Arquivos Raul Lody - Página 4 de 6 - Revista Algomais - a revista de Pernambuco

Raul Lody

Mugunzá e manuê. O Manifesto Regionalista pela boca.

Publicado no Recife, em 1926, o “Manifesto Regionalista” foi coordenado por Gilberto Freyre, sendo, à época, um avanço no âmbito das questões patrimoniais e dos temas referentes às identidades e ao conceito do que é regional e nacional. Certamente conceitos ideológicos que são construídos por diferentes processos de bases culturais e sociais. No caso de Gilberto, essas bases também se ampliam à causa ecológica. E assim, um sentimento contemporâneo traz o que é regional, o que é Nordeste em cenários diversos, também numa pluralidade que mostra quantos e quais são os muitos “Nordestes”. Gilberto, no “Manifesto”, confirma sua tendência em buscar nos sistemas alimentares as mais importantes referências para entender um complexo que está integrado ao meio ambiente e as matrizes étnicas e, desta maneira, olhar e buscar traduzir o “homem situado no Trópico”. É sempre muito lírico o português que foi dando aos seus doces e quitutes no Brasil nomes tão delicados como o de alguns poemas: (...) Pudim de iaiá, arrufos de Sinhá, bolo de noiva, (...), nomes macios como os próprios doces”. (Gilberto Freyre) Os muitos acervos que sãos interpretados através das receitas confirmam a presença fundamental de uma “Civilização do Açúcar” na região. Assim, em Gilberto e no seu “Manifesto”, vê-se o homem lusitano que nos revela nas comidas uma colonização euro-africana a partir do Magrebe. “Enquanto isto foi mantendo a tradição vinda de Portugal de muito quitute mourisco ou africano: o alfenim, a alféloa, o cuscuz (...)”. (Gilberto Freyre) A comida, os ingredientes e a alimentação orientam Gilberto neste “Manifesto”, que é profundamente patrimonialista, e que busca um sentimento brasileiro a partir do que come e como come. “Ao lado dos brasileirismos: as cocadas – talvez adaptação de doce indiano, as castanhas de caju confeitadas, as rapaduras, os doces secos de caju, o bolo de goma, o mugunzá, a pamonha, (...), a tapioca seca e molhada, (...), farinha de castanha em cartucho, o manuê.” (Gilberto Freyre) Tudo está muito relacionado ao açúcar como um elemento que exibe a ‘cara’ da região, e que mostra estilos e afirmações de um Nordeste único, peculiar, nacionalmente brasileiro, e distinguido nos sabores e nos paladares. “(...) doce da goiaba (...) experimentar o tempero de um aferventado de peru, (...) ao mercado (...) comer um sarapatel (...) saborear uma peixada à moda da casa com pirão e pimenta (...)”. (Gilberto Freyre) Gilberto sempre busca um lugar estético para a comida, e isto mostra o sentido da arte nos objetos que integram um entendimento de que a comida também é uma realização visual que merece ser apreciada. As mulheres de ganho, das comidas de rua: bolos, acaçás, angus, carurus, acarajés. Mulheres que fazem dos seus ofícios verdadeiras instalações para mostrar a estética de cada comida e para promover o seu consumo. “Mestras na arte da decoração são as negras de tabuleiro que enfeitam seus doces com papel recortado”. (Gilberto Freyre) No “Manifesto”, as celebrações, o teatro, o artesanato, a religiosidade, as sociabilidades nas festas e, sem dúvida, as comidas, são tradições que vivificam as memórias e as identidades. “São João colorido pelo amarelo das canjicas salpicadas de canela (...) ou no Carnaval adoçado pelos filhós com mel de engenho”. (Gilberto Freyre) Com certeza, estes temas são fundamentais quando se olha para uma região. Ainda, para Gilberto, quando se experimenta as tradições de uma região, experimenta-se a sua história. “Quando aos domingos saio de manhã pelo Recife – pelo velho Recife (...). E em São José, na Torre, em Casa Amarela, no Poço, sinto ver ainda de dentro de muita casa o cheiro do mugunzá e das igrejas o cheiro de incenso, vou almoçar tranquilo o meu cozido ou o peixe de coco com pirão. Mais cheio de confiança no futuro do Brasil do que depois de ter ouvido o Hino Nacional”. (Gilberto Freyre). E assim, Gilberto revela o seu Nordeste no sabor e na profunda tradução emocional.  

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Para adoçar

"O Nordeste do Brasil, pelo prestígio quatro vezes secular da sua sub-região açucareira (...) Não só do açúcar: também a área por excelência do bolo aristocrático, do doce fino, da sobremesa fidalga (...) do bolo de rua , do doce e do bolo de tabuleiro, da rapadura (...) de saborear com farinha, juntando a sobremesa a alimento de substância .” (Gilberto Freyre, Nordeste) Da cana sacarina uma civilização marcada pelo que é doce. Açúcar mascavo, mais escuro, com a cor do caldo, do tacho que prepara a massa que é rapadura. Essa cor que traz o verde do caldo é referência visual e tradicional da nossa rapadura, que dá um doce à boca, faz o paladar lembrar que somos, também, herdeiros e filhos de um amplo processo social e econômico da saga dos engenhos que transformaram a Mata Atlântica em imensos oceanos de canaviais. As rapaduras chegam, na sua maioria, dos engenhos domésticos e familiares. O caminho de se fazer o açúcar é longo, exige além do bom caldo os conhecimentos adquiridos durante gerações, nas experiências de purgar, purificar o caldo no fogo profundo, que os mestres de rapadura sabem de olhar, no cheiro, na prova freqüente para conquistar a qualidade ideal, como uma assinatura, uma marca autoral. Assim, os engenhos, em especial os do Nordeste, continuam os seus rituais de moagem, de fabricarem os tijolos de rapadura, que ficam durante algum tempo nas formas de madeira para conquistarem a textura e qualidades necessárias, adquirindo o verdadeiro buquê tão marcante quanto o do vinho, do conhaque, ou mesmo da nossa tão querida cachaça, também filha dos engenhos. Em contextos de reconhecimento em âmbito e de valorização gastronômica, cada vez mais os processos artesanais e autorais dos engenhos, mesmo aqueles que combinam processos industriais, querem investir numa produção especial para o consumo de um público que valoriza o que é feito-à-mão, que busca o autoral, o saber artesanal que é a ação direta do saber tradicional sobre uma técnica, e por isso pode-se chamar, então, de tecnologia tradicional. Nada melhor do a prova da rapadura, daquela que saiu do tacho de cobre, ainda mole e quente, um verdadeiro manjar. A rapadura é de um doce tão saboroso e que se apresenta em inúmeras variações, é quando se vê, então, as marcas dos engenhos, marcas que se repetem à fogo no queijo-de-manteiga, no gado bovino, verdadeiras logos que identificam o lugar, o mestre, o próprio engenho. Assinaturas que fazem ‘terroir”. Assim, nas feiras e mercados, nas lojas, os consumidores vão escolher a rapadura como se escolhe o vinho. Ora pela procedência, cor, datação; ora pela prova, odor. O consumidor reconhece a marca, vê a cor, prova, realiza, então, o encontro com a memória do paladar, reconhecimento do paladar, e assim encontra o gosto desejado, ativa suas emoções diante do que é doce. A rapadura, também, é misturada com a farinha de mandioca _ jacuba. Acompanha o café com o tareco. É ingrediente indispensável no tão conhecido bolo pé-de-moleque pernambucano , entre tantos outros usos culinários.        

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Boleiras, doceiros , doceiras e outros ofícios do açúcar

Brasileiros de todas as localidades vivem dos ofícios culinários de fazer doces a partir do açúcar proveniente da cana-de-açúcar. Essa realidade vai muito além das indústrias, das fábricas regionais e familiares, que fazem caldo de cana, melado, rapadura e variados tipos de açúcar. Por isso, pode-se afirmar que há milhões de pessoas que vivem diretamente do trabalho de interpretar o açúcar em diferentes produtos alimentícios. São inúmeras receitas para o cotidiano e para as festas. Essa é a marca fundamental de que o doce, na vida brasileira, está na nossa formação social a partir de uma verdadeira civilização do açúcar. Civilização que começa com o estilo colonial lusitano que já traz a globalização em virtude das suas muitas relações comerciais e culturais entre o Ocidente e o Oriente, por causa das “Grandes Navegações”, nos séculos XV e XVI. Por tudo isso, há uma preferência nacional pelas comidas doces e em especial para o pernambucano. E para atender tão diverso e variado mercado, constata-se que há muitos ofícios domésticos do fazer doce, seja para consumo local, regional, nacional ou mesmo internacional. São notáveis as produções tradicionais de doceiras, boleiras, cozinheiras (os) especialistas em receitas com açúcar; juntamente com padarias, confeitarias; bancas de feiras, de mercados populares, e de vendas ambulantes; restaurantes, bares; e outros estabelecimentos que comercializam doces. As cozinhas tradicionais e domésticas trazem um dos mais notáveis acervos de técnicas culinárias de um verdadeiro artesanato da comida, no caso do doce. Muitas destas técnicas chegam da Idade Média, dos conventos ibéricos, onde se desenvolveu uma doçaria que até hoje é repetida em muitas cidades de Portugal e da Espanha. Refiro-me a uma doçaria à base de ovos, amêndoas, açúcar em diferentes “pontos” de caldas; e misturas de águas flor de laranjeiras ou de rosas, o que demonstra também uma forte e atuante presença do Magrebe. E por aqui, no Brasil, as frutas nativas, como: goiaba, abacaxi, pitanga, araçá, caju, buriti, pequi; e exóticas, na sua maioria do Oriente, tais como: manga, laranja, limão, jaca, carambola, maçã, pêssego; ganham novas interpretações nas formas de doces em calda, em massa, cristalizados; e como geleias. Estas bases ancestrais da doçaria ampliam-se em preparos de escala familiar, além de padarias e confeitarias, e com receitas que valorizam ingredientes da produção local, e também os profissionais desta tão rica cadeia produtiva do doce brasileiro. Já imaginou um aniversário sem bolo, seja especial ou mesmo um bolo de trigo. O que verdadeiramente importa é a presença simbólica do bolo, uma referência aceita pela cultura como uma comida doce que é um alimento que anuncia um rito de passagem, um ritual desejado pela sociedade. Os doceiros e doceiras preservam ainda as memórias e os valores patrimoniais que estão representados em tantas e diversas maneiras de receitas de fazer doces, e dar soluções estéticas que integram estes acervos de representação e de identidade dos nossos sistemas alimentares. As experiências vivenciadas nas casas como aprendizados familiares também buscam manter verdadeiras assinaturas de receitas e de estilos regionais de traduzir o açúcar na forma de “doce”. O aprendizado de fazer doces traz o entendimento de educação do lar, de formação social, de ofício, de possibilidades de trabalho, ora para seguir uma tradição familiar, ora para atender um momento de crise, como a que vivemos na atualidade. Desta maneira cozinhar é um recurso clássico para a complementação da renda familiar, ou como a principal renda da casa. Por tudo isso, fazer diferentes preparos doces garante o trabalho e a dignidade de milhões de brasileiros. E, assim, muitas famílias se mantêm, por gerações, com o ofício de trabalhar com o açúcar para realizar variados tipos de doces, que ganham categorias especiais conforme a região, a base étnica e a sociedade.

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Mão-de-milho: O São João celebrado em casa

No mês de junho, no Brasil, vive-se um amplo calendário religioso com festas tradicionais que celebram Santo Antônio, São João e São Pedro. Nestas festas, há uma grande participação popular que se manifesta por meio da música, da dança, e principalmente da comida, que marca também a colheita do milho. O milho é o grande tema dessas celebrações, e dos muitos rituais sociais de comensalidade nas casas, nas ruas diante das fogueiras, e nos arraiais onde as pessoas se encontram para dançar forro, quadrilha, coco; e muitas outras manifestações que estão relacionadas à fé. A festa de São João está espalhada pelo Brasil. Na área amazônica, vive-se os calendários dos muitos grupos de “bumba-boi”, manifestação do teatro popular do Maranhão que é reconhecida pela UNESCO como Patrimônio Cultural da Humanidade. No Nordeste, o milho é o símbolo das festas de junho, e que está representado nas comidas feitas com este cereal. Assim, vive-se por meio da comida uma maneira de devoção aos santos de junho, tão próximos da casa e da família, e que são interpretados no estilo do catolicismo popular e tradicional. O milho é um cereal de terroir das Américas, além de ser uma base alimentar para diferentes culturas. Presente em muitos cardápios, o milho integra os hábitos alimentares não só das festas, mas também do cotidiano. Está no cuscuz, seja acompanhado com leite de coco, queijo de coalho ou apenas manteiga; está no angu, doce ou salgado, na broa, nos biscoitos, e tantas outras receitas. A tradição diz que o milho deve ser plantado no dia de São José, 19 de março, para ser colhido em junho no dia de São João. Desse modo, diferentes cozinhas vivem muitas receitas à base de milho durante todo o ano, porém é em junho que determinados pratos se destacam, e entre eles, a canjica, que marca um importante ritual de sociabilidade que vai desde o início seu preparo até a sua finalização. E é costume, em Pernambuco, presentear vizinhos, parentes e amigos, com as famosas travessas de canjica, que são ainda decoradas com desenhos feitos com canela em pó; expressão estética que se repete nas travessas de arroz doce. Este costume representa também o simbolismo da fartura que o milho representa, e a fé coletiva devotada nesta comida. Ainda em Pernambuco, no comércio tradicional de feiras e mercados que ofertam o milho verde, há o costume da venda da ‘mão-de-milho’, que é uma medida que equivale entre 50 a 60 espigas de milho, dependendo do tamanho. Assim, há um reconhecimento da importância do milho, que se apresenta nas receitas para celebrar através das manifestações tradicionais e populares a identidade alimentar de uma região, que também reconhece o valor patrimonial deste ingrediente. Todavia, nestes contextos de pandemia, e de isolamento físico, o São João terá que ser comemorado com novas maneiras de celebração. Porém, podemos preservar a tradição e a devoção que estão representadas nas comidas de milho, nos seus rituais culinários, nas assinaturas de cozinheiras e cozinheiros que se dedicam a fazer canjica, pamonha; bolo pé-de-moleque, de milho, de mandioca, de macaxeira com coco, como representações da fé e da festa através dos sabores.  

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Comida de aproveitamento: O caso do vatapá

No cotidiano das cozinhas, vive-se um amplo exercício de aproveitamento de ingredientes, onde novas receitas são construídas a partir das sobras de outras comidas. É a transformação daquilo que já foi uma comida, em diferentes pratos que são reorganizados para a os cardápios do cotidiano e das festas.  Assim, há uma dinâmica nas cozinhas que é gerada por essa necessidade de não desperdiçar alimento, numa relação que envolve o homem, o ingrediente, o meio ambiente com a sua biodiversidade e a comida. Estes temas que dialogam com a natureza são também interpretações da cultura sobre o entendimento do que comer, e como comer. Um celebre exemplo é o vatapá, que no nosso imaginário é uma comida relacionada à matriz africana. Certamente este sentido/significado daquilo que é dito como africano no Brasil se dá pela associação ao uso do azeite de dendê, ingrediente marcante na cozinha afrodescendente. A criação e a adaptação da receita realizada a partir da mão africana, neste caso do vatapá, é uma receita que nasce de um estilo de se fazer “açorda à moda de Lisboa”; onde um caldo feito com alhos, coentros e azeite de oliva, é misturado ao pão, normalmente “adormecido”, que se desfaz, e resulta numa saborosa massa que vai ser servida como acompanhamento, ou vai se tornar uma receita única, quando recebe o acréscimo de camarões frescos e uma gema crua; e, desse modo, vai se assemelhar ao nosso tão nacional vatapá. Contudo, a receita do vatapá revela-se como um prato brasileiro. Na tradição, das receitas de vatapá se identifica a ocorrência de diferentes tipos, como vatapá de peixe, de galinha, de porco, e de bacalhau. Receitas que já constavam na ementa do período colonial. No caso do vatapá baiano, é o azeite do dendê, o leite de coco, a castanha de caju, o gengibre e a pimenta, que dão a sua identidade. Já quando nos referimos a esta receita de reaproveitamento de pão em Pernambuco, o uso do amendoim é marcante, o que traz a receita um toque adocicado, e outro diferencial é o pouco uso do azeite de dendê. O nosso vatapá marca a cozinha da Bahia, e de todo o Nordeste. Também no Pará, há uma interpretação do vatapá em que a receita recebe uma quantidade maior de camarão, diga-se camarão fresco. Apesar de tudo, é o vatapá baiano, inundado de azeite de dendê, que ficou famoso. E há dois estilos na Bahia, o vatapá de mesa, e o vatapá de recheio. O primeiro faz parte de um cardápio que harmoniza o vatapá condimentado com arroz branco, ou arroz de coco, sem temperos, e é uma comida de festa, um argumento para se viver a comensalidade, e os rituais sociais que agregam os sabores ao sentido de pertencimento a uma comida. O segundo é o que recheia o acarajé, juntamente com os camarões secos, o caruru, a salada, e um molho de pimenta cozida que é conhecido como molho Nagô. E ele faz parte da comida de rua, do tabuleiro da baiana. Nessa ementa de reaproveitamento, ainda temos outras receitas também muito conhecidas como as rabanadas, fatias douradas ou fatias de parida; e o pudim de pão. Além desses muitos usos do famoso pão dormido ou pão amanhecido, não podemos esquecer da famosa farinha de rosca. Tanto aqui quanto no resto do mundo, há outras receitas que marcam o aproveitamento desse alimento tão ancestral para o homem que é o pão. E a reciclagem desse alimento está também associada à manutenção da segurança alimentar, e cada receita traz o seu sentido e a sua representação cultural.

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Pitomba: uma fruta tão pernambucana

Embora o caju seja uma fruta nativa que está em todo o litoral do Nordeste, e tenha um valor heráldico, também reconhecido como um verdadeiro símbolo do território; ainda temos a pitanga, o araçá e a pitomba, entre tantas outras frutas que fazem parte da construção da identidade, da biodiversidade e dos nossos hábitos alimentares. A pitomba é uma fruta telúrica que representa a região, e marca um ciclo de festas, que além de trazer as opções de cardápios, faz parte da nossa soberania alimentar. A pitomba – Tulisia esculenta – abrange todo o nosso país, e alguns países sul-americanos. A pitomba está na Caatinga, no Cerrado e na Mata Atlântica. São extensas áreas de ocorrência, e de uso pelas populações locais. Aqui, é fruta da rua, das carroças, dos carrinhos de mão; e das praias, onde haviam os vendedores com os seus cestos forrados com folhas e as frutas da época, entre elas as pitombas. Estas vendas de rua mostram e anunciam também a sazonalidade das frutas, manga, jaca, caju, pinha, e a pitomba. Estas ofertas de frutas no comércio das ruas, também pontuam a paisagem urbana do Recife, é isso traz uma certa poesia, humaniza as relações entre quem vende e quem compra. A pitomba é fruta do gosto muito popular. É adquirida em cachos que formam um tipo um buquê de pitombas. É uma fruta que tem que se comer muitas. Consumida normalmente in natura, quase sem polpa, a pitomba também pode ser usada para batidas, com cachaça, ou então molhos, usos mais recentes nesta tendência de gourmetização Bem, eu adoraria que houvesse sorvete de pitomba, se possível? No caso Pernambucano, esta fruta tem sua época de colheita e consumo, dias após a Páscoa, geralmente no mês de abril. E por motivos diversos, associa-se a pitomba ao grande evento comemorativo da Batalha dos Guararapes, que no imaginário popular é também chamada da “Batalha das Pitombas”. Isto porque se atribui que pitombas foram jogadas no chão para que os cavalos dos holandeses tombassem, foi uma verdadeira arma de guerra ecológica. Este imaginário integra um sentimento nativo, onde uma fruta da região é argumento para a liberdade, de luta contra os batavos. Ainda, a pitomba é celebrada, e muito consumida, na festa de nossa Senhora dos Prazeres, há mais de três séculos, no monte dos Guararapes, grande Recife. Lugar onde ocorreu a Batalha dos Guararapes. E a partir da grande intimidade da fruta com a população, a pitomba foi eleita como tema e símbolo da agremiação carnavalesca Pitombeira dos Quatro Cantos, de Olinda. Destaque para o estandarte desta agremiação, onde estão bordados cachos de pitombas, verdadeiro símbolo do grupo e das tradições do nosso Carnaval.

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Comidas e Territórios - Para celebrar os 120 anos de Gilberto Freyre

Sem dúvida o açúcar e sua civilização fazem um importante território de interpretações sobre o Nordeste por Gilberto Freyre. Contudo o obra de Gilberto no âmbito da comida e do território é muito mais ampliada e quer entender outros sistemas alimentares para assim melhor entender o Nordeste. Diz Gilberto Freyre: “Venho há anos, tentando organizar um mapa culinário do Brasil em que se exprima uma geografia não da fome, mas da velha e autêntica glutoneria brasileira. Que entre nós existe glutoneria, sem deixar de haver fome. Existe a arte da boa cozinha, sem deixar de haver falta ou escassez de carne sangrenta, legume verde e até peixe fresco, para serem cozinhados de gostosas maneiras tradicionais e regionais”. (Mapa Culinário do Brasil in Diário de Pernambuco, anos 1950) Por um mapa que mostre a pluralidade de cozinhas, a biodiversidade entre tantos temas, de sentido e de valor patrimonial^. Do jornal Diário de Pernambuco diz Gilberto: “Um mapa do Brasil fixando as principais especializações regionais da cozinha nacional, começaria com o sarapatel de tartaruga do Amazonas e a sopa de castanha do Pará: o Pará do açaí. Mas não pararia no açaí. Não ficaria no Pará. Viria até o churrasco sangrento do Rio Grande do Sul acompanhado de mate amargo. Incluiria o “barreado” paranaense. O lombo de porco mineiro. O vatapá baiano. O cuscuz paulista. O sururu alagoano. A fritada de caranguejo paraibana. O arroz de cuxá maranhense. O quibebe do Rio Grande do Norte. A paçoca cearense. O pitu pernambucano”. . Gilberto vê a partir de Pernambuco uma diversidade, e busca por um verdadeiro mapa que seja tão complexo quanto possível mostrar as diferentes bases étnicas, que representam a variedade do que é a comida, ou o que é o “comer à brasileira”. Este desejo de Gilberto é atual, tem suas bases na história social e econômica ,e tudo isto se junta aos movimentos midiáticos do nosso século sobre a comida e sua glamourização O fenômeno globalizado da gastronomia no Brasil, e no mundo, aponta tendências, estilos, movimentos de consumo, e da moda que são dominantes no nosso século A comida possibilita reconhecer um povo, um território, pois ela reúne ingredientes identitários, e assim mostra o seu mais profundo sentimento de pertença a uma cultura. Nos anos 1950 Gilberto Freyre quer um mapa culinário do Brasil, para um entendimento de território, de meio-ambiente, de sistemas alimentares, de povos e de culturas. Com certeza, hoje, os conceitos de mapear são muito mais dinâmicos para preservar atualidades que possam acompanhar transformações do meio-ambiente; movimentos de populações, os refugiados das guerras; da intolerância religiosa entre outras expressões sociais globais. Assim, o entendimento de território, de “mapa” e de sistema alimentar deve ganhar uma leitura que possa traduzir os momentos contemporâneos da história e de um mundo globalizado.

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Comidas sagradas e o maracatu de baque virado

O nosso Carnaval, bem brasileiro, só assumiu uma grande forma social após a completa adesão do elemento africano como importante agente co-formador da festa, a mais pública, a mais participativa a nível nacional, sendo também a mais criativa e de maior transformação sócio-cultural. Os muitos motivos africanos presentes no Carnaval brasileiro servem para reforçar de maneira definitiva a atuação de danças, instrumentos musicais, roupas e adereços que, já elaboradas, são vistas e sentidas nessa realidade que é afro-brasileiro. Um conjunto de matrizes africanas e também de forte presença afro-islâmica está por vários motivos presentes em festas públicas, cumprindo calendários originais, quase sempre determinados por temas religiosos ou hierárquicos, lembrando organizações políticas, litúrgicas, com as presenças de reis, rainhas, príncipes africanos, numa produção sincrética, já integrante da civilização brasileira. Esses cortejos mostram centenas de pessoas tocando instrumentos musicais, cantando, dançando, usando roupas, insígnias, adereços, ,preservando cardápios ,marcando os sentidos religiosos dos grupos ou revelando também aspectos sócio-políticos. Essas memórias se ampliam e renascem em verdadeiras explosões de africanidade no nosso carnaval contemporâneo. Assim, são os Maracatus, grupos tradicionais e centenários, que no início saiam para comemorar Nossa Senhora do Rosário e depois passaram ganhar o tempo do Carnaval, desfilando em especial na cidade do Recife. Os Maracatus reúnem personagens que representam a corte real africana, formada por rei, rainha, príncipe e damas, incluindo-se um personagem muito importante para o grupo que é a dama do passo, ou seja, aquela pessoa que carrega a Calunga (boneca ou boneco negro vestido, portando coroa e peruca). A Calunga é um totem, podendo ser representada por uma escultura em madeira, uma boneca de pano ou mesmo uma boneca em material plástico. É a Calunga o poder religioso dos deuses africanos, notadamente os Orixás, protegendo o grupo de Maracatu e mostrando publicamente o sentido do ritual que congrega todos os participantes do desfile. Na verdade, são os orixás que fazem o sagrado nos maracatus de baque virado ou os maracatus de Nação e assim cada calunga é um orixá. Destacam-se nos maracatus os orixás Xangô, Iansã, Oxum e Iemanjá. Cada calunga recebe obrigação de sangue, com oferecimento de carneiro, bode, cabra, galinhas, pombos entre outros; comidas com dendê como os acarajés, o begueri, que é feito com quiabos e muitos outros preparos que acontecem nas cozinhas dos terreiros. Tudo que é oferecido as calungas é partilhado com os participantes dos maracatus e dos terreiro, e desta maneira as carnes são preparadas, bem temperadas e consumidas por todos , o que se dá também com as demais comidas , numa verdadeira comunhão entre o homem e o sagrado. Nos maracatus africanos ainda aparecem cordões de baianas, o porta-estandarte que leva com muita dignidade um rico estandarte de veludo, franjado em fios de ouro ou de material dourado, quase que totalmente rebordado de miçangas e lantejoulas, vidrilhos, sempre nas cores do grupo, tendo como motivo central e principal um símbolo, quase sempre um animal, uma flor ou um astro, recebendo ainda legenda escrita com o nome da agremiação. É assim na união da festa com a fé com um sentimento de sagrado dominante vive-se um carnaval extensão dos terreiros de Xangô, manifestações das mais legitimas do patrimônio cultural afro-pernambucano. *Raul Lody é antropólogo

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Pitanga, a fruta e o símbolo (por Raul Lody)

A Zona-da-Mata de Pernambuco era o território preferido por Gilberto, para viajar e viver, incorporar técnicas recentes do field work, uma evidente herança de Boas ( anos 1920). A pesquisa de campo, o estar em campo, enquanto maneira de fazer sociologia e antropologia e, no caso, fazer ecologia, reflete indicadoras de vertentes culturais para o entendimento complexo do homem regional. Os jeitos já nacionais, regionalmente nordestinos, são trabalhados como soluções que indicam a formação de identidades, de padrões culturais, de encarar e se relacionar com o mundo natural. São assim vistas, como avisa Gilberto, as chegadas etnoculturais do luso, do africano, dos relacionamentos com os autóctones. De qualquer forma, há uma sinalização de amor à terra. As peculiaridades da Região Nordeste e as destinações naturais do litoral, da Zona-da-Mata, do agreste e do sertão oferecem distintas ocupações em um diálogo permanente entre o sol e a água. Em visão ancestral e mitológica. O masculino e o feminino. Uma relação onde os resultados idealizados são a fertilidade, a vida da terra, as plantas e os animais. Há também no livro Nordeste, um avanço da etnobotânica, quando, em quantidade e variedade, espécimes chegaram do Oriente, da Europa, da África e aqui no Brasil nacionalizaram-se, aclimataram-se, ganharam novos usos, preservaram outros usos, junto àqueles tradicionais, convivendo com as plantas da terra, como os bichos da terra, quando e onde Gilberto explicitamente é telúrico, é nordestino, é pernambucano, é cabra: cabra pelo poder de resistir, enfrentar, adaptar e, principalmente, de criar. Os usos botânicos, foram feitos nas casas, nos engenhos, nas feiras e mercados, fazendo com que a natureza assumisse um Sentido/Sentimento profundamente integrador e ao mesmo tempo, singular. Incluir é um verbo da preferência de Gilberto Freyre na sua permanente auto-referência de compreensão do Nordeste. Exemplo disso, em símbolo e uso, é o tão celebrado coco verde, que é da Índia. Considerado pelos orientais como uma planta providencial, porque dos seus órgãos se tira tudo aquilo que o homem necessita para viver, desde o alimento ao vestuário, do material para construir habitação até aqueles para se defender das doenças, do sol. Se algum dia tivesse havido paraíso terrestre, com certeza o coqueiro ocuparia nele um lugar de destaque. Mas, se há uma fruta emblemática para Gilberto, essa fruta é a pitanga. Há uma devoção quase religiosa perante o fruto e a folha de aroma tão peculiar, marcado, determinado como o próprio homem nordestino. Homem situado no trópico. Realmente da terra, a pitanga, ou pitanga-da-praia, ou Eugenia pitanga; em tupi, vermelho, é a fruta que Gilberto uniu a sua história de vida. Uniu com a boa cachaça, da cana sacarina, compreendendo assim uma civilização que se autentica pela boca. A pitanga, na forma e no estilo de conhaque (conhaque de pitanga) –foi a escolha ecológica de Gilberto por uma fruta da terra e por uma bebida que, de maneira muito particular, ritualizava as relações na sua casa em Apipucos, Recife. Beber o conhaque de pitanga sob os olhos atentos de Gilberto e de D. Madalena era um ato de inclusão, uma quase confraria de amigos. Amigos ungidos pela boca, pelo açúcar, pela fruta, pelo cenário da casa, pela paisagem do sítio e pela proximidade do Rio Capibaribe. E assim ,eu ao beber ritualmente este conhaque me senti mais gilbertiano. O ideal tropical ecológico de Gilberto, além de dedicar total atenção à morfologia da natureza, o compreendia, e como o compreendia, sensivelmente, por meio de texto, pintura e desenho realizados como linguagens intercomplementares e que têm sua comunicação perfeitamente integrada na formação da sua obra.

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Xequetê: uma bebida tropical

As nossas bebidas artesanais integradas ao ideário latino americano estão, na sua grande maioria, nas receitas elaboradas a base de milho. Sem dúvida, esse magnífico cereal nativo remete ao imaginário do sol, e é tão presente na nossa mesa cotidiana quanto na nossa mesa de festa. Pois, a partir das memórias milenares, comer o milho é o mesmo que comer o sol. Assim, muitos pratos de milho possibilitam esse sentimento de pertença e de identidade. Certamente ao milho se une a mandioca, outro marcante símbolo e base alimentar das Américas. Há ainda a exuberância das batatas, milhares de tipos. A esses produtos que chamamos como “da terra” incluem-se muitos outros que trazem a Europa e o Oriente. E nessa mundialização de sabores e de imaginários estão as muitas e diferentes especiarias que marcam o intenso comércio entre o Ocidente e o Oriente. Novos sabores, novos usos culinários, novas representações do poder à mesa. As especiarias determinaram estilos das cozinhas do mundo a partir da Idade Média na Europa. Em destaque, a chegada triunfal do açúcar, do cravo, da canela, das pimentas, que juntos orientam a formação dos gostos e intercâmbios de paladares. Nesse tão diverso cenário, os produtos nativos como o milho, a mandioca, o caju, a goiaba, entre tantos outros símbolos tropicais,são combinados, interpretados, apropriados nas receitas, na geração de novos sabores, nos novos e dinâmicos saberes sobre a comida E assim são permanentemente experimentados os sentimentos históricos das cozinhas e dos sistemas alimentares. Pois, o conceito de memória é um conceito de processos dinâmicos e simbólicos. Como se sabe, a mesa brasileira além de ser globalizada e multicultural a partir das grandes navegações, e é profundamente africana. Africana do norte do continente – Magreb –; africana de muitos povos da costa ocidental, da costa centro-atlântica, e da costa oriental. Tudo isso se une as experiências das Américas, nas maneiras de juntar e criar comidas e bebidas, bebidas artesanais. Nesse cenário as manifestações religiosas de matriz africana explodem em identidades, patrimônios culturais e história. Para trazer esses encontros de povos e de culturas; um bom exemplo é o que está no Xangô pernambucano, confirmando que as religiões tradicionais que preservaram cozinhas com receitas especiais. São estilos de se fazer comida e bebida para usos litúrgicos e sociais. Assim, destaca-se o ‘xequetê’, uma bebida artesanal de festa, e própria do Xangô pernambucano. É uma bebida a base das especiarias do Oriente. Contudo, afirmando-se como uma bebida de matriz africana. O xequetê é preparado artesanalmente com cravo, canela, erva-doce, amendoim e castanha de caju; e, a esse conjunto de ingredientes é acrescida a cachaça com açúcar, limão e pitanga; na forma tradicional de se fazer o “bate-bate”. Todos esses ingredientes ficam em processo de maturação por um período de 03 dias, para apurar o gosto. Aí, está pronta a bebida de festa que é servida em pequenas doses, pois, tem a fama de ser uma bebida “forte” e “quente”, e justamente por isso é também chamada com o nome sugestivo de “levanta a saia”. Essa bebida conforme a maturação vai ficando mais gostosa, diga-se mais forte, mais concentrada. É, sem dúvida, uma bebida de celebração, para fortalecer os laços sociais, e para fazer viver os rituais de comensalidade. É consumida como se faz com a cachaça, com o rum, com o conhaque, entre tantas outras bebidas categorizadas como bebidas “espirituosas”. É uma bebida dita masculina e feminina, sendo também um tipo de “abrideira” para as refeições. Já provei! E, gostei do xequetê..

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