó Celeste?
Isso. Queríamos um conceito diferente para o café, para poder criar um ambiente distinto da livraria, um outro negócio. Decidimos fazer o espaço baseados na decoração Art Déco da cidade. Comecei a pesquisar e constatei que essa era a época em que minha avó viveu quando criança e adolescência. E aí foi uma maneira de valorizarmos a marca ao trazer junto esse conceito.
Eu queria que fosse um nome forte, que remetesse à família e que desse para a gente trabalhar o espaço como um local acolhedor, e o nome da minha avó, Celeste, é um nome forte e lindo, que adoro. A logomarca é inspirada numa foto dela. Trabalhamos só com cafés especiais. Fizemos o dever de casa, contratamos uma consultoria de alimentação, fomos atrás de bons profissionais para trabalhar com a gente.
Temos um cardápio legal, tanto de bebidas quanto de comidas. A partir do final de junho já deveremos começar a operar com alguma coisa de almoço, uma salada, um pratinho único e, mais para a frente, oferecer cafés da manhã aos finais de semana. Em agosto, nosso planejamento é começar a operar no espaço maior, que é o espaço externo, para eventos. Já temos alguns marcados.
Quais os planos para a empresa?
Pretendemos investir nessa parte de eventos culturais, trazer as pessoas para a loja. Sabemos que uma loja de rua é ponto, ela não tem a frequência de um shopping por exemplo, ou de outros empreendimentos maiores. Então fazer o ponto é a meta deste ano. Na verdade, o que acontece é que a gente fez uma transição de marca e de perfil de trabalho, trabalhávamos exclusivamente com o livro escolar que é muito pontual, o cliente vem, compra e só precisa voltar no ano seguinte. Quando entra na faculdade deixa de ser cliente.
Temos agora todo um novo conceito de negócio. Implantamos a parte de literatura, trouxemos uma pessoa experiente de mercado, investimos em treinamento das pessoas e hoje temos esse complexo literário que não tínhamos antes. Então até para nós é uma novidade, um negócio novo, apesar de o produto ser praticamente o mesmo, o conceito de negócio de varejo é diferente.
Pretendemos ocupar esse espaço, expandi-lo, para trazer o cliente. O Varejão é uma marca muito forte, principalmente para quem sempre ia no espaço físico comprar. Queríamos uma marca nova e trabalhar uma marca leva um pouco de tempo. Espero que, no ano que vem, a gente possa fazer grandes eventos, trazer grandes autores e palestrantes.
Abrimos um braço de varejo diferente do que tínhamos, é um desafio novo, é praticamente abrir uma empresa do zero e num bairro hoje com muitas dificuldades. A Boa Vista sofre com essa falta de estrutura. Precisamos de uma certa ajuda estatal, porque não podemos fazer muito como empresários.
Mas tem tudo para ser um bairro com uma forte característica cultural e eclética. Nossa proposta é justamente abrigar tudo isso, é tanto que o nome do espaço é Livraria do Jardim – Espaço Plural, para ser plural, para recebermos todas as pessoas, ter um ambiente de troca. Aquele lugarzinho mais aconchegante, com comida gostosa, café gostoso, para você realmente degustar o espaço como um todo, o livro, a calma, o jardim.