Arruando pelo Recife

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Leonardo Dantas Silva

Nos tempos do inquisidor (parte 2)

Naqueles anos finais do século 16 a próspera Vila de Olinda, sede da capitania de Pernambuco, era habitada por uma sociedade onde havia uma grande ausência de mulheres brancas, pois os portugueses em sua grande maioria deixavam suas mulheres legítimas em Portugal continental, aventurando-se viajar sozinhos em busca da fortuna em terras do Novo Mundo.
Aos olhos do visitador da Mesa da Inquisição de Lisboa, Heitor Furtado de Mendoça (sic), chegado a Pernambuco em setembro de 1593, vão sendo desnudados os pecados daquela população, sobretudo os cometidos na intimidade dos lares, na luz soturna das alcovas, que davam lugar ao cometimento usual do pecado da carne, representado pelas relações extraconjugais (responsáveis por uma população de filhos bastardos), pela prática da poligamia, da sodomia (então chamada de pecado do nefando) e do lesbianismo; além da feitiçaria e culto judaico.
Com tamanha falta de mulheres brancas, as jovens casavam logo na entrada da puberdade (com 12, 13 e 14 anos), e logo se enchiam de filhos. Das oito filhas da judaizante Branca Dias e do seu marido Diogo Fernandes, por exemplo, somente uma, por não possuir o uso da razão (Beatriz Fernandes), permaneceu solteira. O mesmo acontece com as muitas filhas de Jerônimo de Albuquerque, cunhado do donatário Duarte Coelho, naturais e legítimas, que vieram a fazer grandes casamentos. Da lista de sua descendência aparecem genros da mais alta estirpe: dois fidalgos e quatro portugueses bem-nascidos.
A educação dos rapazes ficava a cargo do Colégio dos Jesuítas e dos Beneditinos, enquanto as moças eram educadas por professores particulares como Branca Dias e Bento Teixeira; este último autor da Prosopopea, que veio a ser o primeiro poeta a ter seu nome impresso em letra de forma no Brasil (1601).
Ao contrário dos séculos que se seguiram, as mulheres não viviam tão segregadas, algumas delas chegavam a passar “toda à tarde na sua janela e sem trabalhar, à vista dos que passavam”; como Inês Fernandes, denunciada em 22 de novembro de 1593. Havia outras que praticavam, com regularidade, o exercício da leitura, como Maria Álvares e Inês Fernandes, “que costumavam estar aos sábados deitadas numa rede lendo por livros sem fazer nenhum serviço”.
Naquele mundo povoado de magias, era comum a existência de feiticeiras, como Ana Jácome, denunciada em 29 de outubro de 1593, por ser dado a feitiçarias “capazes de matar as criancinhas recém-nascidas”. Lianor Martins, a Salteadeira, é denunciada, em 22 de novembro do mesmo ano, por trazer consigo “um buço de lobo e uma carta de Santo Erasmo, juntamente com uma semente que ela com outras suas amigas fora colher numa noite de São João, com um clérigo revestido, as quais coisas dizia fazer querem bem os homens às mulheres”.
Da imensa lista, não poderiam faltar as chamadas mulheres do mundo (prostitutas), que praticavam a mais antiga das profissões, como Lianor Fernandes e Maria Almeida, a Flamenga, não faltando as que regularmente eram flagradas em adultério, como Isabel Bezerra e Clara Fernandes, que, na ausência dos maridos, “dormiam com quem lho pediam”.
Nada escapava aos ouvidos do inquisidor que, como seu poder supremo, ia devassando os mais recônditos comportamentos mediante uma cadeia interminável de confissões e denunciações dos residentes na localidade intimados a comparecer à Mesa Inquisitorial mediante ameaças dos mais terríveis castigos.
Assim surgiam casos de prática de lesbianismo, como as de Clara Fernandes com a sua escrava (4.11.1593), assim como Maria Lucena, mulher de Antônio da Costa (6.11.1593) ou Maria Rodrigues, que é flagrada por um vizinho em colóquio com a adolescente Ana “fazendo uma com a outra como se fora homem com mulher” (10.11.1593).
O sapateiro Lessa, “homem alto de corpo e de uns bigodes grandes” que morava numa casa térrea próxima ao Recolhimento da Conceição, era dado à prática da pedofilia, sendo por isso denunciado por um rapaz de 15 anos, de nome João Batista, originário da Ilha da Madeira, que em certa tarde fora à sua oficina buscar um par de chinelas, ocasião em que foi atacado pelo sapateiro que, à força, tirou-lhe o calção e tentou possuí-lo (27 de maio de 1594).
Baltazar Lomba foi acusado por Francisco Barbosa de cometer pecado de sodomia com outros índios e com um negro de nome Acahuy. O denunciado é descrito como “um homem solteiro, já velho de alguns 50 anos que costuma coser, fiar e amassar como mulher” (12 de janeiro de 1595).
Os casos do cometimento do coito anal (pecado nefando) torna-se frequente entre pessoas do sexo masculino, não faltando, porém, a prática da sodomia entre casais, como a que releva, em 9 de dezembro de 1594, Manuel Franco, 43 anos, com sua mulher Ana de Seixas: “Está casado com a dita mulher e que haverá ora 12 anos e meio, pouco mais ou menos, que, uma noite, estando ele farto de ceia e vinho, cometeu a dita sua mulher por detrás com o seu membro viril, entrou e penetrou dentro no vaso traseiro dela..”
Eram comuns os casos de bigamia, alguns deles chegando a notoriedade, como o de Antônio do Valle que, sendo casado em Estremoz (Portugal), voltou a contrair núpcias no Brasil com a filha de Jerônimo Leitão, capitão e governador da capitania de São Vicente (São Paulo).
Outro bastante citado nos autos da Inquisição em Pernambuco é a figura do rico mercador João Nunes Correia, “uma das maiores fortunas existentes em Pernambuco nos últimos anos do século 16”; segundo José Antônio Gonsalves de Mello, fora ele por duas dezenas de vezes denunciado à mesa do Santo Ofício. Cristão-novo, nascido em Castro Daire, dizia modestamente “não ter ofício e viver nesta terra por sua fazenda limpamente com quatro cavalos na estrebaria”. Dentre as muitas denúncias que o imputaram uma veio escandalizar os inquisidores, segundo o escrivão do Santo Ofício, correu o mundo “pela boca de todos, altos e baixos, honrados e plebeus, religiosos, nobres e melhores da terra e toda a mais gente e o povo”,

Em resumo o capitalista João Nunes vem a ser denunciado por um pedreiro, que estando a retelhar sua casa em Olinda, vira um crucifixo “no mesmo cômodo onde ele fazia suas necessidades corporais”. O que na rua era motivo de boatos e de fuxicos, chega oficialmente à mesa do Santo Ofício através dos depoimentos dos irmãos Belchior e João da Rosa, em 30 de outubro e 5 de novembro de 1593, que reiteram ter João Nunes em sua casa, no mesmo aposento, um crucifixo “entre dois servidores vasos imundos em que fazia suas necessidades corporais”. Na mesma denúncia consta que o clérigo Manuel Dias “o qual alevantou a perna e deu um grande traque diante da imagem da Virgem de vulto fermosa que está no altar”.
João Nunes, coitado, tem contra si uma verdadeira colmeia de vespas, e termina por ser enviado preso a Lisboa, onde vem a ser absolvido pela Inquisição que ainda criticam com veemência o visitador Heitor Furtado de Mendoça, por sua conduta arbitrária na Visitação que fez à Vila de Olinda.

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