O mundo está chato ou você que perdeu a graça? (por Beatriz Braga)

*Por Beatriz Braga

Minha fantasia de como é ser um homem…”, conta a comediante americana Chelsea Peretti, irônica, no show One of The Greats, “…é acordar todo dia, abrir os olhos e pensar ‘eu sou incrível!’”, completa exaltada, fazendo a plateia rir. Depois segue imitando os colegas de trabalho enquanto falam sobre suas conquistas sexuais com garotas.

A prática de stand-up comedy sempre foi um terreno majoritariamente masculino. Cada vez mais, no entanto, mulheres sobem ao palco para provar que também são engraçadas.

É uma mulher, inclusive, que vem sendo aplaudida por levar o mercado humorístico a um novo e inédito nível.
“A nova grande voz da comédia”, foi assim que o The New York Times chamou o especial Nannette da australiana Hannah Gadsby lançado no Netflix em junho. “Transformador”, “revolucionário” e “catártico” foram outras alcunhas que recebeu dos mais reconhecidos portais de notícias.

No esquete, Hannah começa fazendo piadas comuns das suas performances, como o relato sobre uma conversa constrangedora com sua avó. “Eu percebi que esqueci de contar para ela que sou lésbica” e relembra como a matriarca ainda tinha esperança do ‘Mr. Right’ (o cara ideal) aparecer na vida da neta.

Hannah Gadsby Nanette

Esse show, porém, não é qualquer um. Hannah explica ao público a construção do “engraçado”. Em toda sua carreira, valeu-se da autodepreciação para fazer rir, pois foi assim que aprendeu a lidar com os aspectos de si mesma que não eram aceitos.
“Você entende o que autodepreciação significa para alguém que já vive à margem? Não é humildade. É humilhação”. Hannah dá um soco no estômago e nos conduz por 70 minutos variantes entre riso, drama, choque e emoção.

A australiana amplia as fronteiras do stand-up. Com um microfone e um palco vazio, faz uma obra de arte. A reação das críticas e do público sugere que a velha comédia, pejorativa e ofensiva, tem uma forte concorrente. O futuro, quem sabe, será mais interessante.

“O mundo está chato”, lamentam por aí os nostálgicos – em sua maioria, brancos e héteros. Temos, agora, uma geração de pessoas que se considera vítima do politicamente correto.

Senhores, o mundo não está chato. Talvez, lentamente, os alvos estejam mudando e quem não era incomodado passou a ser. Apontar quem tem “andar de viado” ou pele negra não será mais engraçado. Aquele que abusa é que se tornará o ridicularizado.

A pesquisadora Djamila Ribeiro relatou em sua coluna na Carta Capital que, quando adolescente, era costume passar por grupos de meninos na rua e ouvir piadinhas por ser negra, fato que ela viu se repetir com sua filha. “Rir de mim porque sou distraída ou desastrada é uma coisa, por que raios deveria rir da minha pele ou do meu cabelo como se isso fosse um defeito?”, indaga.

Hannah lembra do caso da estagiária de Bill Clinton, Monica Lewinsky, que virou chacota mundial por seu affair com o então presidente estadunidense em 1998. “Talvez se os comediantes tivessem feito seu trabalho certo e feito piada do homem que abusou do seu poder, agora tivéssemos uma mulher com experiência adequada na Casa Branca. Em vez disso temos um homem que admite ter assediado sexualmente jovens vulneráveis simplesmente porque podia”, diz em referência à ex-candidata à presidência dos EUA, Hillary Clinton, e Trump, atual mandatário do país.

Entre o poderoso show de Hannah e as lamentações de quem está cansado do politicamente correto, eu lembro de um colega que disse em uma mesa de bar: “meu melhor amigo é gay e tenho certeza de que ele não se importa que eu o chame de viado e fale coisas como viadagem”.

Em resposta ao argumento, o sujeito da frase, presente na mesa, explicou didaticamente que ninguém gosta de ser referido com um apelido pejorativo. “Aceitamos porque você também acaba aprendendo que é o viadinho da escola”.

A piada só chega depois que o ódio, a vergonha e o preconceito fizeram seu trabalho bem feito. Ela é o símbolo da naturalização da discriminação.

Hannah fez a plateia rir da anedota da avó para introduzir o que antes era indizível: ela não esquecera de sair do armário como costumava brincar. Ela fizera de propósito, pois uma parte dela ainda tem vergonha de ser quem é.

Talvez estejamos caminhando para o mundo onde Bill Clinton não passa mais incólume. Bill Cosby, Harvey Weinstein e outros não têm tido a mesma sorte depois das denúncias de assédio. O comediante Louis CK, que usava da sua autoridade para se masturbar na frente de mulheres, teve sua carreira arruinada ao ser desmascarado.

Enquanto isso, Hannah Gadsby – mulher lésbica no auge dos seus 40 anos – é ovacionada ao dizer à plateia lotada do Sydney Opera House que não vai mais desfazer tensões com piadas.

“Tensão é o que os ‘não normais’ carregam o tempo inteiro”, diz. “Os normais” precisam lidar com a merda no ventilador que eles próprios criaram.

A tensão é responsabilidade de quem ensina às crianças a se odiarem simplesmente por serem quem são. Hannah foi criada na Tasmânia, estado australiano onde homossexualidade era crime até 1997. Aprenda com aquela que foi espancada na rua, estuprada mais de uma vez e humilhada durante toda a vida por ser a “mulher errada”. E que afirma que não há nada mais poderoso do que uma mulher destruída que foi reconstruída.

E quem vai discordar? O show de Gadsby foi classificado pelo The Hollywood Reporter como “uma sensação do sucesso boca a boca” porque não apenas a mídia está falando sobre isso, mas as pessoas estão compartilhando eufóricas na internet.
A humorista diz que esse show foi sua despedida da comédia. Mas será que a comédia vai deixá-la ir embora?

O que dizer dos que classificam as críticas às piadas de mau gosto como censura? Pode fazer piada, mas não se pode reclamar dela? Aos donos da liberdade de expressão que, diante de tantos consertos a fazer no mundo, escolhem essa causa para lutar, eu diria: não foi o mundo que perdeu a graça. É você que está ultrapassado.

*Beatriz Braga é jornalista e empresária

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