1964: Vozes dos cárceres, templos e do exterior contra a Ditadura em Pernambuco

Segunda reportagem da série Memórias do Golpe em Pernambuco registra movimentos de resistência durante a ditadura civil-militar, que completou 60 anos.

*Por Rafael Dantas

O Estado que viu seu governador deposto no Golpe de 1964, que chorou os primeiros assassinatos do novo regime e assistiu à primeira tortura pública na sua capital, também responderia aos ditadores com uma forte resistência. Da ruptura política até a reabertura, em 1985, em Pernambuco brotaram movimentos estudantis, nos presídios ou mesmo nas igrejas. A repressão castigava, retirava algumas lideranças de cena, mas não conseguia sufocar as críticas internas e do exterior. Os pernambucanos exilados também fizeram barulho no cenário internacional.

O time de lideranças com atuação no Estado que firmaram posição contrária à ditadura civil-militar de 1964 incluía nomes como o ex-governador Miguel Arraes, o religioso Dom Helder Camara (ambos cearenses, mas com atuação em Pernambuco), o educador Paulo Freire, entre outros tantos intelectuais, militantes e políticos. O termo ditadura civil-militar tem sido empregado por estudiosos para ressaltar que o golpe teve participação e aderência de setores civis, como imprensa e mesmo a igreja e a classe empresarial no golpe. As críticas ao regime operavam nas brechas que a censura não conseguia calar, como nos comunicados internos da ala progressista da Igreja Católica, nas pichações que povoavam os prédios e viadutos do Recife, entre outros tantos ringues de batalha.

“Ao longo da ditadura, o protagonismo da resistência foi mudando. No primeiro momento vemos a importância do movimento estudantil, que era muito atuante. Os trabalhadores urbanos e rurais também ganharam notoriedade internacional, com figuras como Gregório Bezerra, Francisco Julião e Paulo Freire. Há também os sindicalistas, militantes políticos e do movimento feminista pela anistia, além da Igreja Católica”, destacou o professor de história da UPE (Universidade de Pernambuco) Thiago Nunes Soares.

MOVIMENTOS ESTUDANTIS ATIVOS

O movimento estudantil pernambucano vivia um momento de grande efervescência no início dos anos 1960, quando foi duramente afetado pelo golpe. A intervenção nas direções das universidades e escolas secundárias, perseguições e a repressão policial às lideranças passaram a marcar esse novo período. Organizações como a Ares (Associação Recifense dos Estudantes Secundaristas) e a Ubes ( União Brasileira dos Estudantes Secundaristas) passaram a ser permanentemente monitoradas pela força policial nos encontros e seminários que promoviam.

O relatório da Comissão da Verdade Dom Helder Camara sobre os movimentos estudantis relata que: “As proibições de reuniões e de manifestações estudantis dentro das universidades chegaram a considerar conversas entre três pessoas nos corredores das escolas como ‘reunião’ e, nesse sentido, proibidas de acontecer. Os restaurantes universitários eram pontos de encontros importantes para o movimento estudantil e, por essa razão, eram permanentemente vigiados, sendo monitorados por funcionários da própria faculdade ou por policiais travestidos de estudantes à serviço da repressão, sempre na tentativa de localizar ‘estudantes considerados subversivos’, que vinham sendo procurados pela polícia, ou visando se antecipar às iniciativas de mobilização para a realização de quaisquer tipos de eventos ou manifestações públicas”.

Após os primeiros momentos pós-ruptura de 1964, com as perseguições políticas e o fechamento de estruturas sociais de reivindicação, o então estudante secundarista Marcelo Mário Melo é convocado sigilosamente para ajudar a reorganizar a luta estudantil. Ele conta que os movimentos populares sofreram muito com a repressão nas universidades e escolas, que eram ambientes típicos para convocação e formação de novos quadros de militantes.

“Não tínhamos nenhuma experiência de clandestinidade. Cada um vivia se escondendo, era um salve-se quem puder. Com o tempo, entre maio e junho, fui convocado para reunião com velhos dirigentes do PCB (Partido Comunista Brasileiro). Íamos de olho fechado, em um carro, para o encontro. Fiquei encarregado de reestruturar o partido na área do movimento secundarista”, afirmou Marcelo, que teve que adotar um nome falso e, a partir daí, pintar os cabelos de loiro e usar um bronzeador que deixava sua pele avermelhada.

Toda essa atuação de reestruturar o movimento estudantil já era considerada ilegal desde 1964 pelas novas leis aprovadas pela ditadura, que foram ficando mais rígidas a cada ano. Apesar da repressão, o estudante lembra que nos primeiros anos da ditadura, o regime não conseguiu abafar completamente os esforços de organização popular. O relatório da Comissão da Verdade também afirmava isso, ressaltando que mesmo diante da repressão, o movimento comandado por organizações políticas clandestinas desenvolvia uma política eficaz de aproximação junto aos estudantes.

“As mobilizações dos anos 1965, 1966, 1967 e 1968 envolveram várias reivindicações: aumento de vagas; absorção dos excedentes (alunos aprovados além do número de vagas oferecidas); melhoria dos restaurantes universitários (na qualidade e preço cobrado por refeição); democratização em todos os órgãos e instâncias universitárias (até então comandados pelos professores por meio das chamadas congregações e conselhos universitários); e a mais importante, a Reforma Universitária, bandeira antiga do movimento estudantil, agora retomada de modo mais incisivo face às investidas da ditadura no sentido da privatização das universidades públicas”, descreveu o relatório.

Durante a ditadura não foram poucos os casos de prisões, desaparecimentos, torturas e assassinatos de estudantes. No período de 1968 a 1974 ocorreu um progressivo processo de desmantelamento do movimento estudantil devido à intensa repressão sobre suas lideranças e organizações representativas. A UNE (União Nacional dos Estudantes), já operando clandestinamente, organizou o Congresso de Ibiúna em 1968, resultando na prisão de numerosos líderes estudantis, incluindo toda a delegação de Pernambuco, composta por 30 estudantes das diversas instituições de ensino superior na região. Mesmo assim, a UNE permaneceu em operação no País durante todo o período ditatorial.

O GRITO DOS PRESÍDIOS

O militante Marcelo Mário Melo atuou nesse esforço de reorganização do movimento estudantil e do Comitê Regional do PCB e depois na formação do PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário) até ser encontrado no Rio Grande do Norte, em Nísia Floresta, e ser preso pela ditadura, já em 1971. Começava então um segundo campo de batalhas pelo qual ele atuou e que muitos outros pernambucanos deixaram suas marcas: os presídios. É difícil imaginar como pessoas encarceradas conseguiam incomodar o governo. Mas suas reivindicações, críticas e denúncias escapavam pelos ferrolhos que os prendiam.

“Os presos políticos tinham redes nacionais, porque os partidos clandestinos tinham atuação também nacional. Essas organizações conseguiam receber pequenos bilhetes, muitas vezes colocados na troca de roupa. Os presos recebiam nas roupas ou eram levados pelos familiares, às vezes dentro das sandálias. Enfim, existiam mil mecanismos para distribuir essas pequenas mensagens”, afirmou Manoel Moraes, coordenador da Cátedra Dom Helder Camara, da Unicap (Universidade Católica de Pernambuco), e membro da Comissão Estadual da Memória e da Verdade Dom Helder Camara de Pernambuco.

Os presos passaram a estudar os regulamentos militares para a vida nos presídios, que não eram cumpridos. Defendiam também os direitos dos presos comuns que lá estavam, denunciando torturas, que eram ilegais mesmo nos anos de chumbo. Seja por comunicados por intermédio das pessoas que os visitavam ou por cartas escritas cuidadosamente com mensagens ocultas para passarem pela censura, as denúncias saíam dos cárceres.

Eles passaram a publicar documentos também, que eram veiculados por Dom Helder Camara no seu Boletim Diocesano, já que o religioso não poderia fazer as denúncias abertamente. Além disso, após 1975, algumas lideranças políticas do MDB passaram a ler tais manifestos também nas assembleias e na Câmara Federal, caso de Jarbas Vasconcelos e de Fernando Lyra.

As greves de fome foram outro instrumento de resistência dos presídios que tomaram o País. Marcelo estava no primeiro deles, realizado dois anos após ser transferido da Casa de Detenção do Recife para o Presídio Barreto Campelo, na Ilha de Itamaracá, em 1978. “A primeira greve de fome nacional dos presos políticos do Brasil começou em Itamaracá. Eu estava lá. Todos os presídios do País participaram. A segunda foi quando o Decreto de Anistia entrou para ser votado, mais aí eu já não estava preso”. Marcelo deixou a cadeia em abril de 1979, poucos meses antes da anistia.

Mesmo em um período sem conexão de internet e com todos os aparatos de repressão das vozes opositoras, aquele movimento chegou ao conhecimento dos presos políticos de todo o País. A greve iniciada em Pernambuco ganha um alcance nacional. Fora do País, outras lideranças faziam aumentar a pressão sobre os ditadores.

O GRITO DAS PICHAÇÕES

Quando a imprensa estava sob censura e muitas organizações que representavam vozes da sociedade foram colocadas na ilegalidade, os muros, paredes e viadutos do Recife e das capitais brasileiras começaram a receber as mensagens proibidas.

“A ditadura foi um momento marcado por censura, por repressão, por controle social. Isso impactou todos os segmentos sociais e, inclusive, os veículos de comunicação. A pichação foi um instrumento de crítica e de divulgação de acontecimentos que não iam ser disseminados para a grande mídia. Era uma transgressão também porque é proibido por lei e geralmente feita em locais públicos de grande visibilidade”, explica Thiago Nunes Soares.

Produzidas com sprays, pincéis ou carvão, as pichações eram feitas em grupos, normalmente em ações armadas. O professor que pesquisou o tema explica que enquanto parte do grupo estava escrevendo as mensagens, outros vigiavam os locais para alertar a possível chegada dos militares.

O pesquisador informa que alguns lugares alvos desses movimentos se repetem, como o Centro da cidade, no bairro da Boa Vista, em alguns monumentos históricos e até as representações mais simbólicas do poder político no Estado, como o Palácio do Governo e a sede da Prefeitura do Recife. Mesmo as igrejas foram alvo das pichações contra a ditadura. Militantes com letras mais legíveis e ágeis na pintura eram escolhidos para as ações, pela necessidade de comunicar de forma clara e de ser rápido na ação para evitar prisões.

O GRITO DOS TEMPLOS E DO EXTERIOR

Setores progressistas da Igreja Católica tiveram um papel relevante também na resistência à ditadura, especialmente nas denúncias diante dos excessos do regime. Em Pernambuco, a figura carismática e intelectualmente reconhecida de Dom Helder Camara é o grande ícone desse momento pela via eclesiástica.

A professora da Universidade de Pernambuco, Susan Lewis, aponta que a igreja conservadora esteve aliada aos golpistas em 1964. Dom Helder, inclusive, tem na sua biografia a participação no Movimento Integralista (uma organização política de cunho nacionalista e autoritário no Brasil, que pregava uma visão totalitária do estado e da sociedade). No entanto, o religioso mudou de posição ao longo da sua atuação eclesiástica, aproximando-se especialmente dos mais pobres da sociedade pernambucana.

“Dom Helder passa a ver a miséria da população e quando se aproxima das comunidades eclesiais de base, ligadas à Teologia da Libertação. Passa a ter a percepção de que a Igreja tem que estar com os pobres e trabalhar a consciência deles”, afirma Susan. O discurso ao lado dos oprimidos, lança o sacerdote no time dos “comunistas” pelo olhar do governo repressor. “Dom Helder passa a ser perseguido e é tido como um religioso vermelho, um perigoso.”

Os posicionamentos do arcebispo contra a perseguição, prisão, tortura e morte de trabalhadores e presos políticos resultaram em constantes ameaças à sua vida e à de seus colaboradores mais próximos. Essas ameaças se concretizaram no assassinato do padre Antônio Henrique Pereira Neto, 1969.

Se no País as censuras limitavam o alcance da sua voz, é no âmbito internacional que o silêncio de Dom Helder é quebrado. Conforme destacado no relatório da Comissão Estadual da Verdade, sua reputação moral e intelectual e seus contatos com a imprensa global o posicionavam estrategicamente para disseminar suas denúncias. A proximidade do arcebispo de Olinda e do Recife com o Papa Paulo VI também o tornava um interlocutor frequente do Vaticano. As críticas do religioso foram reverberadas pelo papa, criando duros constrangimentos ao regime.

Mas não foram apenas as palavras de Dom Helder que repercutiram contra o regime. Muitos dos líderes e intelectuais que deixaram o País durante a ditadura assumiram uma postura de denúncia internacional. Miguel Arraes, por exemplo, criou o Jornal FBI (Frente Brasileira de Informações) durante todo o seu período no exílio. A publicação dirigida por Arraes dedicava-se a denunciar a tortura, a censura e a desigualdade social no Brasil, assim como todos os problemas decorrentes da ditadura. Em cada país, um grupo de exilados se encarregava da tradução e distribuição, podendo acrescentar novos textos que dialogassem com os seus contextos políticos.

O advogado e ex-deputado Francisco Julião, deposto pelo golpe, seguiu para o México. A esposa, Alexina Crespo, e os filhos do líder político seguiram para Cuba e depois para o Chile. No exterior, tanto Francisco como Alexina, se dedicaram às denúncias da ditadura militar brasileira. O filho Anacleto Julião conta que o ex-deputado escreveu muito durante o exílio e recebeu muitas lideranças internacionais, como Salvador Allende, para tratar da situação brasileira e dos demais países da região. “Ele quase foi expulso do México porque continuou escrevendo, ele tem uma centena de artigos, sempre tratando a questão latino-americana e a dos camponeses”.

Anacleto afirma que o pai chegou a trocar cartas com Carlos Marighella, se colocando à disposição para voltar ao Brasil clandestinamente. Sem a possibilidade de garantir a segurança de Francisco Julião, que correria risco de prisão, tortura e morte ao pisar no País, Marighella declinou.

Se a trajetória de Julião é pouco reconhecida, a de Alexina é ainda menos. Em um período cujo machismo era ainda mais acentuado, ela consegue dialogar com lideranças internacionais, como Fidel Castro, Che Guevara e Mao Tsé-Tung. Em sua militância, buscava se dedicar a criar condições de fortalecer a luta no País. Ambos só retornaram ao Brasil após a anistia.

O GRITO DO PARLAMENTO E DAS MANIFESTAÇÕES DE RUA

No aspecto partidário, os deputados do MDB, até então único partido de oposição à Arena, que abrigava os defensores do regime militar, levantou o tom das denúncias. O professor Manoel Moraes destaca que o partido em Pernambuco teve um desempenho acima da média. “Dentro do MDB, uma corrente cidadã vai estar à frente do partido. Eram pessoas que permaneceram no Brasil mas conseguiram resistir às ideias autoritárias e fascistas. Fizeram uma resistência importante, articulada a setores da sociedade como médicos, jornalistas e advogados”, afirma Manoel Moraes.

O pesquisador conta que o partido em Pernambuco foi pioneiro em várias concepções e é a partir dele que acontece a ascensão de Jarbas Vasconcelos dos postos no parlamento estadual e federal à prefeitura do Recife, com forte reconhecimento popular. “Na verdade, a política pernambucana sempre foi muito qualificada. Todas as pessoas que passaram naquele período na cadeira dos governos tiveram que dialogar com setores organizados e altamente politizados.”

O relatório da Comissão da Verdade Dom Helder Camara posiciona o partido e outros representantes da sociedade civil organizada como protagonistas da luta pela anistia política no País: “A anistia de 1979 não constituiu liberalidade nem doação generosa do governo. Foi conquistada a duras penas pelo povo brasileiro, tendo à frente, no plano institucional, o MDB, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e a ABI (Associação Brasileira de Imprensa), além de centenas de núcleos do CBA (Comitê Brasileiro pela Anistia) e do MFPA (Movimentos Femininos pela Anistia) espalhados no País e no exterior, nas cidades e no campo, nas escolas e nas fábricas”.

Já no período final da ditadura, um movimento que ficou conhecido nacionalmente foi o das Diretas Já, entre 1983 e 1984, ao criticar o processo de eleições indiretas, que acabou sendo o que prevaleceu em 1985. Um fato menos conhecido, porém, é que a primeira manifestação que fazia essa reivindicação aconteceu a partir da mobilização da sociedade pernambucana. O ato em Abreu e Lima foi o precursor das diversas manifestações que se espalhariam pelo País.

“O movimento das Diretas Já começa em Abreu e Lima, a partir de vereadores ligados à Ação Popular, um pessoal próximo à Igreja e a Dom Helder. Eles têm a iniciativa de começar essa reivindicação com uma manifestação na praça. E isso pegou fogo, porque o MDB de Pernambuco, não era qualquer MDB. Era o partido de Fernando Coelho, de Fernando Lyra, de Miguel Arraes. Era muito forte”, afirma o professor Manoel Moraes. Neste mês, inclusive, foi inaugurada em Abreu e Lima a Praça da Democracia, em referência ao movimento democrático que se irradiou a partir da cidade da Região Metropolitana do Recife para o País.

Multiplicaram-se os nomes, fatos e frentes de batalha que começaram ou se irradiaram a partir de Pernambuco contra a ditadura, até a sua queda. O retorno de inúmeras lideranças e intelectuais do exílio, com a anistia, e a libertação dos presos políticos, apontaram para os anos finais do regime.

Passada a ditadura e as lutas para denunciá-la, o passo seguinte da trajetória pernambucana pela democracia é a busca por elucidar as arbitrariedades do regime de exceção e por buscar justiça para suas vítimas. Essa nova frente será o alvo da terceira reportagem da série Memórias do Golpe em Pernambuco.

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