*Por José Marcos
Nossas atitudes são profundamente determinadas pelos nossos conceitos já pré-formatados. Para entendermos a profundidade disso, basta pensarmos nas decisões tomadas no dia de hoje e veremos que quase 100% delas foram tomadas sem uma prévia reflexão sequer. Ora, essa mesma regra é válida para nosso procedimento religioso, sendo que, a teoria que dá base à nossa fé é o que chamamos de teologia, portanto, os nossos conceitos teológicos determinam o nosso procedimento na prática. Se isso está claro para você e se você concorda comigo, aceite o meu convite para continuar lendo esse texto, pois, meditaremos sobre algo que parece complexo, mas, mostrarei que não é.
A maioria dos conceitos teológicos que existe em nossa mente foi aceita por nós sem nenhuma reflexão prévia, mas, não tenha dúvida de que eles foram produzidos ao longo de muito tempo. São eles que fazem uma igreja e um cristão agirem como agem. Entretanto, como esses conceitos foram produzidos? Qual foi a metodologia utilizada em sua montagem? A resposta a essas perguntas é o que chamamos de “método teológico”.
Tudo que vamos fazer requer um método. Se vamos lavar os pratos do almoço, isso exige um método. É ou não é? É assim também quando vamos fazer teologia, porém, o método certo ou errado determina o êxito ou o fracasso do que fazemos. Quer testar isso? Então, ao lavar os pratos, substitua o detergente por óleo queimado de motor de carro. O que estou querendo dizer é que o método certo ou errado utilizado na produção de nossa teologia determina a construção de conceitos certos ou errados e, consequentemente, práticas certas ou erradas no nosso caminhar cristão.
A produção teológica da Igreja é algo que acontece na dinâmica entre a vida e os instrumentos de revelação de Deus, sendo assim, tomarei a Bíblia como base teórica da revelação de Deus. A partir desse recorte, passo a apresentar três métodos teológicos diferentes, que vão produzir três tipos de crentes e igrejas diferentes.
1º Método de produção teológica: Vida - Bíblia.
Esse método parte do princípio de que toda reflexão teológica parte da vida para a Bíblia, onde a vida está em primeiro plano e a Bíblia em segundo. Teólogos/as que partem dessa premissa entendem que Deus se revela na caminhada do povo e, como a vida é dinâmica, aquilo que foi produzido em matéria de fé, na caminhada histórica do povo, está em pé de igualdade com a Bíblia. Esta, por sua vez, é o registro da revelação de Deus na história de Israel e das primeiras comunidades cristãs, mas, não é a única autoridade em matéria de fé, pois, Deus continua se revelando e outros registros dessa revelação estão sendo impressos na caminhada.
O problema desse método não está em acreditar que Deus continua se revelando, mas sim, quando as “novas” revelações contrariam as “antigas”. Nesse caso, temos um problema teológico, pois, das duas uma: ou Deus estaria se contradizendo, ou os/as intérpretes da Bíblia estariam equivocados/as.
Um exemplo pode facilitar o entendimento. Pensemos no aborto: linhas de interpretação partem do princípio de que a mulher tem o direito de abortar, baseado no governo que tem sobre seu próprio corpo, logo, não precisa sofrer os danos de uma gravidez, se isso não for de sua vontade. Há um tempo essa questão nem entraria na pauta da discussão, mas, com o desenvolvimento dos tempos, fenômenos como as lutas pelos direitos da mulher e do seu protagonismo na sociedade surgiram na direção da emancipação feminina e da construção de uma sociedade cada vez menos patriarcal. Esse fato é coisa da vida e do desenrolar histórico. A Bíblia foi escrita noutro contexto, de maneira que não podemos esperar que o tema do protagonismo da mulher tivesse sido tão aprofundado quanto hoje. Pensando nisso, teólogos/as argumentam a favor do aborto nos termos postos, pois, as novas reflexões da vida pedem isso, ao passo em que a Bíblia está caduca nesse sentido. Ao pensarem assim, se põem em dia com essa linha de reflexão sobre o aborto, mas, não resolvem a contradição de que a vida é um dom de Deus, iniciada desde quando ainda informe no ventre da mãe, e a Bíblia assegura o direito a essa vida.
Esse método é o que mais se alinha com o que chamamos hoje de liberalismo teológico. Nele, a Bíblia não é vista como a única autoridade em matéria de fé e prática e está subordinada a uma crítica que esvazia sua autoridade paulatinamente.
2º Método de produção teológica: Bíblia – Vida.
Esse método é o mais convencional entre as igrejas protestantes e evangélicas de maneira geral. Ele parte do princípio de que toda a reflexão teológica parte da Bíblia para a vida. Por ela ser inerrante (sem erro) e infalível (sem falha), e a única regra de fé e prática, tudo que é verdade parte dela. Toda reflexão para a vida é feita a partir dela (Bíblia). Do texto para a vida. O texto está em primeiro plano e a vida em segundo.
O problema desse método não está no texto, mas, na liberdade de quem o interpreta. É por causa de tal liberdade que temos tantas denominações, pois, cada criador de um novo ramo cristão está fundamentado na frase: “a Bíblia diz assim”. Por isso as diversas denominações advogam para si a capacidade de fazer a melhor interpretação da Bíblia. Daí, termos desde uma Congregação Cristã no Brasil, passando por uma Presbiteriana e chegando a uma Adventista do Sétimo Dia, cada qual se utilizando do mesmo direito de dizer: “somos fieis à Bíblia”, e, de fato, todas as suas mais sutis diferenças estão “amparadas na Bíblia”, pois, a guarda do sábado está na Bíblia, o uso do véu está na Bíblia, e a predestinação também está na Bíblia.
Mas, o maior problema desse método é que ele pode não trazer as respostas reais para os problemas reais. A vida é dinâmica. As perguntas da vida mudam dia após dia. Essas perguntas dependem da cultura, da condição econômica, da classe social, da cidade em que moramos, do nível de escolaridade, do tempo... A vida é dinâmica. Já a Bíblia pode ser vista como um livro estático, que não tem o mínimo compromisso com o dinamismo da vida, pois é a Palavra de Deus, e isso só já basta. É a vida quem tem que se adaptar à Bíblia e pronto. Se, em algum ponto dela, está escrito que a mulher não pode cortar o cabelo, está dito. Se ela diz que a mulher tem que usar véu, está dito. Se ela diz que uma pessoa foi criada para a condenação e outra para a salvação, pronto, está dito.
Para se entender melhor, também darei um exemplo: certa vez, uma amiga, de férias no Recife, conversou comigo nitidamente angustiada, porque já estava fora de casa há quase um mês e, como tinha esquecido o seu véu, já fazia esse tempo todo que não orava, pois, para a doutrina de sua igreja, orar com a cabeça descoberta é pecado. Como pode a Bíblia se interpor à vida de maneira tão violenta? Os que se escandalizam com isso vão argumentar que é problema de interpretação bíblica, mas, os que concordam com tal procedimento dirão que é justamente por interpretarem-na corretamente, que estipulam esse comportamento, logo, quem não o faz, peca.
Esse método é o que mais se alinha com o que chamamos de fundamentalismo teológico. Nele, a Bíblia é vista como a única autoridade em matéria de fé e prática e, por tal autoridade, as contingências da vida são postas em segundo plano.
3º Método de produção teológica: Vida – Bíblia – Vida.
Vou qualificar esse método como dialógico, dialético e dinâmico. Dialógico porque se fundamenta no diálogo entre a vida e a Bíblia, onde um elemento não isola o outro, mas, reconhece-se a interdependência entre eles. É dialético porque o diálogo entre os dois elementos não se encerra com a vitória de um sobre o outro, mas, com elementos novos, ou seja, soluções que nem desconsideram o peso da vida real, nem tampouco a autoridade da Bíblia. Dessa dialética, surge a última característica: o dinamismo, pois, a Bíblia se torna Palavra Viva de Deus, cabível em qualquer tempo, cultura ou espaço, logo, cabível dentro da vida.
Vamos entender como isso funciona na prática?
Na prática desse método, toda reflexão teológica começa e termina na vida real, utilizando a Bíblia como prumo e, consequentemente, evitando-se o desvio da vontade de Deus para o sujeito e sua Igreja.
Para entender melhor, também darei um exemplo, mas, dessa vez, usarei um caso exposto na própria Bíblia: o caso da mulher flagrada em adultério e trazida para que Jesus a julgasse (João 8.1–11). Veja que o problema real ocorre na vida, ou seja, uma mulher é flagrada transgredindo a lei pelo pecado de adultério. Se Jesus, ao julgar o caso, utilizasse o primeiro método (Vida – Bíblia), teria desprezado a mulher e dado atenção à sua indisposição crescente contra os mestres da lei, pois sabia que o motivo real não era o adultério, mas sim, uma cilada armada contra si pelos escribas e fariseus (6). Talvez tivesse começado um discurso filosófico sobre a lei, ou soltado palavras de censura aos seus inimigos religiosos e políticos, ou outra coisa do gênero. De outra sorte, se Jesus tivesse julgado o caso usando o segundo método (Bíblia – Vida), teria aplicado na íntegra o que a lei mandava (Lv 20.10) e resolvido logo o caso, concordando com o apedrejamento (5). Agindo assim, não se indisporia com os doutores da lei, nem com o povo, pois, “lei é lei”, afinal de contas, o problema era da mulher e não de Jesus. Até seria triste concordar com uma morte, mas, fazer o que, se está escrito?
Veja que Jesus não usa nem um método nem outro, mas sim o que chamo de Vida – Bíblia – Vida. Ele leva em consideração as várias nuances do caso: uma mulher usada como “bode expiatório”; inimigos que tentavam acusá-lo e; o povo ao seu redor que necessitava de ensino adequado. Num julgamento certo, analisando o problema em seu contexto presente (Vida), Jesus se utiliza de um princípio da lei (Bíblia) para interpelar a todos/as (Dt 19.16-19), pois aqueles homens erraram ao não trazer o adúltero, e também estavam com as mãos sujas, fato este atestado por suas próprias consciências (9). Nessa “tacada”, ao julgar o caso da mulher, todos/as são interpelados a mudarem (Vida), uma vez que os mestres da lei são constrangidos por suas consciências a repensarem suas vidas e testemunhos, o povo aprende sobre um princípio esquecido da lei, e a mulher é exortada em particular a não mais pecar.
Implicações para igrejas e teólogos/as
O método teológico adequado produz uma teologia coerente com a vida e com a Palavra de Deus e, consequentemente, discípulos/as e igrejas alinhadas com a vontade de Deus. Para isso, alguns pontos são inegociáveis:
1º - A vida é o lugar de se fazer teologia. Se a vida não fosse o lugar de se fazer teologia, a Bíblia não seria o relato de pelo menos dois milênios de experiência da caminhada de um povo. Posso dizer, sem medo de errar, que a Bíblia é o livro de teologia de Deus e que esta foi produzida no conflito entre a Sua vontade e a dinâmica do dia-a-dia das gentes. É a Palavra divina registrada na agonia humana. Se Deus quis assim, nós não podemos fazer diferente.
2º - A Bíblia deve ser o ponto central da produção teológica. Ela está mais que autorizada para isso, não somente porque é a revelação de Deus, mas, porque já é, por si só, produto de uma reflexão teológica.
3º - A Encarnação do Verbo é o ponto áureo da revelação de Deus. Se concordamos com isso, não podemos fazer uma teologia “desencarnada”. O que estou dizendo é que o “bureau” do/a teólogo/a deve ser levado para o meio do povo. Somente “encarnado/a” nas vicissitudes da vida é que o/a teólogo/a tem autoridade para interpretar a vontade do Pai. Como fruto disso, a vida do/a teólogo/a tem que autorizar sua fala, ou seja, seu testemunho de vida tem que anteceder seu testemunho sobre Deus.
Acredito piamente que, se produzirmos nossa teologia com o método Vida – Bíblia – Vida, nossa prática cristã será perfeitamente digna, e seremos vistos pelo Mundo como embaixadores/as de Deus em Sua missão no Mundo.
*José Marcos é pastor da Igreja Batista em Coqueiral e presidente do Instituto Solidare