Arquivos Bruno Moury Fernandes - Página 3 de 6 - Revista Algomais - a revista de Pernambuco

Bruno Moury Fernandes

Rotina de casal

O dia a dia traz a impossibilidade de ser sensível ao outro. Impede-nos de ouvir atentamente o que a(o) parceira(o) tem a dizer. Rotina faz cegar o melhor dos olhos. Engessa a capacidade de se preocupar com quem se divide a vida. É como se duas pessoas próximas, de tão próximas, fossem se tornando íntimos distantes. Somos um casal. E, como tal, temos problemas. Óbvio! Mas não deixemos essas armadilhas matrimonias nos pegarem. Rotina pode ser inimiga número um. Por isso, cuidamos. Somos, pois, duas pessoas adultas esforçando-se, dando o melhor de si, para que ela, a rotina, não sente no sofá da sala de estar e faça morada lá em casa. Graças a Deus, somos íntimos e próximos. Parceiros e criativos. Poderia ter sido diagnosticado com uma doença rara, semana passada. Seis meses de vida poderia ter sido o tempo que me restaria, segundo o médico. Fiquei pensando nas coisas que faria nos últimos meses de crédito divino. Queria estar cada segundo ao lado dessa mulher. Desejaria viver intensamente, e adivinhem: a mesma rotina. O dia a dia de sempre. Desejaria, sendo assim, tomar meu café pretinho de manhã cedo. Ler o jornal. Receber um cafuné. Levar o já automático esporro diário por ter deixado a toalha molhada em cima da cama. Sair para trabalhar e ouvir um “como foi seu dia?” ou, quando abrir a porta de casa, “bora tomar uma cervejinha na varanda?”. Pretenderia permanecer deitado na cama, à noite, com os três filhos esparramados ao nosso lado, no maior menor espaço do mundo para cinco pessoas, transformando minutos em eternidade. Assim como foram eternos os minutos em que deitava na cama dos meus pais, com meus irmãos. E essa imagem está bem aqui, na minha frente, que de tão perto posso até tocar. Claro que nos finais de semana pretenderia caminhar, namorar, alisar o cabelo, preparar um churrasco, tomar banho de piscina, tudo com ela e nossa penca de filhos. Não mudaria nada. Aliás, minto eu. Mudaria duas coisas. A broxante selvageria de invadir o banheiro enquanto faço o número dois e a mania que temos, a cada quatro anos – ela e eu − de votarmos em salvadores da pátria, e descobrir depois que não o são. Tudo conforme manda a nossa sagrada rotina. Como se presidencialismo de coalizão permitisse, nesta pátria, o aparecimento de um ser iluminado a resolver todos os problemas. Mas faz parte da nossa rotina elegê-los. Foi assim com Collor, Lula e Bolsonaro. Todos equiparados ao que faço enquanto minha mulher invade o banheiro sem bater à porta. Não tenho doença alguma. Estou cem por cento saudável, graças a Deus. Minha doença é acreditar em discursos populistas. Se há uma coisa que também pretendo mudar na rotina deste casal brasileiro de classe média é parar de assistir na TV à prisão de outro presidente da República. Agora, já são dois. A inocência política é mesmo rotina de casal. De novidade mesmo só o Twitter do Presidente e as declarações dos seus filhos. De tédio não morreremos, nem haverá divórcio.

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Vamos resetar 2019?

Que tal começarmos do zero? Então feliz ano novo para você. Melhor fazer de conta que o ano teve início agora porque o negócio está feio. Brumadinho, meninos do Flamengo, chuvas torrenciais, Boechat, Moro deixando de ser Moro... Vixe Maria! Se pudéssemos resetaríamos esse ano. O termo resetar não existe na língua portuguesa. Mas quem é da época do computador 386 está autorizado a utilizá-lo. Quem foi proprietário daquela gerigonça chamada “três-oito-meia” sabe do que estou falando. Quando o bicho travava não tinha cão no mundo que desse jeito. No meu antigo estágio havia um colaborador da área de TI que quando era chamado não perdia muito tempo: simplesmente dava um reset no computador. Era mais fácil, simples, descomplicado. Ganhou o apelido de Mr. Reset. Hoje é um grande empresário da área da tecnologia. Isso só comprova que resetar é caminho para o sucesso. E é justamente o que proponho fazer com 2019. Dá um reset aí nesse danado! Bora começar essa brincadeira de novo porque tá foda! Então aprenda a conjugar o verbo: Eu reseto Tu resetas Ele reseta Nós resetamos Vós resetais Eles resetam Não proponho, contudo, o esquecimento. As tragédias ocorridas não podem ser chamadas de tragédias. Não são tragédias e pronto! São acontecimentos com data prevista, o que é bem diferente. Tragédia é aquilo que acontece sem ninguém esperar. Onde não há negligência, imprudência ou imperícia, mas mesmo assim as coisas dão errado, aí sim é tragédia! Do contrário, é evento previsível. Ora, quem não espera que Brumadinho ocorra novamente? Mariana, não faz muito tempo. O que aprendemos? Quem não espera outros incêndios em outros puxadinhos, como aquele onde os meninos do Flamengo dormiam? O Brasil, por si só, já é um puxadinho. O país da gambiarra. Incêndios muitos ocorrerão. Tragédias muitas acontecerão. Boate kiss, não faz muito tempo. De novo, me digam, o que aprendemos? Talvez entre o término desta crônica e sua publicação já tenha ocorrido outra tragédia. Portanto, provavelmente, você está a ler um texto desatualizado. Esse novo acontecimento, garanto, terá a motivação de sempre. Descaso. Desrespeito. Irresponsabilidade. E, depois, cairá no esquecimento e na impunidade, como todos os inúmeros acontecimentos trágicos ocorridos no Brasil. Que tal deletarmos desse país o desprezo pela vida humana? Que tal aprendermos de uma vez por todas com nossos erros e virarmos a página da incompetência? Pelo amor de Deus, deletemos a ignorância nossa de cada dia. Façamos emergir da lama um novo Brasil. Resetemos 2019. Feliz ano novo, de novo!

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Visita indesejada

O muro do Trump. Crossfit. Obsessão pela magreza. Aquecimento global. Os primeiros dias do governo Bolsonaro. A laicidade do Estado. Reforma trabalhista. Lava jato. Monteiro Lobato. Previdência dos militares. Esses e outros assuntos estão a estampar as folhas do jornal que ora leio e compõem um cardápio generoso de sugestões para que qualquer cronista explore suas divagações. Contudo, o assunto que me fez correr para o computador, tal qual um leão faminto corre para atacar sua presa, foi um só: piolho! Isso mesmo, piolho! Minha filha pegou piolho na escola, coisa absolutamente normal para uma criança da sua idade. Aliás, não foi minha filha que pegou piolho. Foram os piolhos que pegaram minha filha, nos últimos dias de aula do ano que findou. Tínhamos essa informação antes de sermos convidados por três casais amigos para veranearmos em uma casa, por eles alugada, que fica em uma praia aqui perto do Recife. E agora? Declinaríamos do convite? Avisaríamos aos nossos amigos, donos da casa, que alguns outros amiguinhos iriam conosco? Mas, se fizéssemos isso, eles manteriam o chamado? As férias das crianças estariam prejudicadas? Preferimos acreditar que o Kwell agiria rapidamente. Ficamos de bico calado e, então, lá fomos nós de mala e cuia para a praia. Eu, mulher, três filhos e, claro, piolhos. Muitos piolhos. A mala do carro, como sempre, abarrotada. Às vezes acho que minha mulher pensa que sou o David Coperfield. Ela quer levar tudo que acumulou ao longo de 13 anos de casado, no porta-malas de um carro pequeno, para passar uns dias na praia. Depois que está tudo arrumado, a surpresa. Antes de pegar a estrada, meu amor, só falta passar ali para pegar dois bolos, uma jaca, dois sacos de carvão e um berço para o bebê. Tranquilo! Voltemos aos piolhos. O detalhe, meus amigos, é que os casais anfitriões possuem três filhos, cada. Então é como se estivéssemos levando os piolhos para passear na Disney. Foi um festival. Com três dias de convivência, começou o coça-coça. Menino para todo lado. E tome coça-coça. Até que uma das mães, atenta, percebeu que algo diferente pairava na cabeça da meninada. Mãe enxerga tudo. “Gente, acho que as crianças estão com pilho”. Calado estava, calado fiquei. Não iria me acusar a essa altura do campeonato, já com três dias de piscina, praia, barco, cerveja e rede. A essa altura aquela já era a vida que pedia a Deus. Não queria que nada atrapalhasse. No cair da noite daquele mesmo dia, entretanto, enquanto tocávamos violão e cantávamos, um dos nossos amigos resolveu homenagear a todos, falando da importância da amizade em nossas vidas. Danei-me a chorar. Emocionado? Nada, arrependido. Não fui sincero com os anfitriões, amigos do peito. Então abri o jogo e contei o segredo que tanto guardara. Rimos de cair no chão. A amizade é mesmo linda, mas creio que jamais serei convidado novamente.

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Chocolate

Faltava quase meia hora para o início da audiência quando adentrei na Vara do Trabalho de uma cidade da Mata Sul de Pernambuco. A advogada do trabalhador veio em minha direção e perguntou-me, como de costume, se havia proposta de acordo. Seria mais um dia normal de trabalho na rotina de um advogado trabalhista de usina. O negócio era meio que tabelado. O trabalhador safrista receberia R$ 500, caso cedesse ao acordo. Se estivesse “reclamando duas safras”, o valor seria R$ 1 mil. Bastava acionar o piloto automático e o dia seria como outro qualquer. A ordem da usina era fazer uma proposta em valores inferiores, até que se chegasse, no máximo, aos limites pré-fixados. Como Sr. Irineu tinha laborado apenas uma safra, a proposta a ser feita era de míseros R$ 300, para se chegar até no máximo a quinhentas pratas, limite imposto pelo meu cliente. Depois de fazer milhares de acordos em período de um ano, passei a enxergar as pessoas como números, sem saber as histórias e experiências de vida que possuem as linhas daquelas mãos ásperas e calejadas. Passei a ignorar, por força da rotina e por insensibilidade mesmo, que diante de mim existiam expectativas, sonhos, amarguras, desejos, necessidades e frustrações. Adentramos na sala de audiência. Como de praxe, a juíza perguntou se as partes tinham interesse numa conciliação. Eu disse que do lado da usina interesse existia. A advogada do reclamante sugeriu o valor R$ 1.500. Do lado de cá eu disse que a proposta seria trezentos contos. Um abismo entre os dois polos. O jogo se joga assim mesmo. Três pessoas discutindo valores como se naquele recinto não houvesse mais ninguém, nem mesmo Sr. Irineu, o dono do dinheiro. Depois de alguns minutos de negociação, ouve-se a voz mansa e calma vinda do caboclo: “Eu aceito” A Juíza retrucou: “Sr. Irineu, essa proposta da usina é muito baixa. Eu não homologo o acordo se o valor for este”. “Mas eu quero”, insistiu o pobre coitado, agora com a voz embargada. “Mas não vou homologar não senhor”. “Excelência, a usina chega a R$ 500 pra fechar agora”, encurtei o papo porque a juíza já havia homologado milhares de acordos nesse mesmo patamar e não havia porque não fazer o mesmo neste caso. “Seja lá qual for o valor, por favor, encerrem logo isso, e me entreguem o dinheiro”. O tom de voz já meio choroso do trabalhador, deixou transparecer um certo desespero, fazendo pairar no ar a curiosidade de todos, deixando a sala em silêncio. Ele continuou: “Hoje é aniversário da minha filha, Jéssica. Ela tem 9 anos. Eu prometi que volto para casa com seu presente. Eu não tenho dinheiro nem para o ônibus da volta. Mas, doutores, eu volto pra casa hoje nem que seja com uma barra de chocolate. Nem que eu tenha que assaltar. Vocês podem ser letrados, mas nunca vão saber o que estou sentindo”. Mais alguns segundos de silêncio profundo... “Acordo homologado!”, sentenciou a juíza em voz alta e com olhos marejados.

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Descumprindo promessas

Sair das redes sociais será uma das promessas que farei neste final de ano e que, certamente, não cumprirei no ano novo. Também não cumprirei a promessa de comer menos doces e de não exagerar no sal. Visitar mais a família – mãe, vó e tios – será prometido, mas o resultado eles já conhecem: no máximo, um almoço por semestre. Fazer mais exercícios também estará na lista de promessas, como sempre. Sei que não cumprirei novamente, mas prometerei mesmo assim, para não perder a tradição. Chegamos ao último mês de um ano que parece ter iniciado ontem. O tempo voou. Num piscar de olhos, 2018 terminou. Na infância o tempo passava mais lentamente. Minhas férias na praia duravam um mês. Mas pareciam durar uma década e não terminavam assim tão de repente. Hoje, nem sei o que são férias. As promessas feitas no final de 2017 ainda estão aqui, fresquinhas, na mente. Entrar na academia, fazer crossfit, viajar bastante, reunir os amigos, dar mais tempo aos filhos. Nada disso eu cumpri. Estou inadimplente com meus projetos pessoais e, provavelmente, já com tudo o que vier pela frente. No próximo ano, nada vai ser diferente. 2019 será como sempre. Um oceano de inadimplemento. Talvez se eu fixasse uma multa diária pelo descumprimento de promessas de ano novo tomasse vergonha na cara. Acho que fazer um contrato seria uma boa. De um lado, eu, e do outro, eu mesmo. Deus é testemunha e minha mulher fiadora: “Cadê? Tu não dissesses que ia fazer isso e aquilo? Como é que é? Vai ou não vai tomar vergonha nessa cara? Levanta desse sofá, murrinha!” Certamente continuarei trabalhando bastante, comerei frituras, não ganharei dindin, não viajarei bastante, não darei tempo aos filhos. Deus e minha mulher sabem que a realidade é esta. Porque me conhecem o suficiente. Não tenho palavra. Não sou bom em cumprir promessas. Então melhor aceitarmos essa cruel realidade. As sete ondas que pularei na noite de ano sorrirão da minha cara, espalhando espumas de descrença na areia branca de alguma praia pernambucana. Se mandar uma oferenda a Iemanjá, retornará com bilhete: “valei-me, você de novo! Não aguento mais. É verdade esse bilhete!” Minhas promessas pouco importam para todos nós. As que importam mesmo são as de Bolsonaro. Que ele possa cumprir todas elas ou, quem sabe, descumprir algumas para o bem do Brasil. Essas coisas de colocar armas na mão da população, extinguir Ministério do Trabalho ou acabar com o programa “mais médicos” bem que poderiam ser descumpridas. Poderia ensinar ao presidente como não cumprir promessas. Eu daria um bom político. Neste caso, faria um bem danado ao Brasil. Que 2019 seja um ano melhor para todos nós. Feliz ano novo, meus amigos!

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Se eu fosse eu

Martha Medeiros escreveu uma crônica, em 2000, fazendo menção a Clarice Lispector que também escreveu a respeito em 1968. A ideia original é de Clarice. Martha copiou. Clarice fez o perturbador e intrigante exercício de refletir sobre o que ela faria se fosse ela mesma. Martha também. Agora faço eu. Porque umas das coisas que eu faria se eu fosse eu mesmo, era copiar uma boa ideia sem ter vergonha de copiá-la. Sobretudo uma ideia genial. Então, neste momento, estou sendo eu mesmo. Se eu fosse eu, trabalharia apenas quatro dias da semana e dedicaria os outros três ao ócio. Não o ócio qualquer, mas o criativo, enaltecido na obra de Domenico De Masi. Usaria calça jeans e camiseta. Abandonaria terno e gravata. Assistiria mais a documentários do que a filmes. Nas reuniões, substituiria a xícara de café por uma taça de vinho. Uma para cada reunião. Mesmo nos dias com mais de cinco reuniões. Se eu fosse eu, elogiaria a beleza feminina, em alto e bom som, e não me preocuparia se iriam me interpretar como assediador. Acordaria somente quando o sono cessasse. Não abriria mão de sobremesas no almoço. Peidaria em qualquer ambiente. Moraria numa casa e não em apartamento. Criaria cachorros. Beijaria minha mãe todos os dias. Se eu fosse eu, não juntaria dinheiro e pararia de me preocupar com o futuro dos outros. Faria churrasco dia sim, dia não. Me dedicaria mais a escrever do que a advogar. Faria aula de canto. Diria na cara de quem não gosto que não gosto. Conversaria abertamente sobre todas as minhas fraquezas e defeitos, sem me preocupar com imagem, rótulos ou conceitos. Se eu fosse eu, viajaria sozinho quando bem entendesse. Não esconderia qualquer sentimento: raiva, paixão, ódio, amor, afeto. Opinaria sobre tudo nas redes sociais. Compraria uma vespa. Esmurraria políticos corruptos em encontros sociais, utilizando-me covardemente do elemento surpresa. Mandaria à merda meia dúzia de chatos. Tiraria um período sabático, por um ano, pensando no que deveria fazer na segunda metade da vida que me resta. Se eu fosse eu, dedicaria metade do dia ao meu filho, Joaquim, e desligaria o celular durante esse período. Faria turismo futebolístico pela Europa, durante três meses seguidos, somente assistindo a jogos e bebendo cerveja até cair. Diria a um ingrato o quanto ele foi ingrato comigo (sei que você está lendo isso, seu ingrato!). Mas lhe diria o quanto foi importante na minha vida. Estudaria psicanálise. Andaria a pé, por aí, sem destino. Eu só não sei se aguentaria ser eu mesmo o tempo todo. Minha vida seria um inferno, creio eu. E este ser que ora crer, sou eu mesmo. Porque toda crença vem de mim, inobstante se exteriorizar apenas aquele que, insistentemente, faz morada em mim, mas que no fundo não reflete quem verdadeiramente sou.

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O que está acontecendo com esses moços?

Se há um assunto que me intriga, esse é o suicídio. Tem o poder de deixar minha alma perturbada, curiosa e inquieta. Não precisa ser de gente conhecida não. Basta ser de qualquer estranho. Lá no Alaska, na Jamaica (sim, jamaicanos também cometem suicídio), no Japão ou aqui no Brasil. É o suicídio, não a morte. Ele, isoladamente, como ato humano, inegavelmente humano, que me remete às mais profundas reflexões sobre o valor da vida. Talvez por já ter estado perto da maldita, face a face, frequentemente falo da morte. Já senti seu horrível perfume na pele do meu pai. Já experimentei seu gosto na boca do meu pai. Sempre falo do meu pai. Da morte. Da morte do meu pai. Na minha hora, já bem velhinho, ainda assim, lembrarei da hora do meu pai. Do dia em que ele partiu. Sempre lembrarei do que fiz durante aquele dia. De cada palavra trocada. Do seu último sorriso, de dentro da piscina, antes de pegar naquele maldito fio, ainda molhado. Sei que suicídio e morte estão umbilicalmente interligados. A diferença é que o suicídio é a morte que quis acontecer. Mas quando ela advém, deliberadamente, do desejo de um jovem, aí minhas estruturas desabam. Meus neurônios murcham como num Carnaval melancólico. Impressiona-me a quantidade de moleques a cometerem suicídio. Gente que nem tirou a catinga de xixi ou o cheiro de Hipoglós dos ovos. Isso dói. Ver uma vida quase não vivida sendo interrompida. A depressão, quase sempre, é o principal gatilho para o final desastroso. E o que impressiona ainda mais é que a maioria desses jovens é rica, bem formada, bem-sucedida profissionalmente, com acesso a toda sorte de diversão e tecnologia, mas por dentro, vazia e infeliz. Parece que nada é suficiente. Nenhum prazer é suficiente. Nenhum sucesso é suficiente. O que está acontecendo com esses moços? Se você ama e valoriza a vida – como eu – não conseguirá alcançar o que passa na cabeça do suicida. Especialmente de um jovem suicida. Certamente é quando a vida é mais dura que a morte. É quando acordar todos os dias é asfixiante, e morrer passa a ser um alívio. É quando a pessoa encontra sentido no fim, no apagar das luzes. É quando o sofrimento de viver é bem maior que o sofrimento de morrer. É um mergulho de encontro à libertação do peso insuportável da vida que se vive. É quando pular de cima de um prédio é menos assustador do que o cair constante. Pois, se você sofre do mal da depressão e está, neste momento, lendo esta singela crônica, seja você, moço ou velho, quero te pedir uma coisa: me procura. Vem aqui em casa. Vamos sorrir, tomar vinho, fazer um churrasco, ouvir Stones e arrastar os móveis para dançar no meio da sala, imitando Jagger, com aquela boca sexualmente atrevida de 75 anos, dando a língua para a vida, saboreando-a como tem que ser, apesar das flores e espinhos.

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Banco Imobiliário

Visitei um cliente, produtor rural, que em pleno Sertão, às margens do São Francisco, dentro da sua fazenda, construiu um oásis de esperança. Uma escola para mais de 200 crianças, com biblioteca, quadra poliesportiva, piscina, playground, laboratório, refeitório e enfermaria. Ao receber o convite, imaginei um puxadinho. Algo construído ali no fundo da propriedade para “fazer a frente”, o “migué”, o “H”. Sabe como é, né? Tem muito projeto que finge caridade para postagens de fotos autopromocionais nas redes sociais, com o objetivo de angariar likes. Não é o caso. Estou me referindo a algo grandioso, radical, visível, e que verdadeiramente irá mudar, para sempre, a vida de milhares de meninos e meninas pobres, sem perspectivas, no Sertão pernambucano. Tudo feito do próprio bolso, sem qualquer tipo de ajuda governamental. O único pedido ao poder público foi o de asfaltar a esburacada estrada de barro que liga a rodovia à porta dessa fazenda que, com mais de mil hectares de mangas plantadas, abastece prateleiras de supermercados europeus, asiáticos e americanos. Como de se esperar, até agora, petição não atendida! As empresas existem para dar lucro, eu sei. Acionistas e investidores concordam. Lucro não é pecado. Mas é preciso pensar a empresa como ator social fundamental. Imperioso fortalecer a cultura da empresa cidadã. Não estou a pregar que se transformem em instituições de caridade. Elas, as empresas, não existem para garantir lugar no céu. Contudo, além dos lucros, objetivar a melhoria da comunidade onde estejam inseridas, parece-me coerente com a função social constitucionalmente exigida, além de ser simpático aos olhos de todos, incluindo aí, clientes. É preciso ter cuidado, no entanto, para que não recaia nos ombros dos empresários o fardo de preencher lacuna secular deixada pela omissão de governos desastrosos que se sucederam, ao longo dos anos. Mas fiquem ligados, amigos empreendedores, porque organizações exponenciais não são apenas as que estiverem dispostas a realizar algo radicalmente novo no âmbito tecnológico, por exemplo. Aquelas que realizarem algo radicalmente novo no âmbito social também colherão doces frutos, como aqueles carinhosamente plantados neste Sertão. Os ensinamentos do Banco Imobiliário, jogo que divertiu milhões de crianças e adolescentes ao longo dos anos, são aplicados no mundo dos negócios. Tornar-se o mais rico jogador, passando por cima dos outros, é o esporte preferido de muita gente. O objetivo do jogo é, implicitamente, falir o oponente. Isso nos é ensinado, desde cedo, ainda que sutilmente. E por isso algumas empresas, por exemplo, pagam o fornecedor com 120 dias. A quem interessa isso? O jogo não precisa ser sempre jogado do jeito que nos ensinaram. Vocês não vão acreditar no poder dos olhos esperançosos que meus olhos encontraram. Não dá para descrever a emoção em saber que algumas dessas crianças, aos sábados e domingos, choram porque não é dia de ir à escola que foi construída para eles. Imaginem! Não dá para relatar em palavras o que é presenciar aqueles pequenos sertanejos em êxtase pela chance que o semiárido nordestino não costuma dar. Nada é mais disruptivo do que mudar a realidade do entorno. Tudo isso sob a benção do São Francisco.

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Copa do mundo

*Por Bruno Moury Dizem meus tios que quando Paolo Rossi fez o terceiro gol, aos trinta do segundo tempo, atravessei a sala de casa na velocidade do Zico e me enfiei embaixo da cama com a precisão do Sócrates. Chorei copiosamente com o calcanhar de fora. Lá costumava chorar quando criança. Maradona e Caniggia detonaram o Brasil. Após o apito final, fui para a varanda do apartamento dos meus pais e gritei: “Argentina, Argentina, Argentina”. Fui mais esculhambado pela vizinhança do que Lazaroni pela torcida. Adolescente possui um jeito estranho de extravasar suas decepções e angústias. Quando Zidane acabou conosco em duas oportunidades, afoguei minhas mágoas com excesso de bebida. Tomei todas. Com o 7x1 minha reação foi desligar a TV quando já estávamos tomando de cinco. Fui dormir. Até hoje não vi os dois últimos gols. Nunca mais assisti. Quando imagens desse jogo são mostradas, me faço de doido. Finjo que não é comigo. Nunca vi. Não quero ver. Tenho raiva de quem viu. Derrotas em copa do mundo me dão profunda melancolia. É como se o mundo fosse acabar. Como é que um bicho “véio”, vivido, pai de família, pode ser tão imbecil ao ponto de se sentir deprimido em razão do resultado de um jogo onde 22 marmanjos correm atrás de um pedaço de couro redondo? Não sei explicar. Maluco é o futebol. Eu não! Essa paixão ardente que nós, brasileiros, temos. O sonho de infância. O grande sonho de ser um jogador. Talvez seja essa a explicação para nos transformarmos em loucos varridos durante 90 minutos. Essa frustração infantil é que faz roermos as unhas das mãos e pés. Sim, pés. Que faz brigarmos entre si, abraçarmos inimigos, beijarmos bochechas desconhecidas e rasgarmos as roupas uns dos outros. Que faz uma senhora elegante como minha sogra ir à feira do troca-troca, ávida por completar seu álbum de figurinhas da copa. “Só falto o Sérgio Ramos, da Espanha”. Que louco, isso! “Vá logo meu filho que titia tem que ir trabalhar. Você tem ou não tem o Sérgio Ramos?” Só o futebol permitiria o diálogo entre uma sessentona e um menino de sete anos sem três dentes faltando na linha de frente. O ponta direita, o centroavante e o ponta esquerda. Minha sogra procura pelo Sérgio Ramos até hoje. E já terceirizou a busca ao meu sogro. Agora é marcação homem a homem. Memória futebolística é algo de impressionar. Lembro de absolutamente tudo que fiz no dia em que conquistamos o tetra. Da hora que acordei até a hora de dormir. Lembro do que comi no café da manhã, da roupa que vesti, pegando o carro para ir à casa de um amigo que bebeu demais antes do jogo e passou todo o segundo tempo vomitando agarrado à privada. Jamais diria que seu nome é Leonardo Dowsley. Isso não se faz com um amigo. Joguemos juntos, meu povo. Amarre aquela pessoa azarada ao pé da mesa para que ele não embarque para Moscou. Ponha a cueca da sorte. Ore pela costela do Neymar ou pela Marquezine, se preferir. Tenha paciência para explicar o impedimento a quem só assiste aos jogos a cada quatro anos. Cante alto o nosso hino. Beba com moderação ou beba até cair porque, de um modo ou de outro, você ouvirá a voz do Galvão ao pé do ouvido: “Olha o que ele fez! Olha o que ele fez! Olha o que ele fez!”

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Lagarta

Desde que passei a observá-la, há 20 minutos, andou metro, talvez metro e meio. Ultrapassa pedras com persistência, paciência e perseverança. Obstáculos vencidos com rebolado. É brasileira, a lagarta. Gingado de sobra. É colorida, a lagarta. Sensual, lenta e ofuscante. Sozinha, sem os seus por perto, lá vai ela. Por hora, tem somente a mim. Não sabe o risco que corre. Humanos são imprevisíveis. Pisá-la não seria tarefa difícil. Mas hipnotiza-me sua beleza. O tênis made in China logo desiste da maldade que pensou em fazer. Por que faria(m) isso? Acomodo-me no batente que divide a estradinha de paralelepípedo da porção de terra pedregosa onde desfila. Resolvo observar-te, querida. Almejo acompanhar-te do pedestal desta calçada. Do alto de minha falsa superioridade, desejo saber onde vais. Qual teu destino, lagartinha brasileira? Observo teu pequeno mundo. O modo como te moves. Tua solidão. Tua elegância. Tua maneira de encarar os desafios. Invejo-te. Parece que não tens que dar satisfação a ninguém. À exceção desta momentânea visita, ninguém mais procura saber de ti. Ninguém. Absolutamente ninguém. Ponho-me a imaginar uma vida como a tua. Sem grandes decisões a serem tomadas. Sem satisfações a dar. Sem explicações. Sem ter que se expor à multidão. Sem sonhos frustrados. Sem ser julgada. Sem metas, nem relatórios. Sem contas a pagar. Sem escolhas difíceis. Andas, agora, mais depressa. Parece que sentes minha presença. Desesperadamente rápida. De repente...imóvel. Implacável. Bastou esse inseto atravessar teu caminho para esqueceres de mim. Ignoras, por hora, minha humilde presença. Somente folhas, pensava, interessariam a ti. Alimentar-se, ao sol ardente deste agreste, devorando o minúsculo nojento, não me apetece. Mas torço para que se delicies no banquete divino da sobrevivência. Como te entregas de maneira linda aos prazeres da vida, lagartinha. Maravilha é andar por aí, sozinha, independente, fragilmente forte, autônoma. Mesmo com todos os perigos que esse pequeno pedaço de chão possa te oferecer. Invejo tua coragem ou, talvez, tua ignorância do perigo. Tua audácia em subir essa pedra impressiona-me. Poderias vir pela direita onde o caminho está livre. A decisão é tua. Quem sou eu para dizer a ti por onde andar? Quem sou eu para opinar assim de forma tão invasiva quanto aos caminhos que a vida te faz optar? Pois saiba você, lagarta sedutora, a simplicidade da tua vida é algo extraordinário. É de se admirar. Gostaria de te dizer isso antes de partir. Talvez nem passe por essa cabecinha desmiolada, mas qualquer dia desses, sem menos esperar, voarás. Para bem longe. Para uma nova vida. Para novas possibilidades. Quem sabe, encontros. E não há nada mais animador, lagartinha querida, do que recomeçar. Renascer. Voar. Para bem longe. De preferência, para uma vida igualmente simples e plena, como é a tua.

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