“Pernambuco poderia ter uma relação melhor com a China”

Evandro Carvalho, professor da FGV Direito Rio, é um conhecedor da economia da China e da forma singular e prática como os chineses realizam os negócios. Ele morou em Xangai de 2013 a 2015, quando atuou como senior scholar da Escola de Finanças e Economia da Universidade de Xangai. Em seguida, ajudou a fundar o Centro para Estudos do BRICS da Universidade de Fudan, também em Xangai. Atualmente, está em Pequim, onde é senior visiting da universidade local. Diante de toda essa vivência na China, ele observa que o Brasil e, em especial, Pernambuco, estão muito aquém do potencial que poderiam usufruir com as relações econômicas com o Gigante Asiático.

Nesta entrevista a Cláudia Santos, Evandro Carvalho, que é pernambucano e também professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense, analisa os motivos que levam brasileiros a não vislumbrarem as oportunidades com investimentos chineses. Ele destaca principalmente a área das novas tecnologias, que tiveram um grande desenvolvimento nas últimas décadas na China e que podem favorecer a criação de uma infraestrutura necessária para aumentar a competitividade e a eficiência do Brasil.

Como o Brasil pode se beneficiar das relações econômicas com a China, que tem investido na infraestrutura dos países?

Os investimentos da China no setor de infraestrutura são voltados para portos, aeroportos ou ferrovias que contribuem para a importação de produtos chineses. É normal que os bancos chineses invistam onde identifiquem algo que vai favorecer empresas chinesas naquele país. Muito embora uma boa parte dos investimentos da China tenha sido em eletricidade e, mais recentemente no Brasil, em energia eólica e solar. A China é uma produtora de equipamentos, como geradores de energia solar. Os investimentos beneficiam o Brasil, mas também a China.

O Brasil precisa identificar a sua prioridade, não só dentro dos setores em que o País já tem uma presença, como o agronegócio, exportação de soja, minério, petróleo. Quando se fala dos investimentos chineses em infraestrutura, penso na infraestrutura do digital, das novas tecnologias, que é um setor que está muito aquém do potencial que pode ter. O Brasil poderia aproveitar o superávit que tem com a China de US$ 28 bilhões para fortalecer outros setores, outras infraestruturas importantes.

Como o Brasil poderia desenvolver a relação econômica nessas áreas?

No governo passado houve o problema em relação ao 5G da Huawei, que criou um obstáculo desnecessário ao avanço de uma agenda que é importante para o Brasil. A Huawei estava aqui desde o 2G, 3G, 4G e nunca houve nenhum tipo de suspeita de uso dessa tecnologia que ela vende para as empresas de telecomunicações do País. Ocorreu o contrário, o governo de Dilma Rousseff foi espionado pelo Governo Obama. Não existe um fundamento para o tipo de problema que foi levantado no governo passado.

Isso criou um clima de quebra de confiança que atrasou parcerias que poderiam ser desenvolvidas não só no 5G, mas na computação em nuvem, na inteligência artificial, no desenvolvimento da economia digital, no uso dessas tecnologias para favorecer a infraestrutura necessária para aumentar a competitividade e a eficiência do País. A China utiliza essa tecnologia para incrementar toda a sua cadeia de valor, desde o processo de produção até a entrega e toda a informação que circula nisso.

Nos inúmeros encontros focados na inovação que acontecem nos hubs de tecnologia no Brasil, você mal vê a presença de empresas chinesas ou parcerias com empresas chinesas. Na China vemos a importância dos superaplicativos. Por trás deles, há uma rede de logística poderosa que o Estado fornece. Então, há uma ausência muito grande de parcerias que poderiam ser feitas usando as novas tecnologias para, por exemplo, o setor de saúde.

A China é muito habituada com a gestão de grandes volumes de pessoas e de problemas. Consegue gerir grandes volumes de dados, inclusive com a big data e a computação quântica que ela desenvolveu de maneira extraordinária. Isso tudo ela usa na gestão e na governança do país. Como aproveitar essas experiências que a China tem e que o Brasil também tenta fazer da melhor forma possível? Isso envolve o setor espacial, aéreo, de segurança. Vez ou outra a gente vê notícia de alguns prefeitos de grandes cidades do Brasil que visitam a China para verificar como fazem a gestão da cidade, utilizando essa tecnologia. Mas ainda está muito aquém do potencial, considerando a realidade hoje da China na área de tecnologia.

Qual a razão dessa falta de interesse do Brasil em relação a toda essa expertise da China?

Tem havido investimentos de empresas chinesas ou empresas chinesas vindo para o Brasil na área de TI. Mas é muito aquém do potencial. O problema tem diversas causas. Primeiro, há uma ausência de clareza por parte do governo de uma política digital e de incremento dessa nova infraestrutura que pudesse dialogar com a China. O Brasil precisa intensificar mais essa discussão e ver quais são as parcerias que poderiam ser feitas entre as instituições de pesquisas sérias de ambos os lados, conectadas com os principais atores econômicos que atuam nos mercados estratégicos. A China tem investido em muitos setores e é preciso identificar quais seriam aqueles que o Brasil tem interesse para poder estimular.

Falta também uma visão estratégica mais ampla. Darei um exemplo: os trens bala. O que mais se escuta é que isso caro e é mais complexo no Brasil por causa da topografia. Um trem bala Rio/São Paulo vai passar por diversas cidades, o que pode provocar diversos problemas jurídicos em cada uma delas. Porém qualquer processo de mudança significativo da estrutura econômica de um país não é feito de maneira simples e vai sempre requerer custos e grandes obstáculos.

No passado quando se falava em petróleo no Brasil, a quantidade de gente que dizia que o País não tinha petróleo era alta, depois, falava- -se dos custos e, no entanto, hoje o País está autossuficiente. Na China, a estrutura de ferrovias foi um componente essencial para o desenvolvimento do país. Tudo isso permite ter esses superaplicativos de entrega e impulsionar toda uma área tecnológica por trás, reduzir custos, integrar o país. No Brasil, a distribuição da população não tem uma política pública por detrás que pense num processo indutor de crescimento de determinadas regiões ou cidades, em função de uma estratégia de desenvolvimento que passa, por exemplo, por trens. E o Brasil é um país de território imenso como a China.

A China teria todo o interesse em discutir com o Brasil projetos nessa área. Claro que isso envolve uma série de atores, interesses múltiplos que não avançam nessa agenda. Por exemplo, ficou de fora da visita de Lula à China uma parceria substantiva na área digital. A infraestrutura é chave para tudo. Quando se pensa em construir uma escola na China, o “x” da questão não é só a escola, é a infraestrutura ao redor dela que vai permitir que os pais levem a criança de uma maneira rápida, que dali possam ir para o trabalho também de maneira rápida, tem que ter um hospital no raio de tantos quilômetros. Então se faz uma transformação na cidade, no bairro. A China tem um jeito de pensar sistêmico.

O senhor não acha que uma diferença crucial é o fato de a China ser conhecida por priorizar o planejamento, algo que tem sido ausente no Brasil?

Sim, a estrutura do sistema favorece e não apenas porque eles são autoritários. Essa explicação escuto muito, mas acho-a muito rasa. Muitos países têm características autocráticas e, no entanto, não funcionam. Como há democracias que funcionam e outras, não. Aqui os projetos nunca são de longo prazo porque os políticos estão a cada dois anos preocupados com a eleição, por isso querem resultados rápidos e visíveis para a população.

A gente é ruim de planejamento. Já participei de alguns governos estaduais ou municipais, em que o governante vai apresentar um projeto para investidor chinês e, no fundo, ele apresenta um PowerPoint. Isso não é projeto. Projeto tem análise, muita estatística, estudos profundos. E, para agravar ainda mais, a gente é ruim de execução. Disso resulta que o Brasil se torna difícil para parcerias de longo prazo, para um país estrangeiro investir, o que acaba aumentando o custo do dinheiro.

Alguns Estados estão se dando melhor nessa busca por investimentos chineses. Segundo o último relatório do Conselho Empresarial Brasil China, do total de recursos investidos pelo país no Brasil em 2022, o Sudeste é o que recebe mais: 60%. Em 2019, o Nordeste até que teve um número alto de investimentos, mas agora está em 13%, dos quais Pernambuco não chega a 1%. É um percentual baixíssimo considerando que o Consulado da China no Nordeste está no Recife.

Como Pernambuco poderia incrementar seus negócios com a China? O senhor falou em infraestrutura, existe um esforço no Estado para a construção da linha Salgueiro-Suape da Transnordestina.

Pernambuco é um Estado que tem uma estrutura, tem capacidade, tem universidades, tem empresas. Poderia ter uma relação melhor com a China. Os estados mais atuantes são Bahia, Rio Grande do Norte e Ceará. Pernambuco está muito aquém. Não sei qual seria a razão disso. Mas me parece que falta uma visão em que o Governo do Estado ou a Prefeitura pudessem estabelecer um grupo de trabalho bem orientado para abrir um canal de diálogo com a China, de maneira frequente para identificar aquelas oportunidades que atendam os interesses dos dois lados. Por exemplo, eu até ajudei numa aproximação do Porto Digital com a então cônsul de Recife (ela já voltou para a China). Houve uma reunião. Mas, depois, que eu saiba, não houve desdobramentos.

No Brasil há grande desconhecimento da realidade chinesa e uma visão estereotipada do país. Ainda escuto de pessoas, que até fazem parte da elite econômica brasileira, dizendo que a China é um país sujo. Mas você vai nas grandes cidades chinesas e vê que são muito mais limpas e ordenadas que as nossas, muito mais seguras inclusive. Tem aquela história de que a China só copia, não é criativa. Pelo amor de Deus, isso é passado! Hoje a China já é tendência em vários assuntos, a gente vê a força do TikTok, dos superaplicativos.

E para piorar, passamos por um certo resgate de uma mentalidade da Guerra Fria. Vimos Trump com aquela história do vírus chinês, achei aquilo de uma covardia brutal porque estigmatiza uma população. O próprio ex-presidente Jair Bolsonaro criou problemas com o Huawei de maneira desnecessária. E ainda mais essa guerra tecnológica entre os EUA e China que gera consequências. Não sei se isso afeta — eu acho que ainda não — o fato de Pernambuco não ser muito atuante nessa relação com a China de maneira estratégica.

O que Pernambuco poderia fazer para se aproximar mais da China?

Primeiro, aumentar os diálogos formais nos canais oficiais e dentro desses, estabelecer prioridades nessa relação, ou seja, saber o que se quer e identificar o interesse comum, visando ao desenvolvimento do Estado e à geração de emprego. É preciso saber qual é o projeto que se tem para o Estado de Pernambuco e abrir um canal oficial. Também intensificar as relações entre o setor empresarial local e o chinês. Agora, enfatizo, mais uma vez: é preciso saber o que se quer, tem que ser um projeto de parceria que envolva, como os chineses gostam de dizer, ganhos mútuos. Não é uma questão de pedir ajuda, o chinês não entende essa lógica, ele entende a lógica de que todos têm que ganhar. Voltando para a realidade nacional. China e Brasil já realizaram transações em yuan e em real.

Quais as consequências disso?

Isso é uma tendência, não vou dizer global, mas está se espalhando muito, de se utilizar a moeda nacional para essas trocas comerciais entre países que têm uma relação comercial intensa, que é o caso do Brasil e da China. A China é o maior parceiro comercial do Brasil desde 2009, então faz sentido. Naturalmente, isso se insere dentro da política externa chinesa de internacionalização do yuan. Ela tem interesse no fortalecimento da moeda chinesa, que inclusive — isso foi uma conquista do atual presidente chinês — já integra o cesto de moedas do FMI. Mas está longe de ser uma ameaça à dominância do dólar.

O mundo vive vários conflitos. Como o senhor analisa a postura do Brasil diante deles?

Nesse contexto atual de acirramento das relações EUA e China e, ao mesmo tempo, do ocidente com alguns países não ocidentais, é muito importante que o Brasil se mantenha numa posição de país confiável para estabelecer diálogos com todos os lados. Não que seja indiferente aos problemas que esses países enfrentam nas relações difíceis entre eles, mas numa posição de estar disposto a contribuir para reatar as relações ou fortalecer as pontes entre eles.

Quando o Brasil assume um lado, ele queima a possibilidade de manter o diálogo com o outro lado. Uma coisa que aprendi estudando a China: o ocidente tem uma lógica alternativa de mundo ou você é isso ou é aquilo, é o bem contra o mal. Eu estava vendo a entrevista com o embaixador palestino e o repórter da CNN perguntava: “você condena ou não o ataque do Hamas?” E o embaixador dizia: “olha, o meu ponto não é esse, isso é um problema mais complexo, que remete ao fato de a comunidade internacional não ter validado o Estado Palestino”.

Porque essa visão atomiza a discussão e a pauta do dia é condenar o Hamas que, por mais que tenha feito uma atitude condenável, isso não resolve o problema da complexidade. É como a questão da invasão da Rússia à Ucrânia, não se justifica a invasão, mas se explica. Vamos debater o porquê disso, que está relacionado com os acordos que foram feitos lá atrás? A OTAN deixou de fazer ou não esses acordos? Temos que ter uma discussão mais complexa.

A China tem uma lógica aditiva, vemos isso até na filosofia do yin e yang, a pessoa não é totalmente boa, nem totalmente má, as coisas não são totalmente ruins ou totalmente boas, nem tudo está perdido, sempre pode haver uma saída. O Brasil na relação internacional com esses países tem que caminhar com a sabedoria de rejeitar a lógica alternativa que o ocidente sempre tenta impor. É democracia versus autocracia. Essa discussão tem um grande ponto de hipocrisia. Numa linha entre uma democracia plena e uma ditadura radical, EUA e China não estão nas extremidades opostas e, às vezes, dependendo do assunto, até se tocam.

Não estamos em guerra. Rússia e Ucrânia estão, há o envolvimento da Europa, dos EUA e pode até se agravar agora com o conflito entre Israel e palestinos. Poderá haver alguma reação de alguns países árabes, o cenário não é bom. O Brasil tem que ter muita cautela, ser um vetor de paz e diálogo, mas sem parecer que quer ser o bom moço. Não é isso. Temos que condenar o que é condenável, mas também não fazer isso de maneira hipócrita e colocar seus interesses à frente. A China é um país de uma complexidade extraordinária, com uma cultura muito rica. O chinês é muito prático para as coisas da vida. Acho que muita coisa se poderia aprender com eles. É uma questão de disposição. Eu espero que os Estados do Nordeste avancem cada vez mais nessa relação.

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