Certa vez, um amigo propôs o seguinte argumento sobre o machismo cotidiano: “Tem mulher que gosta quando um cara a chama de gostosa na rua”. Ele mesmo tinha uma amiga que dizia sentir-se elogiada diante dessas coisas que eu chamava de assédio.
Desanimei-me diante daquele argumento “infalível”. Eu não poderia levantar a bandeira do assédio, uma vez que nem todas as mulheres pensam como eu.
Como explicar o que ser mulher há 27 anos me ensinou sobre mulheres?
“Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Simone de Beauvoir queria dizer, com essa frase, que a condição do gênero feminino no mundo não é completamente determinada por fatores biológicos. Aprendemos o que é ser mulher através do que nos é passado ao longo da vida. Não poderia concordar mais.
Aprendemos a ser mulher quando, ainda novas, entendemos o sentido do “incômodo”. É a sensação de que há algo errado com o riso, com a fala ou tato de um homem, seja amigo, chefe, parente, médico.
Quando pensamos nas reações que nossas roupas provocam.
Quando abaixamos nossas cabeças nas ruas, nas praças, nos postos de gasolina, na escola, no trabalho.
Quando nos calamos ou nos preparamos para ouvir em segredo.
Ser mulher é ter muitas histórias ao seu redor. O estupro revelado dolorosamente a um grupo de amigas, o corpo marcado pela agressão, o tapa na cara do namorado ciumento.
Aprendemos a nos rodear de preconceitos, vergonhas, sequelas e silêncios.
Aprendemos que ser mulher é não poder falar demais, beber demais, dançar demais.
Ser mulher é, tantas vezes, precisar ser menos.
Aprendemos quando começamos, menores de idade, a entender os olhares ao nosso redor. Notamos que homens muitos mais velhos repetem um olhar que, em algum momento, identificamos como desejo e que nos acompanhará ao longo da vida.
Assim como vamos aprendendo que ser mulher é também desconstrução, coragem, força, resiliência. É ir além do prato que prepararam para nós nesse mundo, até agora, governado por homens.
Desde pequenas, o mundo relaciona o nosso valor ao nosso corpo e muitas vezes acreditamos nisso. Somos um reflexo do julgamento dos homens sobre nós. E assim saímos nas ruas e entendemos o “gostosa” como elogio. Afinal, não é para isso que estamos aqui? Ser um objeto à disposição da chancela de um olhar masculino?
Não julgarei a mulher que diz que um “gostosa” desconhecido a faz sentir-se bem. Ela foi criada para isso.
Toda atitude que invade o espaço de uma pessoa, sua privacidade, correndo o risco de lhe impor medo, vergonha ou desconforto é abuso, violação, assédio. As cantadas inconvenientes são a ponta do iceberg.
Hábitos são poderosos. Por isso devemos questioná-los por nós e por todos aqueles que, mesmo que hoje não compreendam o peso de uma invasão, serão pais e mães de meninos e meninas que herdarão seus hábitos e passarão adiante. Vamos, juntos, mudar de escola.
E bora combinar: mulher gosta mesmo é de respeito.
As artes usadas na coluna foram publicadas pela campanha Chega de Fiu Fiu da Think Olga, que mapeia o assédio no País e mostra que a maioria das mulheres brasileiras não aprova as cantadas nas ruas. Aproveito para divulgar a palestra “Cantada não é elogio” da idealizadora desse projeto, Juliana de Faria:
*Beatriz Braga é jornalista e empresária (biabbraga@gmail.com). Ela escreve semanalmente a coluna Maria pensa assim para o site da Revista Algomais
*As ilustrações dessa postagem são da campanha Chega de fiu fiu (http://thinkolga.com/chega-de-fiu-fiu/)