Mugunzá e manuê. O Manifesto Regionalista pela boca.
Publicado no Recife, em 1926, o “Manifesto Regionalista” foi coordenado por Gilberto Freyre, sendo, à época, um avanço no âmbito das questões patrimoniais e dos temas referentes às identidades e ao conceito do que é regional e nacional. Certamente conceitos ideológicos que são construídos por diferentes processos de bases culturais e sociais. No caso de Gilberto, essas bases também se ampliam à causa ecológica. E assim, um sentimento contemporâneo traz o que é regional, o que é Nordeste em cenários diversos, também numa pluralidade que mostra quantos e quais são os muitos “Nordestes”. Gilberto, no “Manifesto”, confirma sua tendência em buscar nos sistemas alimentares as mais importantes referências para entender um complexo que está integrado ao meio ambiente e as matrizes étnicas e, desta maneira, olhar e buscar traduzir o “homem situado no Trópico”. É sempre muito lírico o português que foi dando aos seus doces e quitutes no Brasil nomes tão delicados como o de alguns poemas: (...) Pudim de iaiá, arrufos de Sinhá, bolo de noiva, (...), nomes macios como os próprios doces”. (Gilberto Freyre) Os muitos acervos que sãos interpretados através das receitas confirmam a presença fundamental de uma “Civilização do Açúcar” na região. Assim, em Gilberto e no seu “Manifesto”, vê-se o homem lusitano que nos revela nas comidas uma colonização euro-africana a partir do Magrebe. “Enquanto isto foi mantendo a tradição vinda de Portugal de muito quitute mourisco ou africano: o alfenim, a alféloa, o cuscuz (...)”. (Gilberto Freyre) A comida, os ingredientes e a alimentação orientam Gilberto neste “Manifesto”, que é profundamente patrimonialista, e que busca um sentimento brasileiro a partir do que come e como come. “Ao lado dos brasileirismos: as cocadas – talvez adaptação de doce indiano, as castanhas de caju confeitadas, as rapaduras, os doces secos de caju, o bolo de goma, o mugunzá, a pamonha, (...), a tapioca seca e molhada, (...), farinha de castanha em cartucho, o manuê.” (Gilberto Freyre) Tudo está muito relacionado ao açúcar como um elemento que exibe a ‘cara’ da região, e que mostra estilos e afirmações de um Nordeste único, peculiar, nacionalmente brasileiro, e distinguido nos sabores e nos paladares. “(...) doce da goiaba (...) experimentar o tempero de um aferventado de peru, (...) ao mercado (...) comer um sarapatel (...) saborear uma peixada à moda da casa com pirão e pimenta (...)”. (Gilberto Freyre) Gilberto sempre busca um lugar estético para a comida, e isto mostra o sentido da arte nos objetos que integram um entendimento de que a comida também é uma realização visual que merece ser apreciada. As mulheres de ganho, das comidas de rua: bolos, acaçás, angus, carurus, acarajés. Mulheres que fazem dos seus ofícios verdadeiras instalações para mostrar a estética de cada comida e para promover o seu consumo. “Mestras na arte da decoração são as negras de tabuleiro que enfeitam seus doces com papel recortado”. (Gilberto Freyre) No “Manifesto”, as celebrações, o teatro, o artesanato, a religiosidade, as sociabilidades nas festas e, sem dúvida, as comidas, são tradições que vivificam as memórias e as identidades. “São João colorido pelo amarelo das canjicas salpicadas de canela (...) ou no Carnaval adoçado pelos filhós com mel de engenho”. (Gilberto Freyre) Com certeza, estes temas são fundamentais quando se olha para uma região. Ainda, para Gilberto, quando se experimenta as tradições de uma região, experimenta-se a sua história. “Quando aos domingos saio de manhã pelo Recife – pelo velho Recife (...). E em São José, na Torre, em Casa Amarela, no Poço, sinto ver ainda de dentro de muita casa o cheiro do mugunzá e das igrejas o cheiro de incenso, vou almoçar tranquilo o meu cozido ou o peixe de coco com pirão. Mais cheio de confiança no futuro do Brasil do que depois de ter ouvido o Hino Nacional”. (Gilberto Freyre). E assim, Gilberto revela o seu Nordeste no sabor e na profunda tradução emocional.
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