"Neste momento de polarização Thales Ramalho faz falta e seria essencial" - Revista Algomais - a revista de Pernambuco

"Neste momento de polarização Thales Ramalho faz falta e seria essencial"

Revista algomais

Cícero Belmar, Autor do livro sobre o deputado federal que teve grande influência na resistência à ditadura militar e na redemocratização do País, analisa como o perfil concitador e a habilidade de negociar do político foram fundamentais em episódios importantes da história brasileira, como a conquista da anistia.

Durante a ditadura militar do Brasil e, principalmente, no período de redemocratização, o deputado Thales Ramalho era uma peça importante no xadrez político da época. Conciliador, moderado e hábil negociador, esse paraibano, que fez carreira política em Pernambuco, participou – com seu jogo de cintura – de articulações que resultaram em importantes avanços do País rumo à democracia. Da consolidação do MDB (único partido de oposição na época), passando pela anistia, até a eleição de Tancredo Neves, Thales exerceu protagonismo como um estrategista inteligente.

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Neste ano que marca o seu centenário, ganhou uma robusta biografia (Thales Ramalho – Política, diálogo e moderação – 100 Anos), escrita pelo jornalista, escritor e integrante da Academia Pernambucana de Letras, Cícero Belmar. A obra – feita a partir de um convite da filha de Thales, Ana Clara – é um mergulho na resistência nos anos de chumbo exercida por parlamentares que viviam na tênue e perigosa fronteira entre o diálogo com o regime de exceção e as ações para o avanço democrático. Nesta entrevista a Cláudia Santos, Belmar conta como fez a pesquisa para escrever o livro, comenta alguns episódios da atuação política de Thales, que faleceu em 2004, e lamenta a ausência de políticos com seu perfil conciliador nestes tempos de polarização radical.

Como surgiu a ideia de produzir um livro sobre Thales Ramalho e como foi feita a pesquisa para escrevê-lo?

Ana Clara, filha única de Thales, por intermédio do jornalista Ítalo Rocha, me contatou para fazer essa biografia política do pai. Foi meramente uma pesquisa jornalística porque havia no gabinete dele uma verdadeira biblioteca de recortes de jornal, de 300 até mil arquivos por mês de 1970 a 1985. Eu li todas essas matérias e, por intermédio delas, fui montando o livro. Analisei toda a documentação e via perfeitamente a história através dos recortes de jornal. Olha como é interessante: o jornalismo de hoje é a história de amanhã.

Fui juntando esse material e, quando achei necessário, também pesquisei nos arquivos do Congresso Nacional, da Assembleia Legislativa do Estado, da Biblioteca Nacional (onde tive acesso a documentos do SNI), além de documentos do Tribunal de Contas da União e da Fundação Getúlio Vargas. Tive uma vasta documentação, foi um trabalho bem rico que durou 16 meses e exigiu muita dedicação.

O livro começa com o casamento de Ana Clara, filha de Thales Ramalho, no dia 1º de março de 1985, ocasião em que o Recife vira o centro político brasileiro, porque Tancredo foi o padrinho. Quando ele veio para esse evento, a Nova República em peso estava presente, muitos políticos que queriam ser ministros, vários governadores, deputados, empresários. Estavam, naquele salão de casamento, todos os personagens que eu iria citar no livro. A partir daí, a narrativa fala da amizade de Tancredo com Thales Ramalho, mostrando os movimentos políticos, a entrada de Thales no MDB (Movimento Democrático Brasileiro), a maneira como ele consolida o partido, as lutas do MDB, sobretudo a anistia e, depois, a saída dele para o Tribunal de Contas.

Eu nunca convivi com Thales mas, nas pesquisas para o meu livro, tive acesso a documentos, a tantas conversas, que tenho a sensação de que cheguei a conhecê-lo. O livro, narra essa trajetória política dele enquanto peça importante no processo de redemocratização do Brasil durante a ditadura militar.

Como você analisa o perfil político de Thales Ramalho?

Na ditadura militar, um momento muito difícil da nossa realidade política, Thales Ramalho foi um deputado federal que combateu o autoritarismo mas, também, era um importante conciliador entre o governo e a oposição. No meu livro, faço um resgate dessa ideologia conciliadora, moderada, do seu senso crítico, da sua inteligência e estratégia. Naquela época, quem era a favor do governo fazia parte da Arena (Aliança Renovadora Nacional) e quem era contra se unia ao MDB, que era uma frente ampla e agregava tanto quem era totalmente contra o governo, quanto as pessoas que tentavam dialogar.

Thales era desse grupo do MDB mais moderado, um grupo discriminado e chamado de “direita do MDB” pela ala do partido conhecida como os “autênticos” (que defendia um enfrentamento mais radical à ditadura, da qual faziam parte nomes como os pernambucanos Jarbas Vasconcelos e Marcos Freire). Ele era amigo de Tancredo Neves e de Ulysses Guimarães e ajudou a organizar o MDB que, antes da sua chegada, era muito desorganizado. Então, seu perfil é do conciliador.

Quais as conquistas que ele alcançou com esse “jogo de cintura”?

Ou se negociava com Médici e Geisel, ou os projetos da oposição, como a anistia, não andariam. Quando Thales começou a negociar, não havia possibilidade de abertura, de diálogo. Como era moderado por excelência, ele permite que essas conquistas sejam viabilizadas para que haja mudança política.

Por exemplo, num determinado momento cogitou-se haver eleições presidenciais indiretas, mas não havia possibilidades de o MDB ganhar, porque o partido era minoria no Colégio Eleitoral. Por isso, setores do governo ironizaram sugerindo que o MDB lançasse um candidato.

Thales e outros representantes disseram “vamos lançar porque, só assim, começamos a ter uma forma legal de percorrer o Brasil pregando as ideias oposicionistas ao governo”. Assim nasceu a anticandidatura de Ulysses Guimarães, e o partido de oposição passou a ocupar espaços lentamente e de forma inteligente. Uma das características de Thales é justamente a inteligência política, ele era um estrategista.

Num evento internacional em Haia (Holanda), Thales chegou a declarar que, em pleno período do Governo Médici, não havia tortura no Brasil. Nesse xadrez político que ele jogava, como você encara essa declaração?

À primeira vista, isso parece chocante e é, mas havia o crime de lesa-pátria, que estabelecia que aqueles que falassem mal do Brasil no exterior poderiam ser expulsos do País. Thales sabia que estava em Haia e que havia agentes do SNI (Serviço Nacional de Informações) o acompanhando. Ele tinha a consciência de que, se falasse mal do governo naquele momento, quando voltasse ao Brasil, seria cassado.

No meu livro, publiquei um documento do próprio SNI com uma ficha descrevendo o que ele fez em Haia. Caso ele afirmasse que havia tortura, teria sido exilado, porque, na época, já estava valendo o AI-5 (dispositivo que deu carta branca aos militares para perseguir os opositores do regime, ampliando a repressão, a prisão e a tortura de indivíduos). Ele sabia que, dependendo do que falasse, perderia não só esse posto de negociador mas, também, seria expulso do País. A gente se choca com essa declaração e pode até achar que, por causa dela, ele era de extrema-direita. Não era. Mas ele sabia exatamente o que estava fazendo.

Qual foi o impacto do acidente automobilístico que Thales sofreu na vida dele e na política que exercia?

Em 1976, quando ia de Goiana para o Recife de madrugada, o carro dele bateu em outro que estava estacionado à frente, sem sinalização. Ele quase morre, teve sérios problemas de saúde. Começou a se tratar no Recife, mas a situação se complicou e teve que ir para os Estados Unidos. Foi justamente nesse período, que estava sendo articulada a anistia. Brizola e Arraes estavam na Europa, mas iam conversar com Thales nos EUA, que estava se recuperando, para articular a volta para o Brasil, principalmente de Brizola.

Além desse momento muito importante, quando Thales retorna ao País, começa a efetivar uma política de Estado em defesa das pessoas com deficiência física, porque a Constituição que estava valendo naquela época era a de 1967, da ditadura militar, que não previa esses direitos civis e sociais. Thales foi pioneiro quando apresentou a Emenda Constitucional número 12 que assegurou educação gratuita para a criança com deficiência, reabilitação, reinserção dessas pessoas no processo político, econômico e social do Pais, também proíbe a discriminação no ambiente de trabalho, incentiva a admissão no serviço público e o direito a acesso a qualquer lugar. Assim, ele passa a ter uma grande visibilidade nacional, começa a ser convidado para congressos e seminários e tem outro tipo de liderança. Thales cresceu muito mais. Aspectos que ele introduziu naquela emenda, terminaram sendo validados na atual Constituição.

De que forma Thales participou do movimento da anistia no Brasil?

A anistia veio somente no final da década, em 1979, mas, muito antes, houve uma primeira reunião com Petrônio Portela (senador e, depois, ministro da Justiça do governo Figueiredo, foi um dos articuladores da chamada “distensão lenta e gradual” da ditadura). O encontro aconteceu com Ulysses Guimarães e Thales Ramalho, que foi um dos primeiros convocados para começar a discutir a possibilidade de uma anistia.

Thales chega para negociar e depois Ulysses deu um encaminhamento mais à esquerda e inviabilizou a continuação por meio do governo. Thales, com suas negociações, realmente teve uma atuação muito forte na oficialização da anistia. A casa dele, em Brasília, era uma extensão do seu gabinete, ele recebia os deputados, as pessoas, tanto da oposição como da situação, para conversar e ia viabilizando essas saídas.

E como foi a participação dele na campanha das Diretas Já e na eleição de Tancredo Neves?

Nessa época, já havia negociações para que, antes das eleições diretas que vinham sendo articuladas por meio da emenda do deputado Dante de Oliveira, houvesse um governo de transição. Thales já havia saído do MDB e formado o PP (Partido Popular). Tancredo ficou no MDB. A ideia era colocar Tancredo como esse presidente de transição e, de fato, a campanha foi conduzida dessa forma. Thales era amigo de Tancredo e afirmava ser a favor das diretas, porque sabia que era um movimento democrático, mas, na verdade, ele queria que Tancredo fosse o candidato indireto para viabilizar esse governo de coalizão e chegar às diretas.

A emenda de Dante de Oliveira acabou não sendo aprovada, e eles articularam, junto ao Congresso, para que Tancredo fosse candidato e entraram em campanha indo para o todo o Brasil. Acontece que a emenda Dante de Oliveira mobilizou demais o País e houve uma frustração muito grande em razão da emenda não ter sido aprovada, as pessoas não queriam uma eleição indireta de novo.

Nesse clima de frustração, foi preciso convencer a população de que a candidatura de Tancredo era a única forma de não retroceder, era a possibilidade de levar o povo à rua e trazer o clima de expectativa para as eleições diretas. Thales foi essencial para articular o apoio popular e levar aquele mesmo grito em favor das diretas para apoiar Tancredo. Isso é uma postura política de raposa. Inclusive, havia um grupo de militares que não queria que Tancredo fosse presidente. Então era fundamental que ele assumisse para não haver um retrocesso no Brasil.

E após a morte de Tancredo, como foi a trajetória política de Thales? Ele sempre foi deputado federal?

Ele foi eleito pela quinta vez consecutiva deputado federal em 1982. Tancredo queria que ele fosse ministro, mas ele queria ir para o Tribunal de Contas da União e havia negociado isso. Em 1985, Tancredo morre, mas o vice-presidente Sarney honrou a palavra de Tancredo e colocou Thales na primeira vaga que surgiu no TCU. Thales renuncia ao mandato de deputado federal e vai para o tribunal, onde fica até se aposentar. Depois foi chamado por Sarney para fazer parte de uma assessoria especial, nesse governo de transição antes da eleição de Collor.

Quando Collor foi eleito, convidou Thales e ele ficou por um período em Brasília, depois voltou a morar no Recife, pois seus amigos não participavam mais da política, muitos já haviam morrido, outros haviam voltado aos seus Estados. Ele estava só em Brasília e decidiu voltar a viver no Recife, não como político, mas como avô. Ele viveu até 2004. O interessante é que ele vive essa parte da vida no Recife, aconselhando os políticos de Brasília que começaram a telefonar e procurá-lo para pedir orientações.

Ele sempre teve uma boa relação como todo mundo, inclusive com jornalistas, não é?

Sim. Thales recebia, no seu gabinete, jornalistas de todos os Estados. Ele tinha uma relação muito grande com a imprensa, sabia usá-la a seu favor, era amigo de muitos jornalistas importantes, como Carlos Castelo Branco, Vilas Boas Correia. Ele era uma fonte de notícias e de informação muito privilegiada, porque estava dentro, tanto na oposição, como do governo. Quando não podiam ser divulgadas matérias sobre presos políticos, as informações eram repassadas para ele que concedia entrevistas que eram publicadas assim: “O deputado Thales Ramalho disse que os presos políticos…” aí ele ocupava o espaço, e a notícia ia ser divulgada.

Então, a maneira dele chegar no Brasil inteiro era dando entrevista para agências de notícias que distribuíam as matérias desde o Pará até o Rio Grande do Sul. Havia reportagens diárias em jornais de todo o País, e fazia isso não para aparecer, mas para divulgar o plano do MDB. Na época, não havia redes sociais digitais, e ele tinha uma assessoria que fazia recorte de todas as matérias dos jornais e colecionava essa clipagem. Para escrever o livro, tive acesso a cerca de 90 mil documentos, como esses recortes de jornais, além de discursos, projetos de leis e fotografias.

Neste momento em que o Brasil vivencia uma polarização muito radical, teria espaço, hoje, para um conciliador como Thales?

Olhando para o panorama político brasileiro atual de polarização, eu acho que teria lugar para um Thales Ramalho neste momento. Nesse Congresso Nacional, hoje, é preciso alguém que articule em favor das políticas que favoreçam o Brasil, assim como Thales que foi um articulador em favor da redemocratização durante a ditadura.

Ou seja, no atual cenário político brasileiro, é necessário um articulador, que tivesse essa inteligência política de negociar. É tanto que o próprio Lula, às vezes, entra nas negociações, porque ele tem inteligência estratégica, sabe jogar o jogo político que Thales, Miguel Arraes, Brizola, Tancredo e Ulysses sabiam. Acho que neste momento de polarização Thales faz falta e seria essencial.

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