Poder Da Escuta: Um Novo Olhar Sobre A Habitação Popular No Recife - Revista Algomais - A Revista De Pernambuco
Poder da escuta: Um novo olhar sobre a habitação popular no Recife

Revista Algomais

Em seminário sobre habitabilidade, lideranças comunitárias, pesquisadores e urbanistas apontam que enfrentar enchentes e desigualdade exige ouvir as periferias, valorizar as singularidades e garantir a continuidade de políticas públicas.

*Por Rafael Dantas

“Ninguém vai morar em área de risco porque acha bonito. A culpa é de uma estrutura racista que fez com que as pessoas pretas e mais vulnerabilizadas fossem para esses locais”, sentenciou a líder comunitária da Vila Arraes e presidente da Associação Gris Espaço Solidário, Joice Paixão, durante a sua apresentação no II Seminário Recife Cidade Parque – Os Desafios da Habitabilidade no Recife. O evento foi realizado pelo projeto de pesquisa Recife Cidade Parque (fruto de convênio entre a Prefeitura do Recife e a Universidade Federal de Pernambuco) e as secretárias municipais de Habitação e de Desenvolvimento Urbano.

A comunidade de Joice é banhada pelo Rio Capibaribe e foi uma das regiões do Recife que mais sofreu com as enchentes de 2022. Algumas casas foram cobertas até o telhado em pouco tempo. Um evento climático extremo, que ela descreve com outras palavras. “A gente passou um inferno. A enchente que levou uma casa inteira, um sofá, uma geladeira, destruiu vidas e levou muitas memórias. As perdas não foram só materiais”.

Joice paixao gris
Joice Paixão defende que a discussão sobre moradia deve estar articulada à adaptação climática e à vulnerabilidade social de seus moradores e que a população negra e periférica deve ser ouvida. “Ninguém vai morar em área de risco porque acha bonito”, alerta.

Para a ativista, a discussão sobre moradia precisa estar articulada à adaptação climática territorial, considerando as particularidades geográficas do Recife e a vulnerabilidade social de seus moradores. Acima de tudo, ouvir a população negra e periférica. Ela considera que sem uma mudança estrutural – com governança inclusiva entre poder público, academia, sociedade civil e setor privado – as comunidades continuarão a pagar com vidas as falhas do estado.

O cenário tratado por Joice e por quem mora nas periferias da cidade expõe uma necessidade histórica, que só foi agravada com as mudanças climáticas. O problema não é só de habitação, é amplo e envolve vários aspectos da moradia. Um conceito que se tornou conhecido como habitabilidade.

“A habitabilidade traz como questão central a relação entre unidade habitacional e o espaço urbano, a ligação dessa unidade na rede de infraestrutura básica urbana e com serviços, ou seja, pela questão social de inclusão dessa população no contexto urbano”, explica  Lúcia Veras, professora da UFPE e pesquisadora do projeto Recife Cidade Parque.

A discussão alerta para a urgência do avanço das políticas urbanas, diante da pressão das mudanças climáticas, e para a insuficiência da maioria das ações, que se restringem à produção de novas unidades habitacionais. Sem planejar o transporte, a conexão com as oportunidades de trabalho, o acesso ao lazer e aos serviços básicos, os dramas vividos pelas populações mais vulneráveis por morar nos lugares mais distantes e com menor infraestrutura não serão resolvidos.

No momento em que a capital pernambucana faz um esforço de planejamento de longo prazo, mas com execuções no curto e médio prazo, via o projeto Recife Cidade Parque, o olhar das populações marginalizadas é fundamental. O que o seminário deixou evidente é que quando pesquisadores e agentes públicos envolvidos na causa realizam estudos e planos feitos no escritório, sem a intensa participação popular, eles não contribuem para integrar as duas “cidades” – a formal e a informal –  que habitam no mesmo território, mas têm demandas muito distintas.

EXPERIÊNCIA DE SÃO PAULO PARA INSPIRAR O RECIFE

Marcos Boldarini

"É importante que o projeto de [habitação] valorize as singularidades de cada lugar, [e que seja concebido] dentro de uma visão sistêmica, do ponto de vista da integração desses espaços com o sistema de áreas públicas e da integração desse bairro com os bairros vizinhos e a cidade." - Marcos Boldarini

Durante o seminário, o arquiteto e urbanista Marcos Boldarini contou duas experiências exitosas da cidade de São Paulo na regeneração de um território. Tanto o projeto de urbanização do Cantinho do Céu (na Zona Sul de São Paulo), como a intervenção em assentamentos de São Bernardo do Campo, tiveram foco na qualificação de moradias mas, também, uma transformação mais ampla do espaço.

No Cantinho do Céu, em São Paulo, um projeto de urbanização transformou uma área de 1,5 milhão de metros quadrados às margens da Represa Billings, beneficiando cerca de 10 mil famílias. A intervenção integrou infraestrutura básica, requalificação de ruas, vielas e escadarias, implantação de transporte aquático e criação de parque linear, áreas de lazer e equipamentos públicos. As soluções foram adaptadas ao relevo e às necessidades da população, com participação comunitária.

Nos assentamentos de São Bernardo do Campo, uma intervenção em cerca de 500 mil m² beneficiou aproximadamente 3.300 famílias localizadas em áreas próximas à Represa Billings e à Serra do Mar. O projeto buscou integrar os assentamentos ao restante da cidade, superando barreiras como rodovias e relevo acidentado, enquanto respeitava remanescentes de Mata Atlântica e áreas ambientalmente sensíveis. Foram planejadas melhorias em moradias, espaços públicos e infraestrutura, articuladas com o plano diretor municipal, com foco na inclusão social, conexão com empregos e serviços.

“Valorizar as singularidades de cada lugar do ponto de vista do projeto como uma reflexão única para esses locais, evita a ideia da mera reprodução do projeto”, afirmou Boldarini. Ao mesmo tempo, a intervenção deve integrar os desejos dessa população atendida diretamente pelas transformações com os demais contextos da cidade. "É importante que o repertório do projeto considere essas condições dentro de uma visão sistêmica, do ponto de vista da integração desses espaços com o sistema de áreas públicas e também da integração desse bairro com os bairros vizinhos e a cidade", orienta o arquiteto.

Experiências que dialogam com as expectativas do Recife Cidade Parque, que busca promover uma ampla transformação na capital pernambucana, com um olhar a partir das suas três principais bacias hidrográficas (dos rios Capibaribe, Beberibe e Tejipió) e da frente marinha. Além do parque linear ao longo dos rios, o projeto visa também valorizar os corredores que conectam os cursos d’água da cidade com os espaços verdes.

DIRETRIZ E AS PRIORIDADES

Vitor Araripe

"Ao pensar nos desafios da habitabilidade do Recife hoje e da cidade-parque que se pretende, nos vem à cabeça a pergunta: para quem será construída essa cidade-parque? " Vitor Araripe

A criação da Secretaria Nacional das Periferias, ligada ao Ministério das Cidades, pelo Governo Federal, surge como uma inovação estratégica na gestão pública, ao colocar as regiões mais vulneráveis no centro do planejamento urbano e social. O atual chefe de gabinete da SNP é o pernambucano Vitor Araripe, que conhece de perto as experiências locais de promoção da habitabilidade.

Araripe provocou no seminário uma reflexão sobre as prioridades que estarão em disputa na construção do futuro da cidade: “Ao pensar nos desafios da habitabilidade do Recife hoje e da cidade-parque que se pretende, nos vem à cabeça a pergunta: para quem será construída essa cidade-parque?” Ele ressalta a importância da Secretaria das Periferias, criada justamente para pensar os territórios historicamente negligenciados. O Brasil, segundo ele, enfrenta um “lapso de infraestrutura”, acumulado ao longo de 500 anos, e é preciso definir prioridades, decidir quem será atendido primeiro e onde as melhorias de infraestrutura devem ser implantadas.

No Recife, apesar de haver exemplos concretos de avanços de projetos de habitação, ainda falta a integração deles com a cidade. Ele defende que haja uma articulação que conecte moradia e parques, evitando que o Recife se divida entre áreas bem equipadas e territórios com menor qualidade de vida. Ou melhor, siga apartado. Araripe questiona se a cidade seguirá reproduzindo modelos que privilegiam grupos de maior poder econômico ou se será capaz de orientar seus projetos por mais justiça territorial, reduzindo desigualdades urbanas e tornando o Recife verdadeiramente uma cidade-parque, acessível a todos.

RETOMADA DA POLÍTICA HABITACIONAL

Felipe Curi
Felipe Curi lembrou que a atual política de moradia no Brasil acontece após um período de desmobilização durante os governos Temer e Bolsonaro e ressaltou que a retomada depende da articulação entre universidade, movimentos sociais e poder público para construir soluções efetivas para superar o déficit habitacional.

Ativista em direito à cidade e atual secretário de Habitação do Recife, Felipe Curi, não esconde os desafios da capital pernambucana e nacional. Ele considera que a atual política de moradia no Brasil está se desenvolvendo após um período de desmobilização significativa durante os governos de Temer e Bolsonaro. Ele ressaltou que a retomada das políticas habitacionais depende da articulação entre universidade, movimentos sociais e poder público para construir soluções efetivas para superar o déficit por habitações.

O secretário abordou o PLHIS (Plano Local de Habitação de Interesse Social) como instrumento central para planejar, organizar e orientar ações voltadas à população de baixa renda. Esse mecanismo, que será atualizado neste ano, segundo Curi, inclui desde o diagnóstico do déficit habitacional e mapeamento territorial até a definição de diretrizes e metas das políticas públicas. 

Ele exemplificou projetos concretos, como os habitacionais Vila Brasil, Sérgio Loreto e Encanta Moça, mostrando como a gestão atual busca conciliar produção de novas moradias, urbanização de áreas periféricas e regularização fundiária. Além disso, ressaltou a inovação de incorporar movimentos sociais diretamente na produção de habitação, por meio de doação de terrenos e parcerias estratégicas. “Pela primeira vez estamos doando terreno do município para movimentos sociais produzirem habitação”. 

Como desafio, ele defendeu a necessidade de articular programas como Minha Casa Minha Vida e ProMorar com urbanização sustentável e inclusão social, fortalecendo a participação comunitária. "Urbanização sem moradia ou moradia sem urbanização é política incompleta".

CONTINUIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

Maria Angela de Souza

"Como o bem de habitação é de consumo elevado, ela é consumida a partir do fracionamento do valor dela. Em uma política, quem assume esse financiamento é o poder público. Para ele existir são necessários recursos públicos volumosos e estáveis." - Maria Ângela Souza

Todos os projetos de habitação, mesmo nos modelos mais antigos, que contemplavam essencialmente a construção das residências, demandam altos investimentos. Diante de um déficit habitacional gigantesco no País, eles precisam também de uma estrutura orçamentária que garanta a sua continuidade, independentemente do governo em questão e oscilando menos com as crises econômicas. Quando se trata de pensar a habitabilidade e não apenas a unidade residencial, os desafios são ainda maiores.

Há duas condições para que uma política pública de habitação tenha capacidade de promover mudanças mais efetivas no País, segundo a professora da UFPE, Maria Ângela Souza: “Como o bem de habitação é de consumo elevado, ela é consumida a partir do fracionamento do valor dela. Em uma política, quem assume esse financiamento é o poder público. Para ele existir são necessários recursos públicos volumosos e estáveis”.

Na experiência nacional, a pesquisadora destacou que os dois principais programas de habitação que atenderam esses pré-requisitos foram o BNH (Banco Nacional de Habitação) e o Minha Casa, Minha Vida. Ela classifica que todas as demais experiências foram de prazos mais curtos ou dependente de recursos externos, sem garantia de continuidade. A falta de verba nos estados e municípios, inclusive, é um dos fatores que têm feito essas políticas se concentrarem no Governo Federal.

A continuidade de políticas públicas bem estruturadas demanda também o comprometimento de profissionais capacitados que garantam o planejamento consistente e recursos adequados para sua implementação, segundo Boldarini. “Bons projetos de arquitetura só são possíveis a partir da continuidade de políticas públicas nas suas diversas escalas, até os planos e programas setoriais. Não haverá bom desenho de urbanismo e bom desenho de arquitetura, nem implementação de obra adequada, se a gente não tiver nas casas legislativas e nos executivos bons profissionais estruturando essas políticas. Também é importante a continuidade delas e dos recursos para a sua implementação”, destacou o arquiteto e urbanista Marcos Boldarini.

Acerca da contribuição do Recife Cidade Parque para a continuidade das políticas urbanas municipais, Lúcia Veras explica que um dos resultados será a entrega de um plano de paisagem para apoiar as gestões da prefeitura para as próximas décadas. A pesquisa, inclusive, tem feito um levantamento de dados de espaços vazios que não eram enxergados pelo planejamento, especialmente na Bacia do Rio Beberibe. “A gente está levantando dados e informações e mapeando coisas que a cidade desconhece. E é uma cegueira histórica de áreas que foram ocupadas por pessoas que foram retiradas do Centro. Vamos deixar como produto dentro do plano, as diretrizes para projetar essas áreas”.

A construção de um Recife mais justo, resiliente e integrado exige muito mais do que a entrega de unidades habitacionais: requer visão de longo prazo, recursos estáveis e uma governança que una poder público, academia, movimentos sociais e setor privado. A experiência de outras cidades mostra que soluções efetivas nascem da valorização das singularidades de cada território e da participação ativa das comunidades. 

Como resumiu o arquiteto e urbanista, professor da UFPE e coordenador geral do Recife Cidade Parque, Roberto Montezuma: “Transformar a cidade exige mais que discurso, requer engajamento, visão integrada de projeto e articulação de infraestrutura e políticas de continuidade.”

Para que o Recife Cidade Parque cumpra seu potencial de transformar a capital, será preciso garantir que a cidade que se desenha contemple, antes de tudo, aqueles que historicamente foram deixados à margem, unindo assim a cidade formal e a informal em um mesmo projeto de futuro.

montezuma

"“Transformar a cidade exige mais que discurso, requer engajamento, visão integrada de projeto e articulação de infraestrutura e políticas de continuidade.” Roberto Montezuma

*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais e assina as colunas Pernambuco Antigamente e Gente & Negócios (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)

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