Uma pesquisa recente de professores da Universidade Livre de Berlim, em parceria com a Universidade Federal da Minas Gerais e Universidade de Brasília (UNB) revelou que quase três quintos (59,4%) dos domicílios brasileiros no final do ano 2020 apresentaram um crescente grau de insegurança alimentar. Conversamos com José Arlindo Soares, que é sociólogo e pesquisador do Centro Josué de Castro, sobre esse cenário de recrudescimento da fome e quais as possíveis saídas para o País.
José Arlindo explica que os dados dessa pesquisa não significam que todo esse conjunto dos 59,4% dos brasileiros estejam em uma situação de fome absoluta, mas o estudo aponta que essas famílias diminuíram o consumo de alimentos em importantes níveis. “É considerado um domicílio que vive em insegurança alimentar ou em uma situação de incerteza quanto ao acesso de comida quando a família já foi obrigada a reduzir a quantidade e a qualidade de alimentos que consumia. No Nordeste, na nossa região, a situação é mais grave, o fato ocorre em 73% das casas”, afirma o pesquisador.
Ele explica que a pesquisa faz um distinção entre os graus de insegurança. Entre os lares brasileiros, 31,7% são considerados em insegurança alimentar leve, 12,7% são avaliados como moderados e 15% vivem a insegurança grave. “Essa última é que deve ser motivo de maior de preocupação da sociedade e do poder público. O Brasil, já no final de 2020, chegou em números absolutos de 19 milhões de pessoas em situação de grave insegurança. O maior destaque é dirigido para o Nordeste, para famílias com crianças e para aquelas que não concluíram o ensino fundamental”, disse Arlindo.
Para exemplificar o agravamento do cenário da fome, o pesquisador lembra que a conclusão da pesquisa de Orçamentos familiares de 2017-2018, divulgada pelo IBGE em setembro do ano passado, já indicava essa tendência de aumento da insegurança alimentar. “Esse crescimento da insegurança alimentar vem desde a recessão de 2014/2015, quando o desemprego atingiu cerca de 12 milhões da trabalhadores. Agora, o problema foi aguçado pela pandemia que agravou a situação econômica do País . Temos então um quadro histórico bem diferente daquele momento em que a ONU declarou o Brasil livre da fome. As pesquisas revelam que desde 2015 já havia uma sinalização de um quadro de aumento da insegurança alimentar, situação que foi apenas ligeiramente amenizada em 2019. Agora vivemos um aumento da dramaticidade da fome outra vez”.
Auxilio Emergencial
O sociólogo explica que no meio da Pandemia ocorreram três movimentos importantes na análise do quadro de insegurança alimenta no Brasil. “Primeiro houve uma queda do consumo de alimentos. Em seguida, com o auxílio emergencial, houve um efeito imediato na própria diminuição da miséria ou mesmo da pobreza, com uma diminuição da insegurança alimentar. Em um terceiro momento houve um recrudescimento da situação de fome com o final do auxílio”.
Em números, José Arlindo Soares explica que tomando como referência o mês de abril de 2020, cerca de 66 milhões de famílias receberam o auxílio na primeira fase. Isso correspondia a três vezes a quantidade de famílias que recebiam o Bolsa Família. “O principal problema, além da descontinuidade do Auxílio Emergencial, é que o desenho dele não foi resultado de um conceito mais estruturador do fenômeno que, em tese, se pretendia combater. Foi mais o resultado da pressão imediata sobre o Governo Federal, que ele procurou se livrar. Não foi apresentada uma proposta estruturadora para a crise, que tinha obrigação dimensionar e projetar o tempo necessário do auxílio. Além disso, faltou um projeto coerente em relação a implicações sanitárias, econômicas e humanitárias do fenômeno da pandemia que ainda estamos vivendo”.
Além da crítica a falta de um programa mais consistente de distribuição de renda de forma emergencial, José Arlindo criticou a rejeição da compra cerca de 70 milhões de doses da vacina da Pfizer sob o pretexto de exigências de cláusulas draconianas no contrato. “Foram cláusulas que 58 países com sólidas estruturas jurídicas já tinham aceito. Isso permitiria começar a vacinar entre dezembro e janeiro, o que significaria que já em março ou abril teríamos 50 milhões de pessoas vacinadas, com repercussões naturais na economia. Claro que o problema não era de rigor jurídico, longe disso, mas de colocar obstáculos ao reconhecimento da própria pandemia. Isso porque no mesmo período o presidente e o medieval Ministro das Relações Exteriores faziam uma diplomacia das cruzadas contra uma potência mundial na produção de insumos de vacinas, que hoje é responsável por 90% das vacinas efetivamente aplicadas no Brasil, além de ser é o principal comprador do agronegócio do Brasil”, afirmou o pesquisador se referindo aos ataques do ex-ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, à China.
Renda Mínima
Para além do retorno do Auxílio Emergencial, o sociólogo José Arlindo Soares defende que o País crie um programa de Renda Mínima para combater o problema da fome de forma mais sustentável. “O retorno do ciclo da fome no Brasil coloca a urgência para a criação de um programa de renda mínima mais substantivo, que possa superar as oscilações das conjunturas econômicas. Isso sem falar na necessidade de uma maior prioridade da educação, que é quem faz com que a renda do trabalho ultrapasse a renda da proteção social. É preciso entender que o Programa Bolsa Família foi e ainda é muito importante para aliviar a pobreza, mas ele só funciona funciona bem como complemento de uma outra renda da família. Quando a única renda é a Bolsa a situação da família é de vulnerabilidade absoluta, ou seja, uma situação de insegurança alimentar grave”.