90 anos do clássico Casa-Grande & Senzala: uma obra ainda atual – Revista Algomais – a revista de Pernambuco

90 anos do clássico Casa-Grande & Senzala: uma obra ainda atual

Ao completar 90 anos, Casa-Grande e Senzala permanece essencial para compreender o Brasil

*Por Rafael Dantas

A obra prima de Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala, completou 90 anos. Inovador na escrita, na metodologia e no conteúdo, o autor e seu primeiro livro seguem alvos de debates dos mais acalorados no País. Criticado e elogiado, o clássico analisou a formação da sociedade brasileira, destacando a influência da miscigenação cultural num período em que se fortalecia o racismo no mundo.

O lançamento de Casa-Grande & Senzala coincide com o ano de chegada ao poder do nazismo. “É o momento em que Hitler ascende ao governo na Alemanha com a proposta de criar uma raça especial, branca, ariana. Aqui no Brasil surge Gilberto Freyre com Casa-Grande & Senzala ressaltando a importância da presença dos afrodescendentes no Brasil, indicando que aquela visão que se tinha do que poderia ser um país com um futuro nefasto ou imprevisto, seria exatamente o contrário. Essa seria a riqueza que o Brasil poderia trazer no contexto da humanidade. Na contramão do pensamento ariano, que passava a predominar na Europa”, analisou o pesquisador Túlio Velho Barreto, na abertura do 1º Seminário do Pensamento Social Brasileiro, promovido pela Fundaj (Fundação Joaquim Nabuco).

O evento mobilizou pesquisadores de todo o País para discutir Por que (ainda) ler Casa-Grande & Senzala 90 anos depois? Como um clássico, o livro que dissertou sobre as interações entre senhores e escravizados, explorando as complexidades do sistema escravocrata e sua influência na identidade nacional, ajudou a explicar o Brasil do início do século passado e hoje contribui para entender os legados deixados por essa formação baseada nas relações familiares patriarcais e na economia da monocultura agrícola.

“A história de contato das raças chamadas superiores com as consideradas inferiores é sempre a mesma. Extermínio ou degradação”, escreveu Freyre, há 90 anos. Embora o autor tenha denunciado a violência da colonização, ele é apontado pelos críticos como alguém que também suavizou a percepção das tensões do sistema escravista que imperou no País por séculos e deixou suas marcas até os dias de hoje na sociedade brasileira.

O sociólogo Jessé Souza, conferencista do seminário promovido pela Fundaj, explicou que o racismo era explícito e predominante mesmo entre os intelectuais no início do século passado. Quando Freyre nasceu, por sinal, havia passado apenas 12 anos da assinatura Lei Áurea, que marcou oficialmente o fim da escravidão no Brasil. O pensador considera que o mestre de Apipucos é um ponto de ruptura desse pensamento no País. “Quem foi que possibilitou transformar esse racismo explícito? Todos os intelectuais, até os anos 1930, eram racistas. Sem exceção. Aí chega Gilberto Freyre, em 1933, e mostra essa relação, em que a cultura negra passa a ser vista como um dos suportes fundamentais da sociedade brasileira”.

INEDITISMOS DE GILBERTO FREYRE

“Freyre é mais progressista do que todos os intérpretes, fora o Florestan Fernandes, que vão existir depois dele”, analisa Jessé Souza, que nomeou Gilberto Freyre como o “pai espiritual do Brasil” pela sua contribuição à compreensão fundadora do País. “Freyre criou a imagem que cada um de nós tem na cabeça, inconscientemente, pré-reflexivamente, quando se fala sobre o Brasil. O que me chamou atenção foi a centralidade do tema da escravidão. Ele é o único que põe a escravidão explanando o fundamento da sociedade brasileira”.

Para celebrar o marco dos 90 anos da obra, que segue revelando o Brasil, o professor de sociologia Cauby Dantas, da UFPB (Universidade Federal da Paraíba), coordenou os trabalhos do Núcleo de Estudos Freyreanos para discutir a importância do livro. “O primeiro elemento de contribuição de Casa-Grande & Senzala é a própria operacionalização do conceito de cultura, que ele aprendeu estudando com Franz Boas (antropólogo alemão, considerado o pai da antropologia americana).Além disso, a obra traz muitas outras inovações, como a própria narrativa, com uma linguagem solta, antiacadêmica, em tom ensaístico, e isso é novo”, explica. Assim como Jessé Souza, Cauby ressalta o ineditismo de Freyre ao fazer um movimento inverso ao pensamento majoritário da época sobre a relação entre as raças. “O elogio e a valorização que ele faz da miscigenação também são inéditos”, completou.

A percepção de Freyre sobre as contribuições dos negros na formação do Brasil, segundo Jessé Souza, provoca uma inibição da visão racista explícita no País, que usará de outros caminhos para se perpetuar nas décadas seguintes. “Quando se proíbe ou se interdita o racismo no espaço público, esse racismo continua. Vai ser usado sob outras mil máscaras”.

A continuidade da escravidão e do seu legado é um dos aspectos do Brasil atual que merece ser observado nessa incursão na obra de Freyre. “De que modo a escravidão continua até hoje?”, questiona Jessé Souza. Apesar de não existir pelourinho em praça pública, nem os trabalhadores andarem algemados, ele observa a continuidade dessa relação em vários aspectos do trabalho no País.

“As pessoas imaginam que escravidão é aquilo que houve nas fazendas do Rio Grande do Sul. Mas isso é uma cegueira enorme. A escravidão está aí, em todo lugar. Precisamos vê-la. Quando se cria uma classe de pessoas condenadas ao trabalho muscular, você está criando escravos. Como é que o fundamento escravocrata continua até hoje sem mudança? Uma sociedade, assim como um indivíduo, só muda com autocrítica. Se você não se autocriticar, vai continuar com outras máscaras”, completou o sociólogo.

Jessé Souza explica que Casa-Grande & Senzala é a obra que explica a gênese da sociedade brasileira, ao relevar não apenas a escravidão, mas ao trazer um aspecto de gênero também. Ele conta que Freyre ressalta a quantidade de mulheres que vêm ao País escravizadas. “Ele vai dizer depois, em Sobrados e Mucambos, que o grande problema do Brasil, mais que o racial, é o de gênero”, destaca. Um passado violento contra as mulheres que continua em vários aspectos disseminado na sociedade brasileira.

A variedade de fontes e de temáticas tratados por Freyre, como a vida privada, o cotidiano e o sexo são outros paradigmas quebrados pelo sociólogo. O pesquisador da UFPB conta que Freyre usava em suas pesquisas recortes de jornais (que só vêm a ser uma prática nas pesquisas nacionais décadas após), apresenta o conceito de família patriarcal como sendo a unidade colonizadora, além de trazer uma abordagem sensualizada no texto.

“A obra fala muito de sexo, em detalhes e em um tom picante. Tudo isso era novidade à época. São muitos elementos inéditos que essa obra traz para a interpretação do Brasil. Gilberto tinha consciência desse ineditismo. Por isso que Casa-Grande & Senzala teve esse impacto tão forte ao ser lançado há 90 anos e muitos desses aspectos continuam sendo novos até hoje. Falamos muito em gênero, família, sexualidade, estudos da vida privada, do cotidiano, das mentalidades. Isso está tudo em Casa-Grande & Senzala, que é uma abordagem empática da formação brasileira, um anúncio de uma sociologia das emoções”, avalia Cauby Dantas.

CRÍTICAS A OBRA

O sociólogo considera que apesar de haver muitas polêmicas envolvendo Casa-Grande & Senzala, a maioria das críticas se devem mais aos posicionamentos políticos do cidadão Gilberto Freyre, do que a aspectos propriamente inerentes de sua obra. “À medida que Gilberto envelhecia e ficava mais conservador no campo da política, isso também reverberava nas críticas da sua obra. Talvez a mais batida, mais repetida, seja a pretensa criação do mito da democracia racial (de uma harmonia entre raças no País). Essa crítica é muito presente”.

O pesquisador explica que esse termo, “democracia racial”, não está presente na obra. Apesar disso, ele considera que é uma crítica pertinente a Casa-Grande & Senzala, pois na operação dos conceitos de equilíbrios e antagonismos na sociedade, o livro dá margem para esse tipo de leitura. “O problema é quando se reduz uma obra dessa magnitude, esse amplo painel sobre as trocas culturais que fundaram o Brasil, negros, índios, europeus, a apenas um dos seus aspectos, a questão da democracia racial. Então, essa crítica, mesmo sendo pertinente e que deve ser levada a sério, termina por se reduzir a um aspecto: de que Gilberto pinta um paraíso racial no Brasil”, conta Cauby Dantas.

No entanto, lá estão descritas as violências na relação entre a Casa- -Grande e a Senzala. Os relatos dos senhores que mandavam matar os escravos, que eram atirados nas caldeiras dos engenhos, dos enciumados que furavam os olhos das escravas bonitas e quebravam seus dentes. As violências não estavam escondidas.

Outra crítica presente na obra, segundo Cauby, é a ausência de conclusões. Um questionamento que está presente não apenas em Casa-Grande & Senzala, mas em suas outras obras. O seu clássico, na verdade, integra uma trilogia com Sobrados e Mucambos e Ordem & Progresso. Uma obra abria caminho para a seguinte. Haveria ainda um quarto livro, “Jazigos e Covas Rasas”, que nunca foi publicado.

CELEBRAÇÃO DOS 90 ANOS

A Fundação Gilberto Freyre, responsável pela gestão do acervo do escritor pernambucano e da Casa-Museu Magdalena e Gilberto Freyre, onde ele morou, está focada na celebração dos 90 anos da sua obra seminal. “A Fundação promove de forma contínua diversas ações voltadas para o acesso e debate de ideias em torno da obra freyriana. Naturalmente que nossos esforços, no momento, estão voltados para o livro Casa-Grande & Senzala, pelo marco dos 90 anos da edição, comemorado em dezembro. Ao longo de 2023, realizamos uma leitura coletiva da obra com os integrantes do Núcleo de Estudos Freyrianos, guiada pelo professor e pesquisador Cauby Dantas. Ainda em dezembro, lançaremos uma edição comemorativa pelos 90 anos do livro em parceria com a Global Editora. Essa edição trará um terceiro caderno de imagens exclusivo”, anuncia Jamille Barbosa, diretora executiva da Fundação Gilberto Freyre.

As comemorações e debates não se encerram neste mês de dezembro, mas vão se estender no próximo ano. “Em 2024, seguiremos celebrando os 90 anos da obra mais emblemática de nosso patrono. Haverá atividades em parceria com instituições como a Academia Pernambucana de Letras e o Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, além da previsão de realização de um seminário em março, mês em que é comemorado o aniversário de nascimento de Gilberto Freyre”, completa Jamille Barbosa.

A Casa-Museu Magdalena e Gilberto Freyre, que fica em Apipucos, é um destino que precisa ser mais conhecido pelos pernambucanos e pelos turistas que chegam ao Estado. O espaço preserva toda a obra de Freyre, distribuídas nos diversos cômodos do imóvel, expõe as inúmeras condecorações com que ele foi agraciado e guarda os elementos que compunham a vida privada da família.

Os quadros presenteados por grandes pintores brasileiros ou pintados pelo próprio Freyre, as fotos dos familiares, os espaços onde escrevia ou recebia ilustres visitantes estão expostos em uma visita guiada que vale muito a pena conhecer.

A obra de Freyre continua a incomodar, revelando raízes de um Brasil que ainda guarda muitos legados de suas origens. As perpetuações da casa grande e da senzala na sociedade brasileira, que se expressam na paisagem das cidades, permanecem questões a serem compreendidas na obra fundadora do sociólogo pernambucano.

*Rafael Dantas é jornalista e repórter da Revista Algomais (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)


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