“É preciso criar atividades escolares que permitam os usos pedagógicos dos celulares”. – Revista Algomais – a revista de Pernambuco

“É preciso criar atividades escolares que permitam os usos pedagógicos dos celulares”.

Com a sinalização do Governo Federal de banir smartphones nas escolas, o head de pedagogia da PROZ Educação e professor da CESAR School e da UFPE, Luciano Meira, ressalta que o maior problema é o acesso dos alunos às redes sociais e às Bets e que os dispositivos podem auxiliar na criação de aulas que encantem os estudantes.

Banir ou não o celular das salas de aula? O debate se espalhou no Brasil motivado por pais preocupados com o uso constante que seus filhos fazem desses dispositivos e de pesquisas que mostram os prejuízos que esses onipresentes aparelhos causam aos alunos, como a desconcentração. Países como a Finlândia – tida como exemplo de qualidade na educação – e estados como o Rio de Janeiro proibiram o uso nas escolas. O Governo Federal também sinalizou que pretende propor uma lei vetando os smartphones do ambiente escolar. Mas o professor da CESAR School e head de pedagogia da PROZ Educação faz algumas ponderações sobre o assunto nesta entrevista concedida a Cláudia Santos.

A começar do fato de que muitos pais se sentem impelidos socialmente de presentearem seus filhos com um celular. “Existe um constrangimento social, nas classes A e B, para que as crianças tenham um smartphone, o que não é uma obrigatoriedade, gente. Atenção! Não temos que nos render a isso tão facilmente”, adverte Luciano, que também é professor do Departamento de Psicologia da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco). Ele argumenta, ainda, que muito dos danos provocados pelos dispositivos móveis nas crianças e jovens deve-se ao acesso às redes sociais e, mais recentemente, às bets. Sem vilanizar a tecnologia, Luciano Meira propõe um olhar diferenciado a esses dispositivos nas escolas, sugerindo um uso pedagógico que permita aulas criativas, lúdicas que despertem o interesse dos alunos.

Qual a sua opinião sobre a intenção do Governo Federal de banir o celular da sala de aula?

Em primeiro lugar, não temos ainda muitos detalhes sobre como se dará esse banimento e que tipo de regulamento mais específico será proposto. Acredito que, na pior das hipóteses, esse tipo de coisa serve para abrir o debate exatamente como estamos fazendo agora. Eu espero que o governo envie um projeto, eu não acredito que será um decreto simplesmente, mas que abra consulta pública e que tenha algumas condições de usos pedagógicos apropriados dos smartphones e demais dispositivos móveis na escola.

Projetos dessa natureza já foram aprovados e implementados. Mas a implementação envolve a capacidade dos governos de monitorar a aplicação da lei, isso não é nada fácil. Mas, de qualquer forma, serve como um respaldo legal para aqueles municípios ou mesmo redes específicas de ensino que desejarem seguir nessa direção. Porque, afinal de contas, isso devia ser uma decisão local, dependendo do que está acontecendo em determinados locais, então serve como respaldo.

Países como Grã-Bretanha, França, Itália, Holanda, Canadá e outras grandes potências têm seguido nessa mesma direção. O problema do celular na escola não são os dispositivos em si mas o que eles carregam, especialmente o acesso às redes sociais. E agora há as apostas de azar e coisas dessa natureza. Algumas pessoas pensam que é a luminosidade da tela que estava trazendo problemas, não tem nada a ver com isso, mas o envolvimento das nossas crianças e jovens com determinados tipos de algoritmos, especialmente aqueles de captura da atividade das pessoas por tempo prolongado na forma de redes sociais – TikTok e Instagram especialmente – e o possível vício em apostas de azar.

Minha resposta acabou sendo longa, mas é porque existe uma indefinição no ar, por um lado, a gente não sabe exatamente o que o governo vai propor. Ainda se espera que, pelo menos, como é da tradição, os usos pedagógicos sejam permitidos. Na pior das hipóteses, regulamentações como essa trazem à tona o debate que é absolutamente necessário. E o é porque as famílias estão pedindo [a proibição do uso de celular nas escolas], e pesquisas tendem a apontar o engajamento excessivo com esses dispositivos e o que eles provêm, correlacionando, inclusive, com aumentos de ideação suicida.

Que resultados essas pesquisas trazem sobre o engajamento excessivo de adolescentes e crianças com os dispositivos móveis?

Os resultados são às vezes controversos. Não há dúvida de que certas pessoas acabam por usar o dispositivo e as ofertas que ele traz como um ambiente de degeneração do selfie, mas não se sabe, por exemplo, se o dispositivo e as redes sociais causaram isso ou se o sujeito tinha já tinha uma propensão, e as redes sociais expressam essa condição individual. Os estudos precisam estabelecer uma causalidade mais forte, e não apenas uma correlação, precisam dizer se são os algoritmos das redes sociais que causam isso ou é a forma a que os jovens são expostos.

Por exemplo, alguns estudos mostram uma correlação da idealização do corpo nas redes sociais, especialmente em meninas, influenciando-as a terem um olhar acentuadamente crítico sobre sua própria existência corpórea e isso provoca um estado de saúde mental deteriorado. Mas esses estudos não representam uma causalidade ainda. Então, há uma indefinição do ponto de vista da ciência.

A prática médica, sob a ótica da pediatria, tem sido muito enfática em afirmar que deveríamos, pelo menos, graduar os usos de telas de acordo com as idades das crianças. Há uma variação em relação à idade, alguns pediatras dizem que é preciso evitar telas até 8 anos, outros até 2 anos, outros até 5 anos de idade. A Unesco define que esses dispositivos não são apropriados para uso contínuo de crianças. Meu filho de 2 anos, por exemplo, adora música, eu coloco para ele ouvir via streaming, às vezes ele pede para ver, no celular, a figura do disco que está tocando, eu mostro, ele só olha e segue ouvindo a música.

Mas hoje existe um constrangimento social, nas classes A e B, para que as crianças tenham um smartphone, o que não é uma obrigatoriedade, gente. Atenção! Não temos que nos render a isso tão facilmente. Entendo que está todo mundo muito ocupado, e as crianças pequenas têm certa fascinação pelo vídeo, isso gera um hiperengajamento. Mas eu tenho um profundo respeito pela ansiedade das famílias. Muitas não sabem o que fazer em relação ao uso dos celulares, então eu pergunto: “por que você deu um dispositivo para a criança?”

E qual é a relação ou consequência do uso dos dispositivos por crianças pequenas?

Os vídeos curtos de redes como o TikTok achatam a realidade. Por exemplo, um vídeo engraçado de 15 segundos, capturado de um documentário que tem 30 minutos, gera um hiperfoco em quem assiste. Em seguida a criança passa para outro vídeo curto e aí acontece um banho de dopamina no cérebro. São posts de dopamina, frações da realidade em que não se constrói um sentido, a pessoa é apenas impactada por esses slides da realidade.

A criança fica continuamente sendo capturada e não aprende nada porque não há uma narrativa consistente, fica só assistindo vídeo após vídeo. É assustador. É contra isso que temos que trabalhar. É preciso remodelar toda a escola. Há quem fale em microlearning, que são capsulas com narrativas menores de conteúdos de disciplinas como matemática. Acho que isso não dá certo, prefiro narrativas mais consistentes, engajadas, mais problematizadas em que as crianças entendam os problemas que estão resolvendo. Aqui há muitas escolas com práticas diversificadas, metodologias ativas, no ensino fundamental e médio. A escola está mudando, não na velocidade necessária, mas está mudando.

As pesquisas mostram alguma relação entre o uso do celular e a concentração dos alunos na aula?

Sim. Se é tudo liberado, não há disciplina, o uso não é pedagógico. A criança tem acesso, porque os pais lhe deram um dispositivo móvel e, se ela tem redes sociais à disposição, não se engaja na aula. Existe uma crise de engajamento na escola, uma crise de atenção, porque o papel da escola não foi bem desenhado. Assim, as crianças não se engajam nas atividades escolares porque simplesmente a escola parou no tempo, está totalmente tediosa. Isso tem mudado, mas não na velocidade que deveria.

Então, se uma aula extremamente analógica é um discurso ultrapassado para o adulto, imagina para as crianças que têm uma atenção distribuída por muitas outras coisas. Como ainda não há instrumentos de engajamento adequados na escola, a criança se dispersa, vai fazer outra coisa, e uma dessas outras coisas é o celular, não é como antigamente quando “a outra coisa” que se fazia, na sala de aula, era a conversa paralela ou ler gibi. O smartphone permite à criança sair da sala de aula.

Professores mais criativos vão capturar esse momento e fazer exercícios que envolvem esse dispositivo. É preciso criar atividades escolares que permitam isso, ou seja, os usos pedagógicos dos dispositivos móveis, que é a ideia contrária ao uso que o estudante faz quando sai mentalmente da sala de aula para se engajar em outras coisas. O papel da escola é definitivo. Inclusive, a educação midiática é uma das competências da BNCC (Base Nacional Comum Curricular).

E é uma competência importantíssima hoje com tanta desinformação e fake news, não é?

Uma pesquisa recente da fundação Telefônica Vivo mostrou que somente um terço, de quase mil jovens pesquisados, eram capazes de distinguir fato de fake news em redes sociais. Então essa suposta geração de nativos digitais é composta, na verdade, de ingênuos digitais, porque, quando a informação circula em determinados formatos de mídia, tendem a incorporá-la como verdade. Por isso, educação midiática é importante. E como faremos isso sem o uso do celular? Muitas vezes, é na escola o único momento em que as crianças, talvez a maioria delas, têm – ou deveriam ter – acesso a instrumentos da tecnologia digital.

Se você proíbe isso, aumenta ainda mais a desigualdade que já existe em nosso País, porque as crianças de classe média, A e B, vão ter seus smartphones e usar em outras situações. Então não é simples, é preciso reformular a missão da escola, não só em torno da educação midiática, mas também elaborando estratégias de engajamento para os conteúdos, práticas de aprendizagem da escola em todas as disciplinas e incorporar as tecnologias digitais. Isso requer uma atenção, por exemplo, sobre como incorporar a inteligência artificial generativa em práticas educacionais. É uma tecnologia emergente, a escola está dentro dessa cultura e não pode se safar. É o papel da escola traduzir a cultura e incorporá-la de maneira mais ampla.

Um dos argumentos de quem é favorável à proibição do uso dos celulares nas escolas é a necessidade de interação humana. O que você acha?

Posso fazer uma atividade ou plano de aula com dispositivos móveis para enfatizar relações humanas. Não é difícil. Ou posso retirar os dispositivos móveis, e as pessoas se sentirem abandonadas e nem um pouco relacionadas a outras pessoas. O problema não é o dispositivo, mas o que tem levado as pessoas a se protegerem atrás dos algoritmos. É uma suposta proteção.

Os algoritmos estão capturando a pessoa para um outro mundo horrendo de vício e, principalmente, de sequestro da sua capacidade crítica e de reflexão. Eles funcionam como uma enchente onde você é simplesmente carregado. Se as pessoas se mantiverem cada uma em seu próprio fluxo de uso, as relações presenciais serão enfraquecidas. Na sala de aula, é preciso promover a brincadeira pois, se eu retiro o celular e continuo a dar aula com cada aluno em sua banca, o que eu fiz pelas relações presenciais? Nada. As pessoas vão continuar isoladas umas das outras.

A pandemia também contribuiu para esse isolamento?

Os dispositivos móveis foram essenciais na pandemia, criaram vínculos, as pessoas se aproximaram nessa época. Uma pesquisa nos Estados Unidos mostrou como os estudantes aumentaram sua confiança nos professores a distância porque, na pandemia, estavam se sentindo mais tensionados do ponto de vista das restrições sociais, e os dispositivos permitiam, durante algumas horas do dia, um fluxo relacional muito intenso. Essa confiança voltou a cair após a pandemia. Segundo a pesquisa, antes da pandemia, apenas 20% dos alunos confiavam nos seus professores. Durante a pandemia, chegou a 45% e, após, no presencial, retorna aos 20%, o que é uma tragédia, porque o conhecimento só se dá num ambiente de confiança.

Quando o uso pedagógico dos dispositivos é bem-feito, que resultados produz?

Por princípio, uma aprendizagem mais significativa. Os estudantes se engajam. Eu trabalhei com o educador Paulo Blikstein, que tem um laboratório de estudos das aplicações de cultura maker na escola. Há cinco anos, visitei uma das escolas em que ele aplica o método, na Califórnia, e vi exemplos impressionantes, como o ensino de lançamento balístico em física, algo complicado que envolve equações.

Os alunos aprendiam construindo catapultas de verdade, pesquisavam no celular, entravam na internet, desenhavam, redesenhavam, erravam bastante e o professor ajudava. É esse tipo de atividade que mergulha as crianças e jovens em experiências de aprendizagem, desenvolve autonomia, competências diversas relacionadas, não apenas ao campo de conhecimento alvo, mas competências colaborativas de pensamento crítico. E tudo isso pode ser acompanhado de usos significativos de internet, de inteligência artificial generativa, para além do ensino das fórmulas como era feito antigamente.

Que possibilidades a IA proporciona na sala de aula?

Já há muitas possibilidades, desde coisas triviais, assessorando o professor em atividades que ele já faz, como a produção de slides e revisão dos planos de aula. Isso não vai dar menos trabalho, na minha opinião, vai dar um pouco mais, mas vai enriquecer. A IA não vai lecionar no lugar do professor, ele vai ter que fazer suas atividades, mas refletindo sobre elas. Também há o uso pelos próprios estudantes na produção de ensaios, mídias, pesquisas. Isso muda a forma como o aluno deve ser avaliado.

Por exemplo, eu não pediria apenas para que ele escrevesse um ensaio sobre Machado de Assis na linguagem do autor com ajuda da IA. Eu diria para que o aluno defendesse essa produção sobre Machado de Assis, feita com IA, a partir da visão de João Cabral de Melo Neto que ele leu em outro livro. Então deve-se diversificar as formas de avaliação para contemplar essas novas formas de produção. Tem muita coisa acontecendo.

O Núcleo de Excelência em Tecnologias Sociais da UFAL, por exemplo, está fazendo a IA Desplugada, que é bacana, porque, em muitos lugares, o professor não tem acesso imediato a Wi-Fi. Então, com esse método, ele pede autoria de redações, fotografa-as e, quando tiver acesso a Wi-Fi, sobe as fotos dos textos para uma nuvem onde a IA lê, faz comentários na forma de sugestões para o professor apoiar cada um dos jovens ou indica um erro comum a todos os alunos para que o professor possa trabalhar com a sala inteira. Isso é um uso interessante de IA Generativa.

Você vai participar de algum evento sobre tecnologia e educação no REC ‘n’ Play?

No REC ‘n’ Play, que vai acontecer de 6 a 9 de novembro, teremos uma trilha de IA na educação, quatro debates e uma oficina. Um dos debates é intersetorial, vai contar com a presença do secretário de Educação Alexandre Schneider, um representante do terceiro setor e um CEO de uma rede privada de ensino discutindo IA na educação. Outro debate será sobre IA Desplugada, haverá também debate entre educadores que desenvolveram práticas no Recife e uma oficina de como usar IA Generativa na sala de aula.

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