Arquivos Raul Lody - Página 3 de 6 - Revista Algomais - a revista de Pernambuco

Raul Lody

Água de pote: a boa água de beber

A boa água é essencialmente limpa, e quando fresca melhor ainda. São muitos os imaginários sobre a água, e a esses imaginários integram-se os cenários culturais e sociais que ritualizam esse tão precioso líquido.  Água de pote é uma categoria regional, uma tipologia de “lugar” para a água na casa. É a água guardada em potes de barro com várias características estéticas. Geralmente um pote de barro pode comportar de dez a vinte litros de água. Além de ser um utensílio, o pote é também um objeto fundamental por preservar a água de beber; ele exibe e comunica: “temos água, água boa porque está no pote”. Quase sempre os potes têm tampas de madeira que são feitas especialmente para o uso doméstico. Ainda, é comum que a boca do pote esteja protegida por uma toalha de pano, pano alvíssimo, como se atestasse uma qualidade de limpeza, assim, a água ali guardada é tão limpa, tão pura, quanto a brancura do pano. Normalmente, o pote está na cozinha ou, como ocorre em muitas casas do Nordeste, ou em ambiente único da casa. O pote quase sempre, nesse contexto, ocupa um tipo de mobília chamada de banca de pote, que é “entronizado” com destaque na casa. Geralmente no entorno do pote estão às fotografias da família, os quadros de santos, ou outras informações visuais importantes que são concentradas e exibidas próximas ao espaço da água; assim, como os copos, as canecas, as cuias, e as meias cabaças, que são para se beber a água, e também os utensílios para se retirar a água dos recipientes. Vê-se o aproveitamento do coco seco para se fazer o “coco d’água” – tipo de caneca especial para se retirar a água do pote. Há outro tipo de utensílio para se retirar água do pote que é feito de flandres, e apresenta as bordas dentadas, justamente para evitar que se coloque na boca, e assim se mantém a água limpa e boa para o consumo. Sem dúvida, o pote participa do processo de decantação das impurezas da água, pois as águas chegam de muitos e diferentes lugares. O pote confere à água odor e sabor especial que vem do barro. Essa água é comparada à “água de quartinha”, que é outro tipo de recipiente de barro, só que de uso individual, para conter e servir água.  Há a tradição de se dizer que: “água de quartinha e água de pote são mais gostosas”. Atribui-se, por isso, uma qualidade especial a esse tipo de armazenagem. Esses recipientes mostram as possibilidades de preservação da pureza desse tão preciosos líquido para o consumo humano. Esse é um processo tradicional de filtragem. Como ainda acontecem com os tradicionais filtros de barro, alguns artesanais e outros industrializados. Beber água de pote é um componente da construção do paladar, é a inclusão de um novo sabor que também está na comida preparada com esta água de sabor especial e peculiar. O pote na maioria dos casos é a única opção de se ter água “potável” em casa. São milhares de casas no Nordeste, na região amazônica, e em outras regiões que utilizam esse utensílio como sendo a única maneira possível de acondicionar água. A água de pote é um forte retrato da vida de milhares de brasileiros que ainda recorrem a esse costume para se ter certa qualidade na água que é destinada ao consumo na casa. Água para se beber e para se fazer comida. Em outros cenários é crescente o cuidado gastronômico no consumo da água, inclusive numa valorização que requer até os serviços de um “sommelier” especializado para água.

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Pernambucanamente se diz: o cão chupando manga

Gilberto Freyre, sociólogo, antropólogo pernambucano autor de Casa Grande & Senzala, e especialmente para os interessados em gastronomia, também autor de Açúcar (1937), dizia do hábito de comer manga de garfo e faca. Bem, é esse um hábito muito especial, visto que para os apreciadores da manga, fruta oriental, que certamente chegou da Índia para o Brasil, estabelecendo-se uma relação física, quase sexual. Comer ou chupar manga, como é comum ouvir-se, reveste-se em um ritual que se inicia na escolha olfativa da fruta, que certamente seduz o usuário pelo perfume da terebentina. Depois a cor: mangas rosadas, amarelas, alaranjadas, umas quase vermelhas são identificadas, notando-se ainda volume e assim o tipo ou qualidade de cada espécie. Após a apreciação e seleção, segue-se o toque para saber a textura, e se esta no ponto; madura, pronta para ser comida ou chupada. Então, finalmente, após tantos processos a manga é vorazmente sugada, mordida, chupada, mastigada, retirando-se a fina casca com os dentes, com os dedos, com o uso de uma faca ou joga-se a fruta no chão para ficar cremosa, quando se faz um delicado orifício para sorver um misto de carne-polpa e caldo grosso, delirantemente deliciosos. Assim, num diálogo corporal que vai além da boca, sujando o rosto, as mãos e outras partes, a manga é plenamente consumida em seqüência de ludicidadde, de uma fruta que é descoberta até o caroço, também alvo de largas chupadas, algumas “fiapentas”, outras carnudas, ainda rijas, moles, contudo todas deliciosas. Lembro-me em Havana dos chamados Filés de Manga, pedaços generosos, como se fossem filés de carne, para serem misturados às saladas ou então para serem egoisticamente consumidos sozinhos, celebrando a essência da fruta tropical que se mostra em cachos nas mangueiras _ lindas árvores que dão sombra e dão sabor. Pergunta-se: então o que é mesmo o cão chupando manga, expressão popular do Nordeste, especialmente em Pernambuco. O imaginário nasce de uma leitura entre o cão, o diabo e a manga, fruta que exige técnica para ser consumida. Contudo a imagem-metáfora é a do animal tentando comer/chupar uma fruta tão complexa, a manga. Fica então a cena de um cão chupando manga, ritual que implica em um animal se relacionando com a fruta que lambuza, que mela de amarelo, que faz mais o corpo comer do que a boca. Que cena!

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Açaí: a busca pelo saudável

Está na Amazônia, um exuberante cenário de povos nativos, civilizações milenares, que vivem e têm na floresta o encontro mais equilibrado; pois, ensinam as maneiras de interpretar e de simbolizar o território. É a união da mata com a água. É a união da mata com a água e com o mito. São escolhas, experiências. São formações de sistemas alimentares que vivem o lugar e suas tradições. Pois cada planta, ‘bicho’, tem um significado mitológico, um entendimento ritualizado que faz da floresta um território de vida e de preservação. Assim, frutas, caça e pesca, são as bases das comidas que integram os povos da floresta. É a pertença ao território. Euterpe oleana Mart, o nosso tão conhecido açaí, é uma fruta nativa, e que representa o imaginário da Amazônia. Faz parte dos hábitos alimentares de milhares de brasileiros da região, do Brasil, e também do exterior. Sem dúvida, o açaí é identidade da Amazônia. É uma identidade tão intensa quanto o gosto pela farinha de mandioca, e pelos seus muitos produtos que fazem a mesa tradicional da região. Do açaí se faz o “vinho”, uma bebida grossa que misturada à farinha de mandioca é uma comida que traz a Amazônia à boca. Ambos são ingredientes da “terra”, têm o gosto da floresta. A melhor farinha para se fazer a comida com o açaí é a farinha grossa, farinha d’água, mais granulada; e que pode ainda ter a cor amarelada quando é acrescida de tucupi. A essa comida ainda se pode misturar camarão seco e peixe. O melhor vinho açaí é aquele feito artesanalmente, quando o fruto está tuira – no ponto da maturação –; e, é neste ponto que retirando o ‘mosto’ – conhecido na região como “paro” ou “parau”. Esse néctar da Amazônia é também base para mingaus, sucos, vitaminas, sorvetes, cremes, recheios para tortas. É o crescente olhar para o que é “natural”, para o ingrediente que chega da floresta, como uma ação real onde se come a floresta e suas propriedades. O açaí representa esses valores. Vive-se no açaí uma espécie de idealização do que se entende por “natural”, por símbolo da natureza que alimenta, que dá energia, que é essencialmente saudável. O açaí é um notório energético com valor calórico superior ao leite vacum. É rico em fósforo, ferro e outros minerais. Contudo a colheita do açaí é artesanal e complexa, exigindo do coletador uma grande habilidade para se chegar aos cachos que estão nos longos e delicados troncos. Ainda, do açaizeiro é extraído um excelente palmito. Essa extração é ampla e indiscriminada, fazendo com que seja urgente a realização de um projeto para o manejo e preservação dessa espécie nativa.  Une-se ao açaí o guaraná, a granola, a banana, o mamão, o abacate; o leite de coco, a água de coco; e tudo mais que simbolize um produto natural, que é saudável. . Para se comer verdadeiramente o açaí deve-se ter uma cuia, dessas que se encontram no mercado do Ver-o-Peso, em Belém; colocar o “vinho” do açaí que foi processado artesanalmente; escolher uma boa farinha d’água, daquelas bem granuladas; e, com a mão misturar, misturar muito, para que aquele líquido da Amazônia possa embeber a farinha, encharcar a farinha; e se quiser acrescente alguns camarões secos; aí, então, senta-se no chão, olha-se um igarapé, respira-se fundo; e viva o seu melhor açaí à boca.

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Uma doce Páscoa

As festas reúnem e comovem as pessoas e nelas há muitos e diferentes processos culinários que ressignificam as comidas e as tornam simbólicas. Isso acontece porque festa sem comida não é festa. Com certeza, está nas festas um dos principais motivos para experimentar cardápios especiais, que são preparados com ingredientes também especiais; e que marcam a identidade e o motivo destas celebrações. Páscoa sem chocolate, sem o estimado ovo de Páscoa, preparado com diferentes tipos de receitas de chocolate: ao leite, amargo, com amêndoas, e claro com açúcar; além de muitos outros sabores que trazem esta festa para a nossa mesa. O ovo é um símbolo muito antigo que representa fertilidade, vida, continuidade, renascimento, porque a Páscoa no Hemisfério Norte acontece na Primavera, que é a estação da renovação, da procriação, da colheita, das frutas, das flores, das cores; tudo isso é a Pascoa. Antes dos ovos de chocolate, que começaram a aparecer no Século 14, essa festa milenar fazia com que as pessoas oferecessem ovos cozidos, de diferentes aves, e com as cascas decoradas com desenhos e pinturas de variadas imagens que marcassem a alegria da vida. Ainda no Século 14, foram famosos os ovos que foram artisticamente feitos pelo joalheiro Peter Carl Fabergé, que criou ovos de Páscoa como se fossem joias espetaculares feitas de ouro, esmalte e pedras preciosas, sendo exclusivos para as cortes do czar da Rússia. O nosso chocolate, este que identifica a festa da Páscoa, chega no século 16 do México, com a civilização Asteca, que valorizava o cacau como um fruto sagrado, e usado para a feitura de uma bebida chamada “cacuhualt”. Contudo, são os espanhóis que difundem e trazem o cacau, e suas receitas tradicionais, para a Europa; e, é o rei Carlos V, da Espanha, que manda adicionar leite, especiarias e açúcar na bebida. A classificação botânica do cacau – Theobrona cacao –, se feita por Linneu. E o chocolate passa a ser, então, popularmente chamado de “manjar dos deuses”. O cacau é uma espécie nativa da América Tropical, que compreende a região que vai do Peru ao México. E o cultivo do cacau no Brasil começa no século 18, no sul da Bahia, região que até hoje é considerada como a sua maior produtora. E o Brasil ocupa a 5ª posição no mercado internacional do cacau. Uma sugestão de receita para adoçar a sua Páscoa Salame de Chocolate Ingredientes (serve 8 pessoas): 300 gr. de biscoito seco tipo maisena; 150 gr. de manteiga em temperatura ambiente; 200 gr. de chocolate fondente (meio amargo); 2 ovos; 100 gr. de açúcar cristal; açúcar de confeiteiro o quanto bastar; 1 folha de papel manteiga. Modo de fazer: Esfarele grosseiramente os biscoitos secos com as mãos. Leve o chocolate em pedaços para derreter em banho-maria. Enquanto isso, numa tigela, coloque a manteiga e a açúcar e misture bem; aí acrescente os ovos inteiros e continue a mexer até ficar uma pasta lisa e homogênea. Coloque o chocolate derretido, morno, na mistura de ovos com manteiga e açúcar. Misture até fica tudo bem homogêneo; então acrescente os biscoitos e misture a massa com as mãos. Agora, coloque a massa sobre a folha de papel manteiga, com o auxílio de uma espátula, espalhe-a sobre o papel sem que chegue até as bordas. Aí você vai dar a forma cilíndrica para massa com a ajuda do papel, e assim formar o salame. Depois de ter modelado a massa, embrulhe no papel manteiga e amarre as pontas do papel como se fosse um salame, ou embrulhe com papel alumínio. Leva para o congelador para repousar por pelo menos 4 horas. Passado o tempo, você polvilha o açúcar de confeiteiro sobre um tabuleiro, desembrulha o salame de chocolate, e passe-o sobre o açúcar, e está pronto para servir.

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Cachaça, limão e saúde

A nossa tão celebrada branquinha, purinha, ‘água que passarinho não bebe’, integra os melhores momentos de comensalidade enquanto abrideira de refeições, e ao mesmo tampo abre as relações sociais, aproxima as pessoas, e possibilita momentos para serem disfrutados nos rituais da alimentação. Refiro-me a nossa cachaça, que certamente faz parte de um dos hábitos mais brasileiros à mesa, seja em casa, no balcão de bar ou de botequim, numa banca de feira ou de mercado, quando se vive a tão gostosa ‘talagada’, aquele gole inteiro e único dessa bebida que nasce da cana-de-açúcar. A cachaça, quase sempre, é servida pura, em copos pequenos, dose simples ou dupla, de opções de cachaças novas e brancas; ou envelhecidas em barris, quando ganham um buquê especial que revela um amplo universo de cores, sabores e perfumes, que proporcionam um encontro com o bem beber. Pura, com um pedaço de limão, com uma colher de mel, ou na mistura com vermute, um tipo de traçado, o popular ‘rabo de galo’, são algumas das muitas opções de se relacionar com a cachaça. É uma bebida que aproxima as pessoas e as aproxima dos sentimentos sagrados. Porque as bebidas fortes, em mutas tradições religiosas, têm a propriedade de criar alianças com os deuses e os ancestrais. Por exemplo, Exu, para os Ioruba, é o orixá inaugurador do mundo, aquele que tudo come, e que tem preferência pelas bebidas alcóolicas. No nosso caso brasileiro, é a cachaça; no caso nigeriano, é o gin; e em Cuba, é o rum. Também, essa relação da bebida com a religiosidade é comum nos sistemas de fé por marcar um sentido masculino e sexual, que estão representados nessas bebidas fortes, além das suas muitas conexões com a vida. Ainda, nas tradições populares, a cachaça é uma boa amiga, porque funciona para celebrar, cultuar; e manter hábitos terapêuticos, como: para passar nas picadas de insetos; para prevenir e curar resfriados adiciona-se sumo de limão e uma colher de mel à cachaça. Há muitos outros usos considerados funcionais no cotidiano e integrados aos momentos de sociabilidades. Nesses cenários tão amplos, e de permanências culturais, outro uso social da cachaça é de uma mistura consagrada nacionalmente como caipirinha. Uma mistura clássica que nasceu, provavelmente, das receitas do uso da cachaça para curar os resfriados, nesse caso, substituiu-se o mel por açúcar. Assim, a partir do hábito cotidiano de misturar cachaça e limão surge a nossa patrimonializada caipirinha. Um verdadeiro símbolo de bebida nacional. Entretanto, a glamorização da caipirinha faz com que seja preciso estabelecer uma data, o dia e a hora do certificado de nascimento. É mais uma busca por apropriação do mercado de consumo. E trazer, neste atual momento da pandemia, a caipirinha como a recuperação de uma invenção de cura para a gripe espanhola, início do Século 20, é mais um casuísmo, visto que a tradição de utilizar a cachaça com limão para  constipações já está arraigada no imaginário popular. E com tantas qualidades dessa bebida nativa, a nossa cachaça tem mostrado novos estilos, marcas, técnicas e assinaturas de fabricação; e entrou no mercado globalizado. Esse vinho de borras, vinho da terra, a cachaça brasileira é o resultado da cana sacarina oriunda do sudoeste asiático que vem marcar uma verdadeira ‘Civilização do Açúcar’ no Brasil. É uma busca pelo espírito da cana-de-açúcar. Ela não necessita de defesa e sim de compreensão da gastronomia, pois ela já está integrada à vida e aos símbolos da cultura há muito tempo. A cachaça é uma bebida que está acima do bem e do mal.

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Um olhar guloso

As refeições são acompanhadas pelo olhar, pelas palavras, por textos emocionais, por expressões estéticas; por louvações ou por críticas. E estes rituais do comer se iniciam quando se saboreiam as imagens dos pratos, das mesas, e de tudo mais que for mostrado no acervo desse banquete. Tudo isto faz parte da construção subjetiva da alimentação. Assim, os cenários e as pessoas se tornam comestíveis. Há uma verdadeira dramatização à mesa para que se cumpra este ritual. Come-se com garfo e faca. Come-se com colher de prata, de madeira, de osso. Come-se com hashi. Come-se “de mão”. Come-se sobre folhas de palmeira, sobre folhas de papel. Porém, come-se primeiramente com os olhos, e depois com o com o corpo inteiro. Comer é uma ação muito mais ampla do que simplesmente a ingestão de sais minerais, proteínas e gorduras para se nutrir. E é a partir das muitas maneiras de se relacionar socialmente com a comida e com a bebida que são estabelecidos os diferentes tipos de comportamentos culturais. São verdadeiras parcerias emocionais que marcam o reconhecimento e as próprias memórias ancestrais. Tudo isto ocorre porque a alimentação é um processo de simbolização de referências, que são tanto históricas quanto pessoais. Agregam-se a estes processos da alimentação o sentido de cada ingrediente, que é valorizado e respeitado no seu território, o terroir. Assim, sazonalidade, características como cor, aroma, forma, textura; e, finalmente sabor, criam a identidade do ingrediente que remete ao símbolo, ao sonho, ao desejo de comer, de viver o sabor, de se encontrar com a comida. Entretanto, é a busca pelo gosto mais gostoso que desperta o olho-grande, o olho-gordo, a vontade de comer cada vez mais daquilo que se gosta. Merengue, chantili, bomba-de-chocolate, sorvete, brigadeiro; frango no espeto; acarajé do tabuleiro da baiana, entre outros, são exemplos que motivam o desejo, o sonhar em comer a comida dos sonhos. Além disso, há uma relação da comida com o seu lugar de produção ou de consumo; seja o bolo daquela padaria escolhida ou a comida de um restaurante especial. A busca pelo sabor acontece quando a pessoa recorre as suas memórias, sonha, sente em si mesma uma ligação com aquela comida especial. E as narrativas, e justificativas, são muitas. São as conexões que as pessoas fazem para ampliar o significado de cada comida. Por exemplo, a maçã tornou-se um símbolo fundamental da moral cristã, enquanto fruto do paraíso, fruto primordial e ancestral do desejo, o fruto proibido; a romã ganha um amplo significado de fertilidade e multiplicidade nas tradições tanto do Ocidente quanto do Oriente. Sem dúvida, isto tudo ocorre porque cada ingrediente, processo culinário, resultado de receita, é essencialmente simbólico, emocional, e não apenas alimentar. "Comer com os olhos” é também uma preparação, a percepção que desperta o desejo, um estímulo que produz saliva, que traz à lembrança o sabor. Sonhar com o sabor e ficar com a boca cheia d’água; e, assumir aquele olho-gordo. É uma ação orquestrada sensorialmente em que atuam os olhos, o nariz, e os ouvidos, quando se percebe os sons dos pratos, das panelas, as vozes que chamam para o tão esperado momento; e finalmente tudo culmina num ritual ideológico que é marcado no corpo inteiro, o ato de comer. Porque come-se de corpo e alma. A comida integra-se aos diversos imaginários, sentimentos e sensações, e tudo isto faz parte das muitas formas de manifestar pertencimento. Gostar, desejar, querer comer “aquilo” ou aquele ingrediente, vem de uma motivação que é temperada pela história, pela sociedade, pela religiosidade; pelos papéis sociais que a cultura determina para homens e mulheres. Imaginar os sabores e experimentar a comida compõem momentos de uma relação íntima da pessoa com a sua cultura. E é ainda um dos mais notáveis exercícios de prazer no gozo dos sabores. Saciar a fome não é apenas uma necessidade biológica, mas uma necessidade moral, cultural simbolizada em princípios individuais e coletivos.  

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Para falar em gula

PARA FALAR EM GULA “No país da Cocanha, uma rara utopia da Idade Média (...) que aparece em um documento de 1250, descreve o território imaginário onde não se trabalha, onde tudo é luxo e volúpia. Os campos de verduras prontas para serem consumidas, de sebes (cercas de plantas) formadas de salsichas que após serem colhidas e devoradas brotavam em seguida (...) As cotovias já caem inteiramente assadas nas bocas felizes mortais (...)”. (Lê Goff: 2003) Na cultura ocidental judaíco-cristã, o trabalho dignifica a alma e a conta bancária, e assim vive-se num mundo urbano globalizado que assume o padrão massificador das grandes redes internacionais de fast-food, e que ao mesmo tempo também busca e valoriza a comida étnica, tradicional, exótica, dando um lugar especial aos muitos rituais associados ao fazer, ao servir e ao comer. A comida, a cozinha, o restaurante, ganham um crescente glamour hollywwoodiano que fazem dos chef’s verdadeiros ídolos da sociedade contemporânea. Um fenômeno que merece ser olhado nesses contextos globalizados da fome invadindo muitas regiões de um mundo que fica cada vez mais gordo. Então, o comer bem, o comer muito, a gula, esse vício, pecado, vai ganhando novos sentidos e sentimentos em cenários do food fashion. Os conceitos históricos do comer muito, de ter gula, são certamente relativizados com tudo que compõe e integra o que é comer: natureza, ingredientes, economia, população, significados que vão se adequando aos múltiplos processos da sociedade e da cultura. As cozinhas tradicionais do Brasil são gulosas, ricas, maternais e oferecem muito para comer bem, pois vigora o ideal do comer bem com o comer muito. Permanece um amplo olhar de que muito é fertilidade, e que a fartura é o muito na sua mais profunda variedade de ingredientes e processos culinários. Assim, para falar de feijoada é preciso falar de prato cheio, montanha, mistura do feijão, geralmente gordo de adubos _ lingüiças, toucinho, carne seca, paio, carnes salgadas _ e tudo mais que a leguminosa deve receber para o império do sabor e do cheiro que chamam impiedosamente à mesa; começando na abrideira de cachaça e frutas; da laranja ao lado da couve à mineira; da farofa tão gorda quanto o feijão, e aquele arroz branco, quase ingênuo que vai morar junto ao garfo e, então, celebrar a feijoada. E, o acarajé contemporâneo é um ampliado sanduíche, daí o nome sanduíche Nagô, com recheios de vatapá de acarajé, que é mais simples do que o vatapá de mesa, camarão defumado e refogado no dendê, caruru, salada, molho grosso de pimenta e, então, a África vai à boca e a gula também. Esse pecado que precisa ser recuperado enquanto virtude de uma sociedade cada vez mais “anoréxica”. Chocolates, de mão cheia, brigadeiro de colher; barras dos bons chocolates da Alemanha, da Suíça; bolos, tortas com sorvete de creme, profiteroles inundados de calda quente de chocolate, e tudo mais que o cacau, sua alma e sabor possam fazer para liberar endorfina e trazer prazer. Come-se tudo! Come-se de tudo! É nesse sentimento e destino onívoro que se situam os temas religiosos do comer, do jejum, dos tabus do comer isso e não aquilo, ou se comer terá de cumprir algum ritual, ou estar adequado a algum princípio que oriente o que é muito, e como esse limite é rigorosamente filho da cultura. Nas festas tradicionais o bem comer é o mesmo que comer muito, para assim melhor viver a festa, louvar o santo, celebrar o sagrado pela boca. Por exemplo, nos terreiros de candomblé, a avaliação vai se dar pela qualidade, mas principalmente, pela quantidade da comida oferecida. “Mocotó, rabada, sarapatel, leitão a pururuca, dobradinha, galinha de cabidela, maniçoba, vatapá, caldeirada, pato no tucupi, barreado; assado de boi, de cabrito, de cordeiro..”. Tudo deve ser servido e comido em quantidade para, então, celebrar as muitas opções dos acompanhamentos, experimentando somente assim uma compreensão verdadeira da comida. Certamente vive-se um novo conceito de gula, talvez o de comer bem e não o de comer muito. Também a comida vem ganhando novos e atualizados “entornos”. O fast food massificado é um dos temas dominantes sobre o bem ou o mal comer, em contextos em que o natural, o vegetal, impera como domínio do consumo à mesa, combinados na mais nova e fantástica dieta que realiza verdadeiros milagres. Ainda, nesse campo de sabores e preferências, a cozinha tradicional identitária e patrimonial atesta um tempo histórico e processos culinários aliados a representações que unem, muitas vezes mitos, deuses, temas da ancestralidade, modismos, e que ganham sentidos e símbolos na construção de pertença do indivíduo e do seu grupo. É um experimentar além das ditaduras nutricionais e quase sempre da consagrada boa higiene.

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A água tropical

Cada vez mais os produtos naturais são valorizado, numa filosofia de vida que traz a natureza como um tema dominante e de reafirmação de humanidade. Destaque do que vem de uma fruta exótica e que já se tornou tão brasileira que é ococos nucífera, o nosso tão estimado “coco verde” ou simplesmente coco. Da ampla família das palmeiras, tudo se aproveita, é verdadeiramente uma árvore de total utilidade, e por isso nas regiões de sua procedência, Oriente, especialmente países tropicais como a Índia, o coqueiro é considerado como a “árvore do paraíso”. Os coqueirais, sem dúvida, no nosso extenso litoral, fazem as mais fantásticas paisagens, e assim o coco é uma fruta dominante na estética praieira, e principalmente na gastronomia compõe extensos cardápios das tão celebradas “comidas de coco”. Nada melhor do que a água de um coco aberto na hora pelo vendedor à beira mar. Com o uso do facão, quase liturgicamente, executa desenhos feitos no ar realizado em gestos vigorosos e delicados, um quase balé, quando finalmente se chega a polpa da fruta, e finalmente a água. É o néctar que traz o gosto mais gostoso do Trópico.. Ainda, para complementar o banquete, com o uso de um pedaço da casca do coco é retirada a “laminha”, que é a parte mais tenra e macia da fruta. _ Uma delícia!. No Manifesto Regionalista, anos 1920, Gilberto Freyre, que, coerente a sua obra, destaca a importância patrimonial e simbólica da comida. Ele entende que a comida é antes de tudo identidade e referência de povo e país. “Ao chegar ao Recife, guloso de cor local, um dos meus primeiros espantos foi justamente numa confeitaria 'chic', o mate. Como não era 'chic' pedir água-de-coco ou caldo de cana.(...)” (FREYRE, Gilberto. Um café para o Recife. Diário de Pernambuco, Recife, 1920). A produção industrial da água de coco é oferecida diferentes tipos de embalagens. Contudo, a melhor embalagem é a da natureza, quando o próprio coco garante a qualidade, a conservação, e o sabor da água. A água do coco in natura é um alimento rico em: potássio, sódio, cálcio; ferro, fósforo, zinco; cobre manganês, selênio; e vitaminas C, B6, B12, riboflavina; entre outras. É consenso que beber água de coco é beber saúde. Além de ser saborosa, está integrada ao imaginário dos cenários tropicais, quando ganha a sua plenitude simbólica. E, nós humanos, como sabemos, comemos com todos os sentidos. Da mesma forma como se faz com os vinhos, com as cachaças; com as águas minerais, cada vez mais valorizadas pelos seus sabores; e com tantas outras bebidas, é preciso perceber as variações no gosto de cada água de coco. Pois, em cada coco haverá uma água diferente. E, assim, nesse contato direto com a natureza é oferecido, ao paladar, as diferentes oportunidades de sabor. Somente assim a água do paraíso será intensa.

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Feijoeiros , Feijoadas e os paladares cotidianos.

Sob as denominações de feijoeiros e feijões estão incluídas plantas e sementes de diversas espécies, reunindo dezenas de tipos. As espécies principais são do gênero Phaseolus. Phaseolus aconitifolius Jac. var. – origem americana Phaseolus angulares Wild – origem japonesa Phaseolus aureus Roxhg – cultivado a muito tempo na Índia Phaseolus lunatus L – origem na Guatemala Phaseolus vulgaris L – origem na América do Sul Levado para Portugal, Phasedus vulgaris L, no século 16 resulta em profundas transformações na agricultura e na alimentação, combinando-se com o milho e a abóbora, substituindo algumas leguminosas como as lentilhas, resultando em novos cardápios. Para Angola, introduzido pelo brasileiro chega o Phasedus aureus Roxhg, bem como a nossa mandioca, nativa que também compõe com o feijão a dieta mais popular e nacional desse país africano Os pratos misturados, reunindo diferentes tipos de carnes, pescados, crustáceos, temperos, leguminosas, é uma antiga tradição européia, reunindo assim em uma mesma panela ingredientes que se complementam, intercambiando sabores e adquirindo rica e especial identidade. Exemplos: o cozido português, o cozido espanhol, ou ainda o cassoulet na França, feito de feijão branco, incluindo carnes de carneiro, porco, toucinho de porco, pato, ganso e muitos outros temperos. Certamente, em contextos históricos no Brasil Colônia e Império os cardápios dos escravos eram variáveis conforme as opções dos ingredientes. Contudo vigorava uma base formada de pirões de milho, de farinha de mandioca, opções de peixes salgados e frutas que integrando-se aos outros cardápios, digam-se os europeus, trazendo dos muitos contatos com especiarias, receitas e modos de fazer e de servir orientais, ampliando assim os gostos e as opções gastronômicas. O homem português, já habituado as misturas de legumes e carnes variadas, de certa maneira, é um agente civilizador do comer no Brasil, estando também sensível aos aspectos econômicos e sociais para novos pratos e novas misturas. Atribui-se o valor nutritivo e aceitação nacional da feijoada, que é muito além de um prato, sendo verdadeiro cardápio. O feijão e misturas, reflete também uma grande mistura de povos, etnias e culturas que caracterizam o brasileiro em diferentes cenários ecológicos do litoral atlântico aos sertões, serrados, pantanais, grandes bacias hidrográficas como a amazônica entre outros. Além de forte inspiração na cozinha ibérica, Portugal e Espanha, os encontros com a África, com a vida brasileira fazem da feijoada um prato/cardápio que traduz aspectos desse ser brasileiro. Desse encontro plural, complexo e de identidades tão marcadas pelo que come e se manifesta pelos rituais diversos da alimentação Spix e Von Martius, falam de uma alimentação grosseira de feijão preto, fubá de milho e toucinho de porco, sendo um cardápio bem popular, semelhante ao cardápio de escravos em Minas Gerais e na Bahia, constando de feijão, banana, toucinho e carne-seca. Aí está a base da nossa tão celebrada feijoada brasileira, segundo um estilo à carioca, feita de feijão preto, porco em diferentes interpretações: orelhas, pés, rabinhos, toucinho todos devidamente bem salgados para assim conservar as iguarias, acrescentando-se carne fresca, daí o nome verde e de boi; carne-seca ou carne-de-charque, também salgada, além dos embutidos tais como: lingüiças de carne de porco de diferentes tipos: defumada, do tipo paio entre outras. O feijão bem cozido, deixando aquele caldo grosso, generoso e as carnes em quantidade, pois comer feijoada é o mesmo que comer muito e com muita gente, pois se há um prato socializador é, sem dúvida, a feijoada. Atribui-se a feijoada uma procedência afrodescendente, trazendo, em especial, os miúdos do porco para um aproveitamento gastronômico, ampliando e enriquecendo as opções da dieta alimentar dos escravos, sempre combinadas com as frutas disponíveis como banana entre outras. Há ainda uma combinação obrigatória na feijoada histórica e na contemporânea que é a do acompanhamento de frutas cítricas. A laranja em pedaços e o limão misturado com cachaça e açúcar, certamente para apurar e apontar sabores das carnes salgadas, do arroz, da farinha de mandioca que cobre o feijão ou em forma de farofa acrescida de ovos e demais temperos. Ainda as pimentas, sempre frescas, especialmente vermelhas, como vermelho é o fogo e o sabor que amplia o gosto e estimula comer, comer muito em tempo quase mágico que a comida indica e traduzindo inúmeros significados para o cotidiano e a festa. Além da nacional feijoada de feijão preto, notadamente no Nordeste há a feijoada de feijão mulato ou feijão mulatinho, seguindo o mesmo princípio de carnes, contudo prevalecendo carne-de-charque, carne fresca e acréscimos com as chamadas verduras – quiabo, abóbora ou jerimum, jiló, maxixe entre outros. Essa feijoada caracteriza-se pelos adubos frescos.  

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Farinha sempre farinha

Entre as muitas formas de se comer mandioca, há um caso exemplar e verdadeiramente nacional que se dá com a farinha, a farinha de mandioca. Pode-se dizer que o brasileiro é um “comedor de farinha”, um grande apreciador da farinha de mandioca, e com esse ingrediente ele cria e retoma as memórias milenares das civilizações americanas; e faz cardápios que nos identificam e nos singularizam como povo. Pode-se adicionar farinha de mandioca em quase tudo: nas frutas, nas leguminosas, nos molhos; na pimenta amassada, no ovo, nos peixes; nas aves, nas carnes; no mel, melado; no leite, no açúcar; ou simplesmente pura; saborosamente pura. Farinha para se sentir o “bouquet”, a textura; a qualidade que caracteriza a sua procedência, o lugar, “terroir”, que determina a técnica e o estilo. A farinha acompanha o brasileiro no seu cotidiano, e também no tempo da festa. Farofas especiais, feitas com ingredientes também especiais, e por isso sendo chamada por muita gente de “farofa-rica”; e aonde também se aproveitam os “miúdos” da galinha, que será assada; assim são ampliados os sabores, juntamente com ovos, manteiga, cebola entre tantas outras possibilidades de ingredientes. Também, vê-se o uso da farinha de mandioca como recheio para peixes inteiros, e assados. Muitos são recheados com a farofa de ovos, e com outros temperos. Geralmente essas farofas fazem parte da categoria “molhada”, quando a farinha de mandioca absorve bem seus complementos, e ganha um valor tão significativo quanto o do “prato principal”. Um dos usos consagrados da farinha de mandioca é o para cobrir a comida no prato. A farinha é colocada generosamente sobre o feijão, o arroz, o macarrão. Há uma fantástica liberdade no uso da farinha, e isso compõe as nossas “identidades” gastronômicas. Muito comum, ainda, é o emprego da farinha de mandioca como uma verdadeira “liga” entre tudo que está no prato. Se a comida é mole, uma quiabada, por exemplo, a farinha dá uma consistência especial, pois quando é bem misturada ao prato ela acrescenta novos e especiais sabores. Exemplo sobre a etnografia da “liga”: no prato está o feijão, o arroz, o macarrão – espaguete –, e um pedaço de carne guisada. Então, inicia-se o ritual. Após o reconhecimento da comida com uma faca, o macarrão é picadinho e começa a se revolver tudo até que chega o momento especial de se colocar a farinha de mandioca. Nesse momento de culminância existem alguns princípios. A farinha pode ser pulverizada sobre tudo em várias camadas até se conseguir a textura desejada; ou então a farinha é colocada em grandes quantidades, e com o uso do garfo vai-se amassando geral. Também para a clássica receita do arroz com feijão há essa orientação na formulação do prato, isso passa a ser quase uma regra que é seguida por milhares de brasileiros. Primeiro coloca-se no prato o feijão, nesse caso geralmente o feijão preto; depois farinha, a gosto, é colocada sobre o feijão; e, assim, juntos são amassados, revolvidos, e conforme o desejo do criador da refeição, sobre essa “massa” de feijão e farinha, o arroz. Essas experiências gastronômicas marcam exemplos da boa comida, sem os rótulos exógenos de ser “alta” ou “baixa” gastronomia, que são conceitos estranhos para o meu entendimento sobre o que é uma boa comida.  

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