*Por Rafael Dantas
Pernambuco pegou o “último carro” movido a combustíveis fósseis quando recebeu recursos bilionários para erguer o Polo Automotivo em Goiana, há quase uma década. No final de abril, a Stellantis, empresa âncora do cluster, anunciou um novo aporte de R$ 13 bilhões. O ciclo de investimentos atual aponta para a estruturação de uma plataforma de veículos híbridos e elétricos. Mais que produzir um bem industrial com alto valor agregado, o empreendimento coloca o Estado como um dos protagonistas no processo de descarbonização da frota no País. O movimento da empresa – e das dezenas de fornecedores que virão a reboque – promete abrir oportunidades para o desenvolvimento tecnológico local nessa cadeia que tem movido corporações globais para reduzir as emissões de carbono nos transportes.
O Polo de Goiana receberá nada menos que 43% dos aportes do novo ciclo de investimentos da Stellantis para a América do Sul. Emanuele Cappellano, presidente da corporação para o continente, destacou que a empresa tem a expectativa de fechar esse ciclo com 100 fornecedores instalados no Estado até 2030. Atualmente 38 empresas integram o parque de fornecedores do setor em Pernambuco. “Desde que iniciamos as operações no Polo Automotivo Stellantis de Goiana, em abril de 2015, queríamos deixar um legado e fazer parte da trajetória de desenvolvimento de Pernambuco. Agora, nove anos depois, estamos novamente fazendo história ao anunciar mais um ciclo de investimentos de R$ 13 bilhões. Esse valor será direcionado para renovar nossa linha de produtos, desenvolver novas tecnologias, atrair fornecedores e gerar novos empregos”, destacou o executivo da empresa âncora do cluster.
O anúncio não trouxe muitos detalhes desse investimento, especialmente sobre os novos modelos que serão fabricados em Goiana. Mas independente dos carros que sairão do polo automotivo, a informação de que o parque industrial produzirá veículos híbridos e elétricos é a informação que coloca Pernambuco num patamar estratégico.
“Os investimentos anunciados pelo Stellantis, embora vultosos, não estão alocados apenas na expansão da capacidade produtiva mas, principalmente, no investimento em inovação, no desenvolvimento de novos produtos e, sobretudo, no processo de descarbonização. Isso tem impacto direto em toda a cadeia produtiva automotiva e gera também um efeito de liderança econômica. É exemplo para que outras indústrias possam vir a aderir a esse movimento”, destacou o secretário de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco, Guilherme Cavalcanti.
Em sintonia com o anúncio, Guilherme lembra que o Estado lançou há poucos meses o PerMeie (Plano Pernambucano de Mudança Econômico-Ecológica). A iniciativa defende a chegada de investimentos sustentáveis por parte do setor privado mas, também, induz os aportes públicos na transição para o desenvolvimento de um tecido econômico que respeite o meio ambiente. Entre os esforços, o secretário destaca as iniciativas para tornar Suape um porto de carbono neutro.
Para se ter uma ideia do volume de investimentos que essa transição do setor automotivo representa no Brasil, a Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores) estima aportes entre R$ 60 bilhões e R$ 70 bilhões apenas em pesquisa e desenvolvimento nos próximos cinco anos. A medida é uma exigência para cumprir as obrigações impostas pelo programa Mover (Mobilidade Verde e Inovação) do Governo Federal para garantir incentivos fiscais. A tendência, no entanto, é no mundo todo e está sendo acelerada pela evidência do agravamento do aquecimento global e das mudanças climáticas.
DESAFIOS PARA APROVEITAR AS OPORTUNIDADES
Os bilhões de investimentos representam um grande pontapé inicial para Pernambuco avançar na cadeia industrial da descarbonização. “A disponibilização do investimento de R$ 13 bilhões na fábrica de Goiana vai trazer um grande ganho para a produção industrial de Pernambuco. Primeiro, a indústria automotiva local tem a grande oportunidade de se destacar como um polo de produção de veículos mais sustentáveis, contribuindo para a redução da emissão de poluentes e para a transição para uma economia mais verde. Como esse investimento visa à descarbonização, acaba abrindo portas para parcerias com outras empresas especializadas em tecnologias limpas e também pode colocar Pernambuco no mapa da indústria automotiva global”, avaliou o economista da Fiepe, Cezar Andrade.
Com as altas expectativas da corporação para os próximos cinco anos, Cezar projeta para Pernambuco uma oportunidade de atrair mais empresas para se instalarem no Estado. “Nos próximos anos provavelmente haverá um boom no setor, com um crescimento grande na produção industrial de Pernambuco. Veremos a indústria pernambucana produzindo automóveis mas, também, teremos a produção desses vários fornecedores. Então, na minha opinião, o grande ganho da indústria pernambucana é justamente esse”, completou o economista da Fiepe.
O aporte da montadora revela a expectativa da vinda de uma cadeia de fornecedores nos próximos cinco anos. Diante do provável aumento da oferta de novos postos de trabalho e da chegada de novas empresas, a abertura de vagas deve acelerar os esforços em formação profissional. “Oportunidades de emprego para a região, mais oportunidade de desenvolvimento industrial mas, também, na parte de comércio e de serviços para Pernambuco. Além do que, deverá trazer uma vantagem competitiva, uma vez que será um dos primeiros Estados a produzir veículos com uma matriz energética mais limpa do que é produzido até então”, afirmou Cezar.
OPORTUNIDADES PARA O PORTO DIGITAL
Além da expansão direta em Goiana e da Mata Norte Pernambucana, sede industrial Stellantis em Pernambuco e dos principais sistemistas, o atual ciclo de investimentos interessa muito também ao Recife. É na capital pernambucana onde está instalado o Software Center da multinacional, dentro do território do Porto Digital.
Mesmo antes do Next Level, vários modelos de carros fabricados pela empresa no Brasil e no exterior já utilizavam aplicações de software de propulsão de combustão desenvolvidas e validadas made in Recife. Com os novos investimentos, o Software Center, que é o único da corporação na América do Sul, promete ampliar sua competência para atender os veículos eletrificados.
“A nossa perspectiva é de aumento das atividades unidade de software que a empresa tem aqui no Porto Digital. E temos muito orgulho em saber que os produtos feitos aqui atendem o mundo todo”, afirmou Pierre Lucena, presidente do Porto Digital. Ele ressalta que vários protótipos desse processo de descarbonização da Stellantis podem ser desenvolvidos no centro da empresa instalado no polo tecnológico recifense.
Essa percepção de que o novo ciclo do empreendimento deve chegar à capital também é compartilhada pelo secretário de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco. “Deve haver uma repercussão muito positiva da Mata Norte, mas temos que estar atentos para o fato de que esses investimentos atingem também o Centro de Inovação da Stellantis, que fica no Bairro do Recife. Temos que considerar a repercussão disso sobre a cadeia de formação de capital humano, um investimento que será feito para que a gente transforme a nossa massa de trabalho nesse processo de construir novas tecnologias que vão fazer parte dessa economia do futuro”, declarou Guilherme Cavalcanti.
Outro ponto que merece destaque, na análise do economista e professor da Unit-PE, Edgard Leonardo, é a oportunidade para profissionais pernambucanos atuarem diretamente no que existe de mais moderno em termos de tecnologias do setor automotivo. “Isso coloca o Estado na frente permitindo, certamente, o surgimento de uma nova geração de técnicos especialistas em automóveis elétricos/híbridos, seja pelos treinamentos oferecidos, pela atração de novos players, seja pela oportunidade gerada em pesquisa e inovação nas universidades da região e atração de profissionais especializados, gerando maior difusão do conhecimento e qualificação da mão de obra”.
SETOR SUCROENERGÉTICO NO PROCESSO DE DESCARBONIZAÇÃO
Uma característica relevante desse anúncio dos planos de descarbonização da Stellantis é a opção de apostar na Bio-Hybrid, a tecnologia de motopropulsão híbrida, que combina energia térmica flex e eletrificação. Caso optasse pela fabricação apenas de carros elétricos, algumas portas seriam fechadas para o setor sucroenergético, que tem grande tradição e relevância na economia pernambucana.
O economista Edgard Leonardo salienta que a empresa, quando ainda não era chamada Stellantis, teve um passado muito alinhado com o desenvolvimento tecnológico no setor sucroenergético. “Importante lembrar que a montadora foi a primeira a lançar um carro movido a etanol no Brasil, em 1979 o Fiat 147 Álcool, no contexto do Proálcool (Programa Nacional do Álcool) e desempenhou um papel crucial na popularização desse combustível”.
Há duas motivações principais para o investimento nos modelos híbridos. O primeiro é a capacidade de recepção do mercado brasileiro dos veículos elétricos. Segundo dados da Abev (Associação Brasileira do Veículo Elétrico), entre janeiro e março, as vendas desses automóveis atingiram 36.090 unidades, estabelecendo mais um recorde ao registrar um aumento de 145% em comparação com o mesmo período do ano anterior (14.786 unidades).
Apesar desse crescimento muito acelerado, ainda existem muitas dúvidas sobre o volume de comercializações para atingir um público consumidor mais amplo. O presidente da Stellantis tem apontado os desafios de produzir carros elétricos, com um custo ainda alto no País, por não haver infraestrutura adequada de carregamento e baixa renda dos brasileiros para adquirirem esses produtos.
A segunda motivação é que os veículos movidos a etanol apresentam um desempenho muito semelhante aos elétricos em termos de emissões de carbono, dependendo do critério de avaliação utilizado. Um desses critérios envolve a medição das emissões de CO2 “do poço à roda”, considerando o combustível adotado em todo o ciclo da fonte de energia utilizada. Outra abordagem consiste em calcular as emissões “do berço ao túmulo”, englobando a pegada de carbono de todos os componentes e etapas de produção, uso e descarte do veículo. Nessa abordagem, que é mais ampla, o etanol é muito competitivo.
Edgard Leonardo avalia que o Brasil possui uma relevante vantagem competitiva em termos de descarbonização, devido à infraestrutura para etanol desde os anos 1980 e a cultura de adotar automóveis movidos ao combustível ou aos modelos flex. “Nossa produção de etanol tem uma pegada de descarbonização maior do que a de outros países, pois no Brasil (ao contrário dos Estados Unidos) usamos biomassa para produzir a eletricidade e o calor necessário ao processo produtivo. Ao combinar a tecnologia dos carros flex associada aos motores elétricos, certamente a Stellantis está apostando na opção mais lógica”.
A aposta no híbrido representa um horizonte de oportunidades para o setor sucroenergético, segundo o presidente do Sindaçúcar, Renato Cunha. “A Stellantis tem sido inovadora com o etanol, tanto em motores híbridos como no motor turbo 100% com etanol, que tem mais potência e mais eficiência energética. Representa mais economia e muito apropriada para vans e veículos utilitários. Eles desenvolvem pesquisa e ciência voltadas à produção de veículos em nosso Estado”.
O representante do setor sucroenergético elogia o modelo adotado pelo Polo Automotivo de Goiana no seu processo de descarbonização. “Transição não é uma ruptura, pelo contrário, é a tentativa de criar passos para chegar a um futuro mais eficiente, sobretudo nas questões ambientais e de sustentabilidade. A Stellantis vem atuando de forma decidida e acentuada desde o começo de 2023, dedicando-se a desenvolver modelos que sejam compatíveis com o nosso mercado e mais eficientes dentro das possibilidades de mobilidade de baixo carbono”, disse Cunha.
ESFORÇOS LOCAIS PARA ADENSAR A INDUSTRIALIZAÇÃO
Guilherme Cavalcanti informa que o Governo Raquel Lyra tem focado seus esforços para atração de investimento das cadeias que integram o processo de transição para uma economia de baixa emissão de carbono. “A gente tem desenvolvido não apenas investimentos em infraestrutura que habilitem essas cadeias produtivas mas, principalmente, no fortalecimento do Porto de Suape – para torná-lo carbono neutro – e na criação de um ambiente institucional e regulatório que incentive a atração de mais empresas dentro desse perfil”.
Entre as ações conectadas ao anúncio estruturador do Polo Automotivo, o secretário destaca o esforço para tirar do papel o Arco Metropolitano ainda em 2024. A expectativa é de licitar o trecho do Cabo de Santo Agostinho até a BR-232 e a BR-408.
O empreendimento é considerado fundamental para desafogar a mobilidade na Região Metropolitana no Recife. Outro foco será na preparação de programas de capacitação em parceria com instituições formadoras como as universidades, o Senai e os Institutos Federais.
As expectativas são tão grandes quanto o tamanho do investimento da Stellantis. A quantidade de fornecedores que Pernambuco conseguirá atrair, a empregabilidade da mão de obra local nos empreendimentos e o grau de inovações tecnológicas criadas no Estado são questões-chave nesse processo. O avanço da infraestrutura de mobilidade da Região Metropolitana do Recife, é outro fator de interesse imediato dos pernambucanos. A abertura da rota da descarbonização promete novas vias para o desenvolvimento.
Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais (rafael@algomais.com)