O cansaço virou uma epidemia: o colapso mental e físico em uma sociedade acelerada
Burnout é reconhecido como uma doença ocupacional, mas o seu impacto vai além do trabalho. Na segunda reportagem da série Epidemias Contemporâneas, especialistas criticam a cultura que glorifica o excesso e que adoece pelo desempenho *Por Rafael Dantas Desde o início do ano, o Brasil passou a adotar a Síndrome de burnout como uma doença ocupacional. Um reconhecimento tardio, quando 30% dos profissionais brasileiros já enfrentam o esgotamento físico e mental, segundo pesquisa da dados da Anamt (Associação Nacional de Medicina do Trabalho). Mais uma epidemia contemporânea que tem o seu “contágio” a partir de padrões e expectativas de vida cada vez mais desafiadoras, com muita tecnologia e uma cultura que romantiza o cansaço. “Vivemos uma época em que o tempo deixou de ser vivido, passou a ser apenas usado. A lógica da produtividade tomou conta de quase todas as áreas da vida, do trabalho aos relacionamentos, da estética pessoal à presença nas redes sociais”, alerta o psiquiatra Amaury Cantilino. “O ser humano está completamente exposto ao excesso de estímulos, cobranças e tarefas. Mas o pior: esse homem contemporâneo também está exausto por se autoexplorar”. "O tempo deixou de ser vivido, passou a ser apenas usado. A lógica da produtividade tomou conta de quase todas as áreas da vida, do trabalho aos relacionamentos, da estética pessoal à presença nas redes sociais. O ser humano está exposto ao excesso de estímulos, cobranças e tarefas." Amaury Cantilino Ele considera que os sinais de que a sociedade está diante de um problema são evidentes, com o crescimento nos diagnósticos de ansiedade, depressão e burnout. Porém, independentemente dos dados das pesquisas ou de números oficiais, a exaustão já é percebida de forma generalizada, mesmo entre pessoas jovens e saudáveis. “Há uma sensação coletiva de que estamos todos sobrecarregados, tentando dar conta de mais do que é possível”, sintetiza Amaury Cantilino. Uma sobrecarga já enfrentada por Thiago Pedrosa, 30 anos. Durante o auge da pandemia, ele vivenciou um burnout que marcou sua trajetória profissional e pessoal. Na época, ele conciliava o trabalho de designer, em uma rotina intensa, com os estudos universitários, ao mesmo tempo em que sentia a insegurança e o medo generalizado da crise sanitária. O excesso de trabalho, a ausência de propósito e a pressão resultaram em crises de ansiedade e um cansaço extremo. Embora já estivesse em terapia, precisou iniciar tratamento psiquiátrico com medicação para lidar com o esgotamento. “A demanda é infinita. Ela nunca esgota. Você responde, aí chega mais trabalho. Isso gera o sentimento de ser um hamster correndo na rodinha”, explica sobre a percepção da sobrecarga que o levou à doença e que demandou auxílio profissional e remédios para superar. “Depois que a gente cruza a linha [do nosso limite], não tem como voltar, só usando a sua mentalidade. É preciso uma ajuda de outros recursos”. Mesmo diante do agravamento do quadro, Thiago não se afastou do trabalho. O medo de perder a estabilidade financeira e o receio de ser mal interpretado pesaram mais do que o cuidado com a própria saúde. Esse comportamento reflete a armadilha social que associa valor pessoal à produtividade constante. Aos poucos, porém, ele encontrou forças para planejar uma transição de carreira. Com um novo emprego, horários mais saudáveis e menos pressão, conseguiu se reequilibrar e deixar a medicação. A experiência do burnout deixou suas marcas. Desde então, Thiago mantém um cuidado constante sobre sua saúde mental. “Eu acho que o burnout é uma pré-depressão. É uma vigilância quase que eterna para não cair de novo.” "A demanda é infinita. Ela nunca esgota. Você responde, aí chega mais trabalho. Isso gera o sentimento de ser um hamster correndo na rodinha. Depois que a gente cruza a linha [do nosso limite], é preciso a ajuda de outros recursos". Thiago Pedrosa UM PROBLEMA CULTURAL CONTEMPORÂNEO Mais do que uma infinidade de espaços de trabalho estressantes e competitivos, a psicanalista Ana Elizabeth Cavalcanti, do CPPL ( Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem), afirma que a sociedade está inserida em um “ambiente extremamente hostil à vida humana”. Ela remete ao clássico livro Sociedade do Cansaço, do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han para explicar como as pressões antes externas, passaram a ser internalizadas pelo ser humano. “O patrão externo foi substituído por um patrão interno extremamente cruel e rigoroso. Vemos uma sociedade extremamente exigente e pouquíssimo disponível. Isso está nas famílias e no universo social como um todo. A exigência é máxima, mas as condições de trabalho e de lazer são mínimas”, critica a psicanalista. Esse quadro de demandas que sufoca profissionais de diversas áreas leva as pessoas a sucumbirem e se sentirem responsáveis pelos “sucessos não alcançados” na vida voltada para a produtividade e para o consumo. “O burnout é apenas um dos sintomas de um sistema que exige o impossível e culpa o indivíduo pelo fracasso.” Esse padrão não impõe ao indivíduo apenas à autoexigência que gera o esgotamento mas, ainda assim, à glamourização do excesso de trabalho. “A ideia de que estar sempre ocupado, 'sem tempo nem para respirar', é sinal de sucesso. Ser workaholic virou símbolo de força e dedicação. No entanto, pode refletir apenas uma inquietude. O excesso de estímulos, informações e tarefas afeta diretamente a nossa atenção, que vai se tornando cada vez mais fragmentada e superficial”, afirma Amaury Cantilino. Um efeito direto desse glamour do cansaço – um fenômeno cultural e global – é a ausência de descanso. Tudo passa a ser cronometrado e precisa ser produtivo. O momento de tédio, de lazer ou de desconexão passa a ser mais raro e, mesmo assim, acompanhado por culpa. O PREÇO NO ORGANISMO O sofrimento mental e emocional de estar imerso na epidemia do cansaço já seriam motivos suficientes para um sinal de alerta na saúde. Porém, há conexão direta também com outros problemas no organismo. Amaury Cantilino explica que o corpo e a mente estão profundamente interligados. Isso faz com que, inevitavelmente, quando um adoece, o outro também sofre. “O cansaço crônico, seja ele físico, mental ou emocional, pode levar a
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