Arquivos Artigos - Página 17 de 18 - Revista Algomais - a revista de Pernambuco

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Nove dicas de filmes irresistíveis

*Por Beatriz Braga De vez em quando eu penso em Wadjda. Ela queria ter uma bicicleta, mas vivia na Arábia Saudita, onde coisas muito simples são difíceis se você é uma garota. Seu melhor amigo tinha uma magrela e ela só descansaria quando ganhasse dele em uma corrida. Entre a menina de 12 anos e seu objeto de consumo existia um mundo machista e cruel. A bicicleta era seu ato de resistência. O filme é o "Sonho de Wadjda" e me lembro dele frequentemente, quando penso nas barreiras que enfrentamos no Ocidente por sermos mulheres. Visualizo nelas a bicicleta, penso na persistência da garota árabe e recarrego meu otimismo. Do mesmo jeito, toda vez que me enxergo presa às agruras da busca da beleza inalcançável ou da pressão da vida perfeita que nos rodeia, eu penso em Frances. Desajeitada, meio patética e sorridente dançando Bowie nas ruas de Nova York. Ninguém disse que seria fácil, então fazer o que? Bailemos! As personagens dos meus filmes preferidos me cercam no dia-a-dia, me energizam e me inspiram. De vez em quando, por exemplo, me encontro no carro com Thelma e Louise, naquela estrada revolucionária, afugentando os machismos encontrados pelo caminho. São tantas mulheres poderosas que me rodeiam, não apenas na vida real, mas na ficção também. Por isso decidi apresentar uma lista de filmes que me acompanha, quem sabe algumas personagens vocês ainda não conhecem e possam virar suas parceiras também. 1 - O SONHO DE WADJDA (2012) Foi o primeiro filme produzido dentro da Arábia Saudita e tem uma mulher como diretora, Haifaa A-Mansour. Wadjda é a garota que quer a bicicleta verde e tem atitudes que são pequenas revoluções no seu dia a dia, tais como usar tênis e ter um melhor amigo. O filme é a visão da vida das mulheres árabes aos olhos de uma garota que ainda está aprendendo o lugar que reservaram para ela. Ela não tem nada a ver com o mundo em que vive e isso é lindo, inspirador e delicioso. Um filme que você não verá o tempo passar e talvez leve para sua vida como eu fiz. 2 - TRANSPARENT (2014) Existe vida além do Netflix! O melhor seriado lançado nos últimos tempos é produção da Amazon (disponível no Amazon Prime Video) e já está na quarta temporada. Recomendo que você não fique mais nem um dia sem assisti-lo. A trama conta a história de um pai de três filhos, Morton, que decide assumir a identidade na qual se reconhece, Maura. O começo não é fácil, mas o relato delicado, sensível e divertido do dia a dia da família vai mostrando a evolução dos personagens, que vão confrontando suas próprias sexualidades e preconceitos. "Transparent" (perceba o jogo de palavras) fala sobre família, autoconhecimento, coragem, afeto e amor. Não lembro de nenhum outro seriado que tratou o tema tão bem como esse. Além de importantíssimo, é uma série leve e deliciosa de assistir. Vida longa à produção! 3 - SHE´S BEAUTIFUL WHEN SHE´S ANGRY (2014) Um documentário sobre as mulheres corajosas dos anos 1960, que fizeram parte da segunda onda do movimento feminista. O título é uma menção à forma condescendente com que somos tratadas em nossas lutas diárias, que ainda persiste neste século, assim como muitas das pautas retratadas no filme. O documentário é uma ótima introdução a nomes importantes da briga pelos direitos femininos. Além de ser uma lembrança de que avançamos muito por conta dessas mulheres e, em memória de suas lutas e esforços, é preciso persistir e continuar lutando. Disponível no Netflix. 4 - A MULHER MAIS ODIADA DOS ESTADOS UNIDOS (2017) Esse não é um dos melhores filmes que já vi, mas o considero bem importante, principalmente para nós, brasileiros. Se você tiver um tempinho, conheça a história de Madalyn Murray O’Hair, que militou em favor da causa ateísta, tornando-se odiada por muitos cristãos nos Estados Unidos. Um assunto que deveria ser discutido no nosso país, mas é deixado de lado. Enquanto isso vemos a religião tomar o lugar da política de forma muito perigosa. Madalyn foi a criadora da associação Ateus Americanos e conseguiu feitos como acabar com a oração matinal e a leitura da Bíblia das escolas onde vivia. A mulher decidiu agir quando seu filho disse uma frase que volta e meia me vem à cabeça: “Você sempre diz o que há de errado com as pessoas, mas nunca faz nada a respeito. Você só reclama”. Disponível no Netflix. 5 - FRANCES HA (2012) Frances já não é tão nova e ainda não tem um rumo certo na vida. Desajeitada, muito bem humorada, se mete em situações desastrosas e patéticas, sem perder a vocação para sonhadora e o sorriso no rosto. A protagonista vai aprendendo que os planos que tinha nem sempre foram os mais certeiros, ao mesmo tempo em que o resto das pessoas parece estar com o futuro todo organizado. A trilha sonora é maravilhosa, a protagonista é adorável e acho que, em algum momento, é sempre possível nos identificarmos com Frances. Uma comédia com toques dramáticos, amável e inspiradora. A vida nem sempre vai “dar certo”, mas Frances nos lembra que o importante é não perder o gingado. Disponível no Netflix. 6 - AS SUFRAGISTAS (2015) Estrelado, dirigido e produzido por mulheres. "As Sufragistas" conta a história do grupo de mulheres britânicas que lutou contra o sistema machista inglês no começo do século passado. Elas sabiam que eram dignas do voto e resolveram lutar por isso, mesmo que significasse uma vida de prisões, perseguições e sofrimentos. Tudo para que, hoje, esse direito também seja nosso. Inicialmente pacífico, o movimento recebe respostas truculentas da polícia e responde na mesma moeda. “A guerra é a única coisa que o homem ouve. Vocês nos bateram e nos traíram e agora não nos sobrou mais nada”, diz a protagonista, Maud Watts. Quando o filme acaba, a tela em preto é um soco no estômago. Sobe uma lista com datas nas quais o sufrágio feminino foi

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Meninos também podem ser presidentes? (por Beatriz Braga)

*Por Beatriz Braga A Islândia é considerado o melhor lugar do mundo para ser mulher. Não coincidentemente, foi o primeiro país do planeta a eleger uma presidente, Vigdís Finnbogadóttir. Depois de algum tempo do seu governo, um garoto se aproximou da dirigente e perguntou “meninos também podem ser presidentes quando crescerem?”. Ouvi a história na palestra da empresária islandesa Halla Tomasdottir. A plateia ri, claro. A inocência do garoto que ainda não conhece o mundo é tragicômica, mas traz a beleza do nosso ecossistema perfeito. Aprendemos pelo exemplo. Lembrei do menino e da presidente ao ver a série Big Little Lies (HBO) - uma ótima dica para sua semana. Alerta spoiler! Em uma das várias histórias paralelas da trama, uma menina é agredida no colégio e as mães tentam descobrir quem é o pequeno ofensor. As suspeitas recaem sobre Ziggy, criado por uma mãe solteira, vítima de estupro. A herança biológica, aparentemente, estaria latente em uma criança meio “esquisita”. Ninguém desconfia dos filhos do casal perfeito da cidade, mãe e pai loiros, altos, belos e educados. Mas é justamente o casal de comercial que esconde a faceta do marido agressivo. Eles acreditam que mantêm a relação abusiva em segredo, porém um dos filhos começa a dar sinais de que ouvia (e aprendia) com a relação dos pais. A herança do hábito, pois, fala mais alto. O primeiro garoto, fruto do crime, é criado ao redor de compreensão, fala mansa e carinho. A mãe olha nos seus olhos e conversa com sinceridade. O filho da família “perfeita” cresce em volta dos gritos e dos ciúmes. Enxerga na coleguinha o que o pai vê na mãe: uma propriedade. Herança é coisa séria. Não necessariamente a que engordará nossas economias, mas aquela que fará de nós os humanos que somos. Na mais nova polêmica brasileira, eu volto a pensar no exemplo que damos às crianças. Um artista fazia uma performance envolvendo nudez no Museu de Arte Moderna de São Paulo e uma garota, acompanhada da mãe, pegou no seu pé. Chamaram o artista de pedófilo, acusaram-no de erotizar a infância. O problema do mundo não está na nudez. E muito menos na criança que interage com ela. Está na forma como a sociedade trata a natureza e nos traumas que passamos para nossos filhos. Erotizamos os nossos corpos e censuramos atitudes naturais desde pequenos. Nem todo nu é erótico. Tem o que é arte, aprendizado e beleza. Enquanto nos ocupamos de reprimir performances artísticas, o machismo real, bem vestido, destrói infâncias e dá péssimos exemplos à próxima geração. A polêmica do MAM é o eco do “fecha perna, menina” que passamos a vida escutando. Censuramos a arte, calamos nossos filhos e toleramos músicas que falam das “novinhas” na balada. Sejamos vigilantes, sempre, mas vamos escolher melhor nossas batalhas. Halla Tomasdottir tinha sete anos quando viu a primeira greve de mulheres na Islândia. Doze quando Vidgis assumiu o poder. Aos 47, inspirada pelo seus modelos da infância, candidatou-se à presidência. Não ganhou as eleições, ficou em segundo lugar, mas destaca como uma vitória o impacto de sua empreitada na filha adolescente. A autoconfiança, diz ela, foi transmitida pelas gerações. De alguma maneira, a filha de Halla, o pequeno agressor, Ziggy e a menina do MAM são histórias paralelas de erros e sucessos com nossas crianças. Que tal abraçarmos a missão de, todos os dias, prestarmos atenção ao que dizemos e fazemos perto delas? Menos censura, mais arte, mais amor e mais bons exemplos, para começar.

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Nosso útero é uma prisão (por Beatriz Braga)

*Por Beatriz Braga Eu já amava Elisabeth Moss desde que ela foi Peggy Olson em Mad Men, série que retratava o mercado publicitário dominado por homens nos anos 1960. Agora ela voltou a arrasar ao interpretar June em The Handmaid´s Tale. Na Nova Iorque do século passado, Peggy coloca o filho para adoção - após ter engravidado de um dos caras importantes da agência - porque sabia que a maternidade lhe tiraria qualquer vislumbre de carreira. June, por sua vez, é escrava sexual em um país dominado por uma seita religiosa. Handmaid´s é brutal, forte e cruel. Baseado no livro O Conto da Aia, de Margaret Atwood, o mundo sofre com um grave problema de reprodução e as mulheres férteis são mantidas sob cativeiro. É um enredo dramático e violento, mas, apesar de fictício, não o vejo tão distante. Como poucos filmes de terror, o mais assustador de Handmaid´s é que podemos nos enxergar ali. A série me dá arrepios, mas não canso de assisti-la para tentar entender em que partes me identifico com aquela mulher. A personagem de Moss - longe de corresponder aos padrões ideais de beleza de Hollywood - recebe o novo nome de Offred (lê-se “de Fred”, referente ao seu dono dentro da seita) e tem três grandes versões. Primeiro, a mulher livre do passado; depois a mulher que habita seu corpo, escrava do presente; e seu verdadeiro eu, a mulher que habita sua mente. Sem nenhum direito à vida, as prisioneiras são reduzidas aos seus úteros. A metáfora está aí. Estupros, exploração do corpo feminino, o papel da religião na subjugação da mulher e, claro, a resistência. Tão pertencentes ao passado como ao presente. Se Peggy Olson de Mad Men existisse agora, o cenário seria diferente, mas ainda desanimador em muitos sentidos. Ela ainda teria que trabalhar três vezes mais por ser mulher; ainda ganharia 30% menos que os homens igualmente capacitados e, ao se descobrir mãe solteira, ainda teria sérios problemas morais e econômicos para levar sua carreira adiante. A medida que avançamos, novas montanhas surgem como obstáculos. O Conta da Aia foi escrito em 1985, mas continua pertinente. O útero, ao mesmo tempo que nos dá o poder mais incrível de todos, o de gerar vidas, também nos aprisiona. O problema não é desse órgão poderoso, claro. É que a sociedade continua não nos enxergando muito além dele. É similar ao que acontece na religião. O caos não está no nosso corpo, está na interpretação dos homens. Nascemos com prazo de validade, somos desvalorizadas no mercado de trabalho por sermos consideradas menos lucrativas, somos levadas como vulneráveis, histéricas, hipersensíveis. Ainda somos extremamente definidas pelo o que fazemos ou deixamos de fazer com nosso sistema reprodutivo. E extremamente julgadas em todos os momentos: as que não querem ter filhos e a mães, eternas rés desse mundo. A verdade é que quando Offred é estuprada em um ritual sagrado e nos fita com seu olhar enigmático, enxergo as notícias reais do meu dia a dia. De quantas maneiras nossos corpos ainda são presas fáceis no mundo em que vivo. “A liberdade, como toda as outras coisas, é relativa”. Fazia sentido em 1985 e ainda resiste. Acho que sei o que olhar dela quer dizer naquela cena. Montanhas foram erguidas e montanhas continuarão a serem escaladas. Que venha a segunda temporada. *Beatriz Braga é jornalista e empresária (biabbraga@gmail.com). Ela escreve semanalmente a coluna Maria pensa assim para o site da Revista Algomais LEIA MAIS Transe e deixe transarem O contrário do feminismo é a falta de coragem (por Beatriz Braga) Ascenderam a luz (por Beatriz Braga) Vítima, substantivo feminino (por Beatriz Braga)

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Transe e deixe transarem

*Por Beatriz Braga Max morava ao lado do bar em que estávamos. Ele, com seu micro short prateado brilhante, jaqueta cinza e longos cabelos loiros, desceu para dar uma olhada no movimento da madrugada. Elogiei o look e viramos amigos. Mais cedo, um homem tranquilamente caminhava na rua vestindo apenas uma espécie de cueca descolada em um dia ensolarado. Na porta de uma loja, o aviso: “São Francisco aceita todo o tipo de gente”. O alerta chamava imigrantes sem documentos, qualquer raça, orientação sexual, gênero… “Seja quem for, você está seguro aqui”, completava. Esta cidade é uma aula de convívio para o mundo. Nos bares, nas ruas, vemos casais gays, héteros, poliamor. Jovens e pessoas mais velhas frequentam as mesmas baladas na madrugada. É uma explosão de diversidade de cor, origens e carinho. Max nos disse que SF é assim porque, em algum lugar, os “weirdos” tinham que se agregar. A minha aposta é diferente. Em essência, sob a superfície, todos nós somos weirdos. Somos feitos de um quebra-cabeça com centenas de peças diversas que fazem de nós quem somos. Mas ao crescermos em um lugar onde ser diferente não é ok, somos orientados a seguir o rebanho. Crescemos camuflados, tolhemos nossas peças dissonantes e não nos damos conta disso. No Brasil, agora, homossexualidade pode ser considerada doença. Apesar de estar viajando no oásis californiano, hoje tomei café ao som das palavras odiosas de Trump. Aparentemente vivemos tempos bipolares. Enquanto uma parte do mundo evolui para celebrar a diversidade, outra retrocede. São Francisco é resistência. E nós, do lado verde e amarelo, andamos para trás. Por isso precisamos, cada um, ser um pedaço da resistência também. O short prateado de Max é um exemplo banal, eu sei. Mas de onde eu venho, a maioria das pessoas não parecem estar preparadas nem para esse começo de liberdade. Quando penso em enfrentar os que confundem amor e doença, acredito que o time dos que acreditam na igualdade precisa estar fortalecido. Estou rodeada de pessoas que constantemente levantam a bandeira da diversidade. Mas se estamos em um bar e alguém com um cabelo bem diferente entra pela porta, elas ainda vão olhar e comentar. O primeiro passo é reconhecermos nossas hipocrisias do dia a dia e lutarmos contra elas. Sejamos, simplesmente. E deixemos os outros serem também. Quando um dos meus irmãos me contou que é gay foi um dos momentos mais felizes da minha vida por motivos que merecem um texto só para isso. O fato veio para mim naturalmente, como deve ser. No entanto, sempre achei muito estranho o fato de alguém precisar justificar por quem se atrai ou deixa de se atrair. Notei que as pessoas esperavam que eu fosse até elas e contasse a grande novidade. O mesmo aconteceu quando uma das minhas melhores amigas se assumiu lésbica. As mesmas pessoas que reclamam de Malafaia, têm medo de Bolsonaro e postam arco-íris nas redes sociais, ainda falam coisas como “sabe quem é a nova lésbica da cidade? ” Percebi que, na prática, as pessoas não sabem lidar com uma notícia que nem deveria ser notícia. Ser gay é um dos milhares de detalhes que fazem do meu irmão e da minha amiga dois dos seres humanos mais incríveis que a Terra já teve a sorte de abrigar. Nunca precisei justificar a minha preferência por homens e ninguém deveria ter que fazê-lo. Sabe o que as pessoas fizeram quando um homem de tranças longas, barriga de fora e calça rosa pink passou na rua em São Francisco em um dia comum? Nada. “Eu fico achando que estou em um sonho”, falou um potiguar, que mora aqui com o marido, sobre ter encontrado o seu lugar no mundo. O nosso dever na vida é conceder a liberdade para o outro para ser quem se é em todos os níveis. Dos shorts prateados aos seus desejos mais profundos. “You are safe here”, repito para mim com um suspiro brasileiro. Que inveja, São Francisco. Algo me diz que viajamos para entender e voltamos para lutar. Para estar lá, atenta, a cada comentário, constrangimento e olhar torto. “Transe e deixem transarem”, será meu lema constante. E quanto a você, São Francisco, está seguro dentro de mim.

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O contrário do feminismo é a falta de coragem (por Beatriz Braga)

*Por Beatriz Braga A escritora nigeriana Chimamanda Adichie decidiu, ao perceber o peso do rótulo “feminista”, ironicamente se intitular “feminista feliz e africana que não odeia homens, e que gosta de usar batom e salto alto para si mesma e não para os homens”. Já a autora americana Roxane Gay foi mais concisa. Se autodeclarou “má feminista” e tem um livro com esse nome. Vivemos em um mundo que nos enxerga como potes de margarina. Amamos rotular e definir categorias para que possamos nos agrupar. Mas somos ruins nesse ofício. A começar por presumirmos que a humanidade inteira se encaixa em duas classificações: homem e mulher. Outro fato é que as pessoas enxergam “machista” como o contrário de “feminista”. Vejo mulheres recusando a alcunha e homens assumindo o machismo porque ou se é um ou se é o outro. Com essa polarização, muita gente perde a chance de desconstruir padrões. Feminismo é a luta pela igualdade e quebra da hierarquização dos sexos. O oposto do machismo é o femismo, ambos acreditam na superioridade do respectivo gênero. Antes, o rótulo “feminista” me incomodava. Não me julgava digna como as mulheres que queimaram sutiãs, como Dandara que lutou pelo seu povo, como Simone, Betty, Virginia, Mary Wollstonecraft. Quem sou para me apropriar do título? Logo eu que, volta e meia, me descubro machista em pequenas situações. Até que entendi o que Gay quis dizer com “má feminista”. Ela quer chamar atenção para os pedestais que colocamos nossos ídolos. Aderir à luta não significa não falhar. A escritora tem uma lista de contradições, de ouvir funk depreciativo à acreditar em contos de fada. O importante, diz ela, é se esforçar para fazermos boas escolhas. Podemos continuar ouvindo Naiara Azevedo, cantora brasileira que afirmou que o homem é a cabeça e a mulher é o pescoço. Ou podemos valorizar os artistas que acreditam na igualdade. A indústria se transforma quando o mercado consumidor exige. As músicas legais e pegajosas continuarão a existir mas, quem sabe, com rimas melhores. Se você realmente acredita na equidade, você é quase um(a) feminista. Mais do que acreditar, é preciso agir. E não entenda “agir” como “ir a uma reunião de mulheres tatuadas com pelos no sovaco” como ouvi de um homem. Entenda como se importar menos com estereótipos e fazer parte da mudança. Feministas não são só mulheres que aceitaram seus pelos. São elas e também existem as que usam salto, amam rosa, gostam de sertanejo, as que trabalham fora e as que escolheram ficar em casa e cuidar dos filhos. São as que acreditam na liberdade de ser o que quiserem. Podem também ser homens que têm coragem para, por exemplo, em um grupo de amigos, contestar a piadinha e o desrespeito. Eu sou feminista e sei que parte disso é lutar contra o machismo que ainda me habita e que me cerca. Sou membra da corrente invisível que une àquelas mulheres incríveis ao papel que tomei para mim: focar nas pequenas atitudes em todos os níveis do meu dia a dia. O contrário do feminismo é a falta de coragem. Para ir contra o status quo; “estragar” um jantar a dois ou falar sério em uma mesa de bar; quebrar silêncios e preconceitos; denunciar; ensinar; agir; constranger; ser repetitiva e, mais importante, ter coragem para assumir as próprias contradições e lutar incansavelmente contra elas. Um dia, quem sabe, aconteça a todxs o que aconteceu com Gay. “Estou tentando ser melhor na maneira como penso, e no que digo e faço, sem abandonar tudo que faz de mim um ser humano”, disse a autora na palestra “Confissões de ser uma feminista ruim”. *Beatriz Braga é jornalista e empresária (biabbraga@gmail.com). Ela escreve semanalmente a coluna Maria pensa assim para o site da Revista Algomais

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Ascenderam a luz (por Beatriz Braga)

*Por Beatriz Braga Eu estava na Espanha, num metrô lotado, quando um homem grande e forte se aproximou como se tentasse ocupar um lugar mais próximo à porta. Senti a mão suja dele alisar minha coxa e tentar se aproveitar da saia que eu usava. Assustada, com nojo, desci na próxima parada e decidi andar alguns quarteirões imaginando, a cada beco, o que aconteceria se o encontrasse em uma rua vazia. Veja, leitor(a), eu sou privilegiada. Branca, classe média e hétero em um país racista, desigual e homofóbico. Eu sei, porém, que habitar esse mundo para todas nós, sempre será, no mínimo, extremamente desconfortável. A Justiça brasileira acaba de soltar (e prender de novo) um homem que havia ejaculado numa mulher no ônibus sob a justificativa de não ter havido constrangimento. Há poucos dias, a escritora Clara Averbuck relatou o assédio que sofreu no Uber. “O mundo é um lugar horrível para ser mulher”, disse. O juiz, o cara do metrô, do Uber e do ônibus aprenderam que das mulheres se espera sempre o silêncio. Constrangimento é fazer escândalo, usar minissaia, beber demais ou andar sozinha à noite. Em 2015, a campanha “Meu primeiro assédio” da Think Olga levou milhares de mulheres a contar suas primeiras lembranças de abuso nas redes sociais. As histórias eram horríveis, mas mostrou que essa é a regra. Assédio não é exceção. A idade média das pessoas nos relatos foi de 9 anos. Apesar de doída, a repercussão foi incrível. Eu li algo assim: “era como se vivêssemos em um quarto escuro e, de repente, alguém acendeu a luz”. Finalmente estávamos falando sobre o corriqueiro. Percebi que somos frutos das histórias secretas do dia a dia. Dos casos que ouvi, lembro sempre da minha amiga que, quando pequena, toda vez que o pai saia da sala em uma festa com os amigos, um adulto “super legal” - que ainda vive no círculo próximo - se aproveitava para colocar a mão dentro do seu biquíni. Por algum motivo que desconhece, ela nunca falou para ninguém. Somos criadas sob a culpa e a vergonha. Em todas as histórias parece ter um padrão: a certeza da impunidade. Eles fazem o que querem e nós levamos o peso dos nossos corpos, das nossas roupas e da nossa falta de liberdade. A Época Negócios deste mês trouxe a matéria “A armadilha masculina”, originalmente do The Economist, sobre as desvantagens do machismo para os homens. Um dos entrevistados diz que ser mulher é, inclusive, bem mais fácil do que ser macho. Segundo ele, a pressão de ser o provedor, matar barata e, ao mesmo tempo, participar das tarefas domésticas seriam exemplos de como a vida não é tão simples para o outro lado. “Machismo é democrático. Ele fode com todo mundo” disse a jornalista Milly Lacombe na Casa Tpm. Concordo 100%. Ninguém sai ileso. No entanto, gostaria de perguntar a esse cara se ele já andou na rua e teve medo de ser estuprado. Acho que ele preferiria as baratas. O machismo mata, viola e é cotidiano. Ele está no Brasil, fora dele, no público, no privado e nos ambientes em que julgamos estar seguras. Na época do #meuprimeiroassedio, imaginei que muitos homens entenderiam que feminismo não é “mimimi”. Estranhei quando vi tantos conhecidos se incomodarem com o movimento. Entendi, mais tarde, que a empatia era menor do que o medo (talvez inconsciente) de perder o protagonismo. Ao nos descobrirmos vítimas, ganhamos força. Assumimos o direito de combater o machismo em todos os níveis das nossas vidas, a romper silêncios e ameaçamos o status quo. Isso é poderoso. Estamos entendendo que discutir sobre isso não é vitimismo. É empoderamento. E assim ensinaremos às mulheres ao nosso redor a não se calarem. Precisamos dar nome e cara à nossa luta para fazermos mudança. Por outro lado, os homens estão se descobrindo parte do problema e isso incomoda. Chamar de “exagero” e minimizar o contexto é, muitas vezes, mais fácil que repensar as próprias atitudes e fazer parte da transformação. “O que elas querem mais? Já conseguiram o voto, já podem trabalhar...”, ouvi de um homem ao comentar sobre um protesto de feministas na televisão. Na hora não consegui nem iniciar a lista do que “ainda” queremos, mas volta e meia respondo retroativamente na minha cabeça: “O direito de ir e vir sem sermos infernizadas, para começar”. *Beatriz Braga é jornalista e empresária (biabbraga@gmail.com). Ela escreve semanalmente a coluna Maria pensa assim para o site da Revista Algomais

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Vítima, substantivo feminino (por Beatriz Braga)

*Por Beatriz Braga “O estupro fica na vagina”. A frase escrita por Naomi Wolf ecoa repetidamente na minha cabeça. A cada duas horas e meia, uma mulher é vítima de estupro coletivo no Brasil, segundo dados revelados pela Folha de São Paulo no último domingo. Os números são absurdos e eles ainda correspondem a uma pequena parte da realidade. Estima-se que apenas 10% dos casos de estupro sejam registrados (Ipea). Acima dos dados existe o medo, a vergonha e a lógica irracional de culpar a vítima. Acima do medo - e da certeza do silêncio - existem homens se reunindo com outros homens e devastando a vida de milhares mulheres. No livro Vagina - uma biografia, de Wolf, a escritora discorre sobre o sistema nervoso feminino que, segundo sua pesquisa, liga o cérebro e a região genital de maneira mais intensa do que acontece com os homens. A vagina se conecta ao primeiro, impulsionando a liberação de substâncias que aumentam os níveis de percepção, confiança, autoestima e positividade, como dopamina e oxitocina, influenciando nossas atitudes. Para a escritora estadunidense, o estupro tem muito mais a ver com poder do que com desejo sexual. A vagina vem sendo alvo de tortura durante séculos de repressão contra a mulher porque é um caminho eficiente para a morte do desejo, da criatividade e da voz de parte da população. Ela não é apenas um órgão sexual, mas um mediador poderoso de confiança e criatividade. É por isso que muitas culturas optam pela mutilação genital como forma de controle. Será que, nessa nova onda de empoderamento feminino em várias partes do mundo, veremos a violência contra a mulher aumentar como forma de retaliação? Segundo os novos dados do Ministério da Saúde, o estupro coletivo mais que dobrou nos últimos cinco anos. Vamos às guerras, onde o estupro é prática corriqueira. No conflito de Kosovo, em 1998, estima-se que 20 mil mulheres foram estupradas. Ao contrário do que imaginamos, pouco tem a ver com desejos obscuros dos militares. Wolf fala sobre Serra Leoa, na África, onde soldados usavam objetos pontiagudos para destruir milhares de vaginas. Não havia nada de sexual ali. “Você pode demonstrar seu poder sobre uma mulher de diversas formas que não incluem o sexo. Mas, se sua meta é quebrar psicologicamente, é muito mais eficiente praticar a violência contra sua vagina”, explica a escritora. O ataque ao nervo pélvico é eficaz porque a agressão fica profundamente impressa no cérebro feminino. A vagina pode condicionar o resto do corpo e mente da mulher. Penso em Mirella, jovem vítima de feminicídio pelo vizinho no Recife, e em todas as outras que vieram antes e ainda virão. Nas mulheres sem vaginas. Nas negras e pobres que não chegam às capas de jornais. Cada vez que uma mulher é estuprada, todas nós morremos um pouquinho. Percebo-me andando com medo, passo apressado, desviando de tantos homens que passam por mim. Mexe com uma, mexe com todas. O estupro quebra, dentro da vítima, muito do que ela é. E quebra também todas nós, mulheres não tão distantes de Kosovo ou Serra Leoa. Enquanto escrevo, os dados se repetem na minha cabeça: a cada 11 minutos alguma mulher terá sua vida devastada por um homem neste país (Ipea). Desejo muita força a cada uma. E muita coragem para romper o silêncio e entrar nas estatísticas. Quem sabe, aos poucos, os números falarão a nosso favor. Nesse mundo cruel, a dor faz companhia: nenhuma de nós estará só. *Beatriz Braga é jornalista e empresária (biabbraga@gmail.com). Ela escreve semanalmente a coluna Maria pensa assim para o site da Revista Algomais

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Grãos - Como criar uma filha feminista - Por Beatriz Braga

*Por Beatriz Braga Ela é ainda um grão e eu já espero tanto dela.  Eu sou deliberadamente apaixonada pelo futuro. Acredito no potencial de renovação de cada geração e cada vez que alguém especial engravida, meu coração fica mais esperançoso. Quando ela me disse que estava carregando um ser do tamanho de um grão de lentilha no ventre, imaginei o longo caminho de transformação que ele ainda passaria e desejei que fosse leve. O ser ainda não tem rosto ou pés, mas tenho certeza que o que espera por ele é grandioso: uma noção de respeito e incentivo. Se fosse homem, aprenderia a respeitar desde o começo e seria incentivado a ser o que quisesse, a aceitar suas características femininas e a se desprender desse conceito de “homem macho”. Sendo mulher, aprenderia a exigir respeito, ser independente e a se amar. Quem sabe, um ou outro, aprenderiam a ser livres e ajudariam a construir um mundo no qual os gêneros não nos definissem. Acabou que se descobriu menina. Eis o que acho: Moema terá a base para ser forte, para se amar independente de padrões externos e encontrará, em casa, um grande exemplo de sabedoria no qual pode se espelhar.  Assim espero também para Francisco, Alice, Cecília, Bernardo, Benício e Sophia. E todas as crianças do mundo. Afinal, elas são o futuro. Essa última desenhou suas mães e escreveu “o amor é o que importa”. Mais esperta que muita gente adulta, não acham? Uma amiga, certa vez, disse que não queria ter filha para que ela não passasse por situações parecidas com as que viveu. E completou em seguida: também não aguentaria ter um filho que pertencesse ao círculo machista. Retruquei que, independente de sexo, talvez sua futura cria pudesse fazer a diferença. Quando soube do grão, reli o livro de bolso da nigeriana Chimamanda Adiche “Para educar crianças feministas”. Eu já havia presenteado a sua mãe com “Sejamos todos feministas” da mesma autora. Na obra lançada este ano, a escritora responde a uma amiga que lhe pergunta conselhos sobre “como criar uma filha feminista”. Aqui, elenco meus preferidos (não se preocupe com os spoilers, o manifesto tem muito mais a oferecer). DECIDA O QUE NÃO DIRÁ PARA SUA FILHA A linguagem é poderosa. Toda vez que as crianças ouvem “você está chorando como uma menina”, “isso é coisa de menininha”, “só podia ser uma mulher”, automaticamente absorvem que ser menina é ser frágil, indefesa, inferior e você entende onde isso vai acabar, não é? Uma amiga de Chimamanda decidiu nunca chamar a filha de princesa. “Princesa vem carregado de pressupostos sobre sua fragilidade, sobre o príncipe que virá salvá-la, etc. Essa amiga prefere ‘anjo’ ou ‘estrela”. Usemos a linguagem a nosso favor. FAÇA COM QUE ELA LEIA LIVROS. SE PRECISAR, PAGUE POR ISSO. A filha de uma amiga da escritora não gostava de ler. A mãe, então, pagava cinco centavos por página lida. Mais tarde, disse ela, saiu caro, mas valeu a pena. A dica de Chimamanda é quase simples: leia e sua filha entenderá que ler é uma virtude. Se ela não entender assim, pagar é uma opção. “Os livros vão ajudá-la a entender e questionar o mundo, vão ajudá-la a se expressar, vão ajudá-la em tudo que ela quiser ser - chefs, cientistas, artistas”. Poderoso! CERQUE-A DE HOMENS E MULHERES QUE COMBATAM ESTEREÓTIPOS (QUALQUER UM DELES) Crianças se guiam pelos exemplos. Então encontre pessoas que combatam estereótipos e deixe claro o quanto você os admira. Sempre que uma criança conhecer um homem que ama cozinhar e faça isso para toda família, por exemplo, logo vai descartar frases sexistas como “cozinhar é coisa de mulher”. Talvez esse seja seu conselho mais importante: circunde-se de homens e mulheres que possam dar alternativas reais aos modelos de gêneros tradicionais cultuados na sociedade. SE DESFAÇA DE SUAS PRÓPRIAS AMARRAS Uma frase curta para o possivelmente maior desafio de uma mãe: “para garantir que a filha não herde nenhuma vergonha sua, você precisa se libertar da vergonha que você mesma herdou”. “Nunca associe sexualidade e vergonha. Ou nudez e vergonha. Nunca transforme a virgindade em foco central. Ensine a rejeitar a associação entre vergonha e biologia feminina”. Entre vários outros conselhos, a nigeriana sugere que se compre trenzinhos e blocos (e bonecas também, se quiser) e incentive suas filhas a criarem, a serem ativas e a valorizarem suas identidades e aparências. “Vou tentar”, a destinatária responde. “Eu também”, diz a autora. Que bom seria se todos nós tentássemos. Para todos aqueles que ainda não perceberam o valor do feminismo, esta frase dessa mulher incrível é a minha preferida: “quando há igualdade não existe ressentimento”.

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Todas as Marias (Por Beatriz Braga)

A pior ligação que já recebi foi num domingo à noite quando ela, do outro lado da linha, procurava algum conforto do lado de cá. Entre gritos e choros, minha amiga tentava dimensionar a agressão do namorado que acabara de acontecer. “Um monstro”, concluímos. Não sei o que doeu mais: ouvir tudo aquilo ou vê-la voltando para o relacionamento um tempo depois. Ela é dessas mulheres cheias de energia, maravilhosa. O cara é daqueles boa-praça, que todos adoram, aparentemente um homem bacana. Provavelmente doeu mesmo foi quando percebi que estávamos enganadas. Ele não é um monstro. Monstros são anomalias, deformidades, seres contrários à natureza. Ele é um homem comum, “de bem”, desses que circulam nas festinhas, popular. E são exatamente caras como ele que protagonizam os piores dias da vida das mulheres ao meu redor. Não são corcundas, não têm caras peludas e não vivem em cavernas. No dia 7 de agosto, a Lei Maria da Penha completou 11 anos. A mulher que deu nome à lei foi baleada pelo marido, ficou paraplégica e viu sua história servir de inspiração para milhares de brasileiras. No aniversário do marco, porém, os números não são bons. Segundo o Mapa da violência, há 13 feminicídios por dia no Brasil. Somos o quinto país que mais mata mulher no mundo. Em 2016, 503 mulheres sofreram agressão a cada hora. Em 61% dos casos, os algozes eram do seu círculo mais próximo de convívio (Datafolha). Nós não escolhemos dividir nossos travesseiros com monstros, mas infelizmente somos todos produtos de uma sociedade machista. Esses homens, em algum momento de suas criações, aprenderam a ver as mulheres como suas propriedades. A violência física normalmente vem depois que a agressão psicológica já causou sérios danos a quem sofre. Uma das várias faces do abuso é fazer com que a vítima se sinta culpada por aquela situação. A amiga lá de cima me disse: “Fui percebendo que ao lado dele eu ficava calada na frente de outras pessoas, porque tudo que eu dizia era motivo de briga”. De outra escutei dizer simplesmente “sou fraca” em uma conversa sobre amor. No livro “Vagina”, Naomi Woolf conta que uma das frases mais ditas por mulheres violentadas é que elas se sentem “um lixo”. Certa vez escutei de um ex-namorado que meu maior defeito era ter muitas opiniões. Essas opiniões são justamente o que fazem de mim quem eu sou. E por algum tempo me pus a pensar que havia algo errado com isso. Relacionamentos abusivos nos distanciam de nós mesmos. De repente, afundamos em um ciclo repetitivo de maus-tratos, desculpas, dependência e, o pior, culpa. Se você se considera a feminista, provavelmente já escutou alguma brincadeira sobre odiar homens. Eu não os odeio. Entre as cinco pessoas que mais amo, quatro são homens. Só que estamos cansadas. De enxugar tantas lágrimas. De ouvir tantas desculpas. De ter que lidar com tamanha quantidade de bobagens. De ver mulheres incríveis sofrendo por homens comuns. Trago, porém, uma boa notícia. Digo-lhes a cena que recentemente vi: um grupo de mulheres jovens, trabalhadoras e fortes conversando sobre as “fogueiras” que haviam pulado (lê-se: os namoros nocivos deixados para trás). A mulher do começo da coluna, hoje, cuida bem de suas feridas para redobrar a força redescoberta. E jamais se cala por nenhum outro homem. É difícil encontrar entre as mulheres que conheço as que não passaram por um relacionamento abusivo. No entanto, cada vez mais, é comum nos enxergarmos deixando-os ir embora. “Os homens vão ter que mudar porque as mulheres simplesmente não vão mais aceitar”, ouvi. O mundo ainda é um lugar perigoso para ser mulher. A denúncia e a renúncia de relacionamentos abusivos vêm com vários complicadores: dependência emocional, patrimonial, vergonha, humilhação... mas vai chegar a hora, e eu acredito muito nisso, que os homens não terão mais escolha: ou respeitam ou ficam sós. Entre homens e opiniões, ficaremos sempre com nossas ideias, roupas e boas escolhas. Estaremos sempre um passo à frente. E assim levaremos outras mulheres. Todas as Marias que, por bem, quiserem ir junto.

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De clichê nós entendemos (Por Beatriz Braga)

Certa vez, uma amiga - que havia ganhado uns quilos na época - me contou que não conseguia chegar perto de revistas femininas. Disse-me que só o faria depois que voltasse a emagrecer. De tortura, falou, já bastava a vida real.  Mulheres seminuas de corpos inatingíveis em propagandas de sapatos, bolsas, óculos de sol. O que vale é vender um padrão de beleza inalcançável e a ilusão de que a marca pertence a ele. Nos últimos dias, a entrevista polêmica de Washington Olivetto virou trends topics, ao mesmo tempo em que a agência Think Eva lançou o estudo Compromisso Inegociável sobre o feminismo na comunicação. Na entrevista, um dos mais reconhecidos publicitários do país compara mulheres a porsches e diz que “empoderamento feminino” é um clichê constrangedor. Eu concordo que exista oportunismo no setor publicitário e muitas vezes o serviço prestado seja precário. Mas o novo feminismo vai muito além de um lugar-comum e o mercado está aprendendo com isso. De clichê nós entendemos. Sábado passado, no restaurante, vimos a cena clássica. Pai, mãe e dois filhos à mesa. A mãe corta a comida de um filho e a segunda criança espera ansiosa a sua vez chegar.  Depois de cortar cada pedaço de carne do primeiro, a mãe se ocupa da segunda cria. Esta, sentada ao lado do pai que, apesar de saudável, hábil e capaz, já estava no meio da refeição quando a esposa acabou a tarefa doméstica e pôde começar a comer. Não me cabe julgar aquela família em particular, mas eu julgo a regra do jogo. A quantidade de vezes que a mesma cena se repete. Esse é o clichê desgastado que vivemos todo dia. “A mulher se sente moderna porque tem um smartphone, um carro, porque trabalha. Mas ela ainda chega em casa e precisa dar papinha para o filho”, diz Djalma Ribeiro no estudo da Think Eva. Avançamos muito até agora? Sim. Mas, como mostra o relatório, estamos engatinhando. Se nos anos 1900 o marketing da época associava mulheres e eletrodomésticos como uma dupla indissociável, os anos 2000 estão revolucionando esse conceito. A internet permitiu o diálogo entre consumidores e empresas e ficou claro que as pautas femininas não podem ser ignoradas. O resultado nem sempre é satisfatório. Mas é o começo. Revistas femininas continuam nos fazendo sentir péssimas. A mídia continuar a pintar um mundo sem celulites, estrias e mulheres superpoderosas que fazem tudo sem sair do salto. O discurso continua, muitas vezes, raso. Somos o segundo país que mais faz cirurgia plástica do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. A publicidade brasileira tem papel determinante na manutenção do status quo. Agora queremos ir além de comerciais legais defendendo a igualdade, a beleza real e a diversidade. O mercado publicitário pode ter se apropriado da causa, mas em casa, nos restaurantes, na vida, pouca coisa mudou. Queremos a igualdade virando a regra. Comparar porsches a mulheres certamente não vai ajudar. É um desserviço. Falar sobre empoderamento, sim, vai nos fazer avançar (ou “pregar”, se Olivetto preferir chamar dessa forma). O empoderamento feminino não é o resultado de um jogo cíclico de mercado. É uma demanda crescente que surgiu com Dandara, Betty Friedan, Simone de Beauvoir, Mary Wollstonecraft. E persiste.  Não é moda passageira. É fácil um homem branco, hétero, classe média ou mais, dizer que o mundo está chato. O preconceito e o machismo têm perdido a graça. E quem não souber lidar com isso vai ficar para trás. Empresas e seres humanos. Que bom. Como diria meu pai, se fosse para escolher uma época para viver, optaria pelo futuro. Quem sabe não está ainda mais “chato” por lá. Os que estiverem achando ruim, podem se deleitar com o passado que ainda existe por aqui.   Veja também: Mulheres adoecem em busca da beleza

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