*Por Eduardo Martins
Apesar do termo Jornalismo em Quadrinhos ter sido cunhado pela primeira vez pelo jornalista e ilustrador maltês Joe Sacco, em 1994, quando ele publicou Palestina, considerado o marco inicial desse gênero, é comum alguns especialistas atribuírem o pioneirismo ao sueco Art Spiegelman, que lançou em 1991, “Maus”, obra vencedora do prêmio Pulitzer, a maior premiação jornalística do mundo. Um simples, porém controverso jogo de palavras podem categorizar de diferentes formas cada uma delas. Palestina, uma longa reportagem em quadrinhos. E “Maus”, uma obra biográfica baseada em entrevistas reais.
A verdade é que o jornalismo e a ilustração já estão entrelaçados há muitíssimo tempo. A primeira aparição de desenhos gráficos para ilustrar notícias aconteceu em 14 de Maio de 1842, no periódico “The Illustrated London News”. De tiragem semanal, o jornal foi o primeiro a recrutar em uma mesma redação, artistas e repórteres. Em 16 páginas, com ilustrações gravadas em madeira, a publicação veio com a cobertura do primeiro baile mascarado da Rainha Vitória, eleição presidencial nos Estados Unidos e extensas reportagens de crimes e resenhas de peças e livros. Essa primeira edição vendeu 26 mil cópias, um sucesso na época.
Já em 1869, foi lançada a primeira história em quadrinhos publicada no Brasil, na revista “A Vida Fluminense”. As “Aventuras de Nhô Quim” ou “Impressões de Uma Viagem à Corte”, do escritor e desenhista ítalo-brasileiro Angelo Agostini. Dividido em 16 quadros ilustrados e com textos abaixo de cada um deles, na época ainda não existiam os balões, ele conta a história de Nhô Quim, um caipira que se muda do interior para a cidade do Rio de Janeiro. Mesmo utilizando o humor e a caricatura em seus trabalhos, Agostini mostrou como ninguém os costumes daquela época, o contraste da civilização entre o meio rural e urbano, se tornando o ilustrador mais importante do Segundo Reinado.
Hoje em dia, infelizmente, os cartunistas brasileiros são relegados em uma meia página no caderno de cultura de algum jornal impresso local. Contudo, eles já fizeram bastante barulho com seus desenhos em décadas atrás, tornando-se porta-vozes da indignação de toda uma sociedade reprimida. Entre 1969 e 1991, O Pasquim foi o mais importante semanário alternativo e de oposição política do Brasil. Em seu auge, atingiu a marca de 200 mil exemplares vendidos, um fenômeno no mercado editorial brasileiro. A lei de imprensa, que instaurou a censura prévia dos meios de comunicação na ditadura militar surgiu por causa de uma entrevista da atriz Leila Diniz feita pelo cartunista Jaguar e os jornalistas Tarso de Castro e Sérgio Cabral na edição do Pasquim.
Em contrapartida, mesmo bebendo da fonte cartunesca, o jornalismo em quadrinhos de formato mais longo, difundido pelo quadrinista e jornalista Joe Sacco, em meados de 90, normalmente abrange várias páginas e tem como objetivo explorar um tópico e não apenas satirizá-lo, geralmente usando: entrevistas reais, mapas, evidências estatísticas, fatos históricos e diagramas.
Na coluna de hoje, vamos trazer 10 dicas essenciais para você mergulhar de cabeça nesse gênero dos quadrinhos. Um pouco sobre alguns autores e obras que mudaram a forma como se faz o jornalismo e os quadrinhos como nos costumamos. E ainda um bônus com 5 sites específicos com excelentes quadrinhos-reportagens no formato digital.
Para ficar mais fácil, vamos dividir em 3 grupos distintos. São eles:
I – Autores que reportam, escrevem e ilustram toda a obra.
Joe Sacco
Sacco foi o primeiro jornalista de quadrinhos a ganhar o prestigioso Prêmio Ridenhour pela reportagem investigativa na novela gráfica, “Notas Sobre Gaza”. Sua obra mais conhecida, “Palestina – Uma nação ocupada”, é fruto de uma investigação in loco do conflito entre israelenses e palestinos e ganhou o prêmio American Book Awards em 1996. Ambas foram lançadas aqui pela Editora Quadrinhos na Cia.
Dan Archer
O jornalista gráfico Dan Archer, nomeado ao Prêmio Eisner na categoria Não-Ficção, utiliza os quadrinhos para criar reportagens, principalmente atreladas aos direitos humanos, em situações em que o equipamento de vídeo ou fotográfico se tornam inadequados ou proibidos. Em 2012 lançou o quadrinho “Graphic Journalism on Human Trafficking in Nepal”, um projeto investigativo que reporta o tráfico de pessoas no Nepal.
Carolina Ito
A jornalista e quadrinista Carolina Ito é autora do quadrinho-reportagem Estilhaço: uma jornada pelo Vale do Jequitinhonha, projeto experimental para conclusão do curso de Jornalismo que mostra a vida dos moradores da região do Vale do Jequitinhonha, localizada a nordeste de Minas Gerais. Entre outros trabalhos, ela mantém desde 2014 o blog Salsicha em Conserva, onde concentram-se um apanhado de reportagens em quadrinhos que ela produziu para sites e revistas, muita deles para Revista Trip.
Colaborações entre jornalistas e desenhistas
Extraction!: Comix Reportage, de Dan Dawn Paley, Carlos Santos, entre outros
Uma antologia em quadrinhos a respeito de atividades criminosas de empresas de mineração produzida por um time de premiados jornalistas e artistas de quadrinhos. Dividido em 4 partes, as expedições relatam os impactos que essas indústrias estão causando nas comunidades e ecossistemas. Um magnífico e corajoso trabalho que tem a assinatura de nomes como: Dawn Paley, Tamara Herman, Jeff Lemire, Phil Angers e Carlos Santos.
Brought to Light, de Alan Moore, Bill Sienkiewicz, entre outros
Alan Moore reconstruiu a forma como se escrevia quadrinhos de super-heróis na década de 90, com obras como “V de Vingança”, “Watchmen” e “Batman: A Piada Mortal”. Embora todas estejam carregadas com política, filosofia e alguns distúrbios sociais, essas obras são fictícias. Porém, uma obra pouco conhecida do Mago dos Quadrinhos, “Brought To Light”, em parceria com o talentosíssimo desenhista de quadrinhos Bill Sienkiewicz, mostrou um novo Alan Moore, baseado em fatos reais, contando a história de um agente da Central de Inteligência Americana (CIA) e o envolvimento da agência na Guerra do Vietnã e com figurões como Augusto Pinochet e Manuel Noriega.
São Francisco, de Gabriela Güllich e João Velozo
A jornalista e quadrinista Gabriela Güllich e o fotojornalista João Velozo passaram 15 dias nas cidades que cortam todo o Eixo Leste da Transposição do São Francisco para abordar 3 aspectos através da narrativa gráfica: a seca, a obra e a água. Com 108 páginas que misturam quadrinhos e fotografias, São Francisco pode ser encontrado no site da editora Ugra Press, que também possui outro quadrinho-jornalístico brasileiro, Parque das Luzes, da jornalista e quadrinista Cecilia Marins, uma reportagem em HQ sobre prostituição em São Paulo.
Socorro! Polícia! Um Quadrinho Sobre o que a PM Sofre e o que Sofremos com Ela, de Amanda Ribeiro e Luiz Fernando Menezes.
O título do quadrinho foi o pontapé inicial para tentar compreender os números dessa guerra urbana. Os jornalistas Amanda Ribeiro, da Folha de São Paulo e Luiz Fernando Menezes, do Aos Fatos entrevistaram dezenas de policiais militares e especialistas em segurança pública, leram livros e artigos sobre o assunto e exploraram pesquisas e bancos de dados sobre a instituição. Qual a real dimensão e os motivos por trás de números tão alarmantes?
III – Quadrinhos de não ficção, voltados para tópicos históricos, literários ou científicos mais amplos.
Persépolis, de Marjane Satrapi
De tudo que foi indicado até agora, se for para escolher uma obra para iniciar a sua leitura neste gênero, eu indico “Persépolis”. A história em quadrinhos autobiográfica escrita e desenhada por Marjane Satrapi retrata sua infância até seus primeiros anos de vida adulta no Irã, durante e após a Revolução Islâmica. O equilíbrio entre o humor e o drama, com forte carga política, social e religiosa, “Persépolis” continua emocionando novos leitores, depois de mais de 15 anos desde do seu lançamento em francês. Traduzida em vários idiomas, incluindo inglês, espanhol, catalão, português (Cia das Letras), italiano, grego, sueco, a obra já vendeu mais de 2 milhões de cópias em todo o mundo. Existe uma adaptação em animação da obra que também vale a pena conferir.
Andre the Giant: Life and Legend, de Box Brown
Publicado em 2014, “Andre the Giant” conta a história do lutador de wrestling Andre Roussimoff, uma figura gigante, que media 2,20m de altura e pesava cerca de 236 Kg. O que fez sua fama, também trouxe consequências irreparáveis. André sofria de gigantismo e morreu em 1993, aos 46 anos de idade. Box Brown coletou registros históricos e depoimentos de figuras do mundo do wrestling, incluindo Hulk Hogan e de parceiros em filmes, como Billy Crystal. A obra ficou 3 semanas na cultuada lista de Graphic Novels mais vendidas do New York Times. “Andre the Giant” ainda continua inédita no Brasil, porém se você quer conhecer mais sobre Box Brown, a editora Mino lançou em português outra obra do autor, “Cannabis: A Ilegalização da Maconha nos Estados Unidos”, que também vai na pegada documental baseada em acontecimentos históricos.
O Elísio: uma jornada ao inferno, de Renato Dalmaso
Um deslumbre visual e narrativo baseado na história real do pracinha brasileiro Eliseu de Oliveira, que serviu na Segunda Guerra Mundial representando o país junto à Força Expedicionária Brasileira, na luta contra as forças nazifascistas na Itália e Alemanha. Lançado no final de 2019 pela editora Avec, “Elísio” tinha que fechar essa lista de indicações. Um trabalho de pesquisa primoroso do autor, utilizando a tese do historiador Douglas Almeida como insumo para criar o roteiro, através de relatos do próprio Eliseu, em entrevista concedida pós-guerra ao jornalista Altino Bondesan. Essa graphic novel entrou na lista de melhores quadrinhos do ano de diversos jornalistas e críticos de quadrinhos. E suspeito, que também estará em listas dos melhores da década.
E a grande menção honrosa, claro que é…
Maus, de Art Spiegelman
Aqui está o quadrinho que mexeu muito com a minha cabeça quando li pela primeira vez. Já tinha assistido os principais filmes feitos sobre o período do nazismo, entretanto nada disso me deixou mais consternado do que “Maus”. Em dezembro de 1980, o cartunista americano Art Spiegelman começou a publicar as experiências de seu pai como judeu polonês e sobrevivente do Holocausto na série “Maus”. A história é retratada por meio do uso de alegorias antropomórficas – ratos para judeus e gatos para nazistas, usando o gênero para lidar com questões reais de xenofobia, tortura e guerra. Duvido você não se emocionar.
05 sites com quadrinhos digitais focados em reportagens e fatos reais.
O primeiro link trata-se do site nacional especializado em quadrinhos-reportagens, conhecido como Revista Badaró. Os demais são, respectivamente: dois sites americanos, uma revista online francesa e outra italiana. Todos feitos de forma colaborativa entre jornalistas e quadrinistas.
Cinco anos depois que cartunistas foram executados em Paris e outro preso no Irã, os quadrinhos mostram todo o poder que possuem para adentrar detalhadamente em questões políticas e sociais como nunca antes visto no jornalismo tradicional. Os pioneiros, Joe Sacco e Art Spiegelman, abriram as portas para uma nova geração de talentos, que misturam diversas metodologias para fazer uma nova forma de jornalismo e quadrinhos: uma chance de satirizar escancaradamente a política do seu tempo e retratar o cotidiano nu e cru.
Sobre a Gibitown – Parafraseando Chico Science, a cidade do mangue ergueu uma nova e assim surge a Cidade do Gibi. O assunto aqui é quadrinhos. Marvel, DC, Image, editoras nacionais, quadrinhos independentes. Do clássico ao contemporâneo, vamos trazer o que existe de melhor no universo da nona arte em Pernambuco, no Brasil e ao redor do mundo. Sem distinção. A coluna é escrita pelo empresário e jornalista pernambucano Eduardo Martins. Para envio de materiais, sugestões e críticas, mande e-mail para edmartins@gmail.com