Arquivos Raul Lody - Página 5 de 6 - Revista Algomais - a revista de Pernambuco

Raul Lody

A comida no 1º Congresso Afro-brasileiro, Recife, 1934

“(...) O afro-brasileiro que hoje se reúne, às 15 horas, com toda simplicidade, numa sala do Santa Izabel tal venha a ser o início de um movimento considerável de cultura e da acção social. A primeira tentativa seria de clarificação do ambiente brasileiro no sentido de separar o preto do escravo (como já queira Nabuco, que neste mesmo Santa Izabel fez a campanha da abolição) e de reconhecer no negro, assim rehabilitado, uma raça capaz e com contribuições já notáveis para o desenvolvimento nacional. Ao mesmo tempo que cheia de possibilidades e aptidões magnificas. Por muito tempo nos dominou, um arianismo-ridículo, ligado a preconceito de classe e de exploração econômica. (...) O afro-brasileiro representa reação necessária. O sangue negro no Brasil não deve ser vergonha para ninguém. Nem o sangue negro nem a influência africana, que alcança o todo brasileiro sincero o authentico como uma enorme ‘mancha mongólica’ que se tivesse alastrado a alma nacional”. (Jornal Diário de Pernambuco de 1934) Reunido no Teatro de Santa Izabel, de 11 a 16 de novembro de 1934, sob a organização de Gilberto Freyre, e tendo contado com a participação de notáveis da época como Cícero Dias, Di Cavalcanti, Mario de Andrade; e representantes de Maracatus, Xangôs, e outros segmentos populares e tradicionais, que buscavam diálogos e referências sobre as matrizes africanas, ocorreu o 1º Congresso Afro-brasileiro. E a perspectiva teórica que orientava este 1º Congresso encontrava-se num intervalo entre duas Grandes Guerras mundiais, e representava questões raciais, sociais, econômicas e culturais. Gilberto Freyre, já um culturalista notável, que acabara de publicar em 1933 “Casa-Grande & Senzala”, oferece um rico acervo de revelações e transgressões, à época, que privilegiava as relações multiétnicas. Gilberto também buscava uma igualdade de representações sobre as questões africanas e afrodescendentes, que já dominavam o seu interesse antropológico e humanista. Destaque para uma forte tendência de Gilberto Freyre para as questões da arte, e de uma valorização ainda em construção que se chamaria de patrimônio cultural. Estas questões uniam-se numa busca por um entendimento interrelacional para o respeito à alteridade do homem africano e do homem afro-brasileiro. Muito relevante, e conceitualmente orientador para o 1º Congresso Afro-brasileiro, foi a carta lida por Gilberto Freyre durante a abertura deste Congresso. “ O 1º Congresso Afro-brasileiro manifesta sua solidariedade a essas classes contra toda forma de opressão; louva a ação da Assistência Psicophatas em Pernambuco, reconhecendo nas seitas africanas de organização definida como cultos religiosos e resguardando-as das perseguições policiais; o 1º Congresso Afro-brasileiro protesta contra a atitude da Commissão de Censura Esthetica do Recife querendo fazer desta capital uma cidade de cores delicadas. O 1º Congresso Afro-brasileiro protesta contra toda espécie de descriminação contra negros ou mestiços, que ainda se verifique no Brasil. (...)”. Integrado a este amplo olhar de Gilberto Freyre para questões tão complexas e diversas da temática afro-brasileira, há um tema preferencial que é a comida nas suas múltiplas dimensões culinárias, técnicas e simbólicas. Assim, no dia 14 de novembro, na programação deste 1º Congresso, ocorreu um jantar afro-brasileiro que trazia o seguinte cardápio: acarajé; inhame com mel; farinha de mandioca; “beijo-de-mandioca”; e, cocada. Creio que o acarajé servido foi o frito no azeite de dendê, no formato convencional de uma colher de sopa, que é o que faz parte dos oferecimentos rituais dos Xangôs de Pernambuco. Outro ingrediente que fazia parte do jantar era o inhame, que até hoje, em muitas localidades do Recife e, em especial, nas feiras e mercados populares, é chamado de “inhame-da-costa”, uma referência que atesta a sua procedência africana. A farinha de mandioca, ingrediente tão popular na região, geralmente é servida como um acompanhamento ou no preparo de pirões ou farofas. Havia ainda dois preparos doces que era o “beijo-de-mandioca” e a cocada, como atestações da civilização do açúcar, dominante e fundamental na região.

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Mercado da Boa Vista: do queijo, da fava, do sarapatel

Um mercado tradicional é aquele que se apresenta com muitos anos de vida naquele território, naquela região; e, traz histórias; e é, sem dúvida, um lugar para se viver uma cidade, uma região, um povo. As relações sociais realizadas no mercado possibilitam introdução à cultura do território, e isto traz uma ampla e rica experiência para o consumidor. O mercado mostra um expressivo cenário social, mostra também um conjunto de ingredientes, de produtos, de pessoas, de ofícios quando juntos revelam a identidade do território. Trago o Mercado da Boa Vista, no bairro da Boa Vista, no Recife, um mercado que eu frequento, aonde vou buscar queijo de coalho, de manteiga, aonde também quero fava verde, feijão de corda, batata doce, inhame, cará, banana -da -terra e quero ainda encontrar identidade e peculiaridade de território. Também para viver um caldinho de feijão, caldinho de peixe, um prato de sarapatel acompanhado de limão, de muita farinha de mandioca_ um verdadeiro manjar_ que é ampliado com uma “talagada” da “branquinha”,da boa e generosa cachaça. As ofertas de comida são muitas, e mostram um verdadeiro memorial das receitas tradicionais pernambucanas que são ali experimentadas e oferecidas ao sabor e ao reconhecimento do público. Comer no mercado é um ritual especial, uma espécie de interação entre os ingredientes “in natura” e as interpretações dos cozinheiros e cozinheiras com seus temperos, com suas técnicas que se apresentam como verdadeiras assinaturas culinárias . O mercado da Boa Vista, do século XIX como também o mercado São José juntam-se a outros 24 mercados municipais do Recife e ainda 27 feiras livres, e assim fazem uma ampla oferta de produtos e de testemunho da biodiversidade. O mercado consagra-se enquanto um território para encontros, conversas, celebrações, e muitos outros rituais de sociabilidades. Nos mercados tradicionais é possível provar os produtos, escolhe-se não só visualmente o que se deseja, mas também se experimenta. Farinha, queijo, frutas, e tantos outros. No momento da prova acontecem vários diálogos, um verdadeiro ritual de aproximação entre o vendedor, o mercado e o cliente. Há uma interação com as possibilidades do produto que revela e orienta o consumo. A sensação de experimentar algo que só a biodiversidade do lugar pode oferecer é uma confirmação de terroir, de que se está num lugar, de que se está no território do mercado. As memórias estão nos mercados, e lá com os ingredientes, produtos e ofícios, contam as suas histórias e trazem um sentido de vida. O mercado tem uma função legitimadora de consumo, de ofertas de produtos da região, de poder exercer alteridade. E assim, há sempre uma maneira peculiar de unir o consumo com a afetividade, de viver os rituais da humanização no comércio interativo no mercado. O mercado não é apenas um conjunto de produtos, de pessoas, de processos tradicionais de comunicação ; o mercado é uma ampla possibilidade para se experimentar relações sociais. Para observar diversas representações do meio ambiente. Para valorizar um sentimento patrimonial de pertença e de soberania alimentar.

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“Bolo que te quero bolo”

Tão próximo do açúcar, das receitas das casas, dos doces de rua, dos mercados, das padarias, das “boleiras ”,Gilberto Freyre desenvolve um olhar afetivo que se junta ao método de traduzir as relações sociais pelos muitos preparos culinários com os doces do cotidiano e da festa, em especial destacando o bolo enquanto uma verdadeira comida- símbolo de Pernambuco. Gilberto Freyre no seu livro “Açúcar: em torno da etnografia, da história e da sociologia do doce no Nordeste canavieiro do Brasil” com numerosas receitas raras de doces e bolos da região e, para efeitos de comparação, algumas de outras áreas brasileiras e outras tantas de Goa (Índia Portuguesa), reunidas e selecionadas pelo autor ; afirma seu olhar e a sua plural leitura sobre uma multiculturalidade fundadora da civilização do açúcar, dos doces e na formação de paladares regionais que valorizam o que é doce. E Gilberto localiza e enfatiza a doçaria de Portugal, diga-se uma doçaria já mundializada a partir do século XVI, e destaca as muitas opções de receitas de bolos, sim muitos, variados, para as casas, para as festas, para as devoções religiosas. No caso do Nordeste os bolos identificam os engenhos de açúcar ,enquanto verdadeiros brasões construídos nas receitas particulares e autorais, que são essencialmente simbólicas de uma história e de uma família. Para Gilberto, cada bolo é muito mais do que uma receita. O bolo traz uma variedade de temas, de personagens, de localidades, de santos de devoção, entre tantos outros motivos. Cada bolo tem a sua individualidade, e marca, e assim mostra seus territórios de afetividade, de celebração, de religiosidade, de homenagem. Cada bolo é certamente uma realização gastronômica de estética e de sabor, e na sua maioria traz ingredientes nativos, “da terra”, mais uma maneira de atestar identidade. Assim, bolo São Bartolomeu, bolo Divino, bolo São João, bolo Souza Leão; bolo Souza Leão à moda da Noruega, bolo Souza Leão-Pontual, bolo de milho D. Sinhá; bolo de milho Pau-d’alho, bolo Guararapes, bolo Paraibano, bolos fritos do Piauí; bolo de bacia à moda de Pernambuco, bolo de rolo pernambucano, entre tantos. O bolo traz uma intenção, uma assinatura, uma receita; uma intenção pessoal ou coletiva, regional. Ele marca o terroir do doce em Pernambuco. Também o significado de um bolo é repleto de valores familiares, de festas, de ritos de passagem; dos prazeres de se viver o milho, a mandioca, o chocolate, as frutas, os cremes; as coberturas de açúcar e frutas cítricas com a técnica do “glacê mármore”, branco e compacto, uma verdadeira delicia de cobertura, e se o bolo for o de frutas mergulhadas no vinho do Porto ou Moscatel, com a estimada receita de “bolo de noiva”, uma releitura do bolo de frutas inglês, um bolo do tipo “bolo-presente” para festas e celebrações. Chegadas, permanências, sugestões, informações gerais, experiências pessoais, etnografias participativas; festas de santos, especialmente os de junho, com rica culinária a base de milho; festas em casa com a família; festas no tempo de carnaval com filhoses e suas caldas perfumadas; ou no Natal, pastéis de carne temperada e pulverizados de açúcar; num verdadeiro laboratório de gostos, de buscas, de descobertas pela boca e pela emoção. Contudo está no bolo, na sua variedade e nos seus estilos, onde o pernambucano encontra sua identidade, sua história e seu pertencimento cultural. RAUL LODY.

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À mesa com Gilberto Freyre

A vasta produção intelectual de Gilberto Freyre inclui de maneira antropológica e sensível a gastronomia enquanto uma das manifestações mais representativas da mediação entre o homem e a natureza. Destaca-se o livro Açúcar, verdadeira celebração da mesa pernambucana, ampliando-se para novos e sempre atualizados olhares perante a doçaria e diferentes rituais sociais do fazer, do servir e do consumir. Certamente, entre os muitos pioneirismos de Gilberto Freyre na interpretação sobre o brasileiro está, em espaço especial, simbolicamente marcado o valor da comida, formando identidades. São sabedorias tradicionais que adquirem linguagens que acompanham, dinamicamente, os processos da cultura, da sociedade e da ecologia. No livro Nordeste, Gilberto situa, contextualmente, os muitos fatores que caracterizam a Região, apontando para os impactos da ocupação pela monocultura da cana-de-açúcar, a nossa cana sacarina, e como uma civilização agrária estabeleceu múltiplas relações étnicas, unindo também modelos do Ocidente e do Oriente. Chegam do açúcar cardápios doces, pratos que vivem o litoral, a zona da mata, o agreste e o sertão. Gilberto aufere aos encontros gastronômicos entre o homem lusitano, diria mouro-lusitano, culturas da África ocidental, austral e oriental, povos indígenas e os imigrantes manifestando conteúdos estético e nutricional co-formando nossas maneiras de ser brasileiro. Em Casa-Grande & Senzala, livro que expõe os fundamentos da família patriarcal brasileira no Nordeste, destaca e relaciona a comida enquanto moeda das relações homem e mulher, senhor e escravo, na casa, na rua, nos rituais do cotidiano e nas festas religiosas. Tudo vive e é ungido pelo açúcar. Há uma marca que emblematiza o Nordeste pelo açúcar, unindo tantos cardápios. Cardápios dos mosteiros medievais, da gastronomia popular de Portugal, das receitas muçulmanas, trazendo o trabalho e a criação africana para ampliar e significar processos já brasileiros. Certamente, Gilberto dá a gastronomia um lugar de valor, compreendendo que pela boca o homem manifesta grande parcela da sua história, da sua civilização, da sua cultura. O livro À mesa com Gilberto Freyre, quer também trazer o cotidiano e o tempo das festas em Santo Antônio de Apipucos no Recife e em outros momentos e situações que possam unir e identificar Gilberto com as gastronomias do Nordeste e do mundo. Os livros e cadernos pessoais de receitas de D. Madalena Freyre trazem a experiência da casa e da mesa amorosa em hábitos e preferências da família e de amigos. À mesa com Gilberto Freyre reúne depoimentos de Sonia Freyre; cardápios e receitas de mais de 80 pratos doces e salgados além de aspectos dos hábitos cotidianos em capítulo chamado À moda da casa; aborda também o conhaque de pitanga, alfaias da casa e demais temas que incluem vida, mesa e comida no daí a dia e no tempo das festas. Assim, busca-se uma nova e significativa leitura sobre a personalidade plural de Gilberto Freyre, agora visto e situado à mesa revelando comidas e seus diferentes entornos sociais e culturais. Dos cadernos de receita de D.Magdalena chegam os acervos culinários em relatos sobre hábitos alimentares e preferências por pratos e ingredientes... bredo de coco, feijão de coco, berinjela napolitana, Salada de abacaxi, Lombo alemão, torta de camarão (ou de galinha) de Dulce Ranulpho, mão-de-vaca, bacalhau espiritual, nhoque de Tia Santa, Sarapatel, cuscuz paulista, risoto verde, arroz de Braga, Pato ao conhaque Cuscuz de lombo de porco, vatapá, fritada de camarão, caruru, costeletas de porco, peixada, fritada de aratu, entre outros; aperitivos e salgadinhos leite de onça bloody Mary empadinhas de queijo de Conceição ,canapés, barquetes de Sonia, pastéis de parco, empadas de Zefa, e outros: agora os doces, sim, com destaque, bolo de batata doce bombocados de Marta, pastel de nata, pão-de-ló de Maria, filhós de Carmen, bolo de ameixa de Conceição, bolo-de-rolo, bolo de laranja de Maria Clara,creme de Pompéia, sorvete de chocolate de Lourdes, grude, bolo inglês. bombocados de Tia Sana, gelatina de leite de coco, toucinho do céu, pudim de macaxeira, pudim de cupuaçu ,pudim de pão ,quindins ,creme de amêndoas, bolo de água de Cristina, pudim de natal, bolo de chocolate de Titia Carolina, creme de Sonia, tarteletes de limão, tarteletes de uva, pavê de Bebé,  pudim Souza Leão, kiss me, olhos de sogra, papos-de-anjo, passas recheadas, bolo xadrez, pé-de-moleque, bolo Souza Leão ,arroz-doce, doce de de leite. O livro ainda localiza as preferências culinárias de Gilberto por: molho de pimenta com pão, sabongo, chá das cinco, sucos de cajá e pitanga, sorvete e pão-de-ló,sorvete de aticum cagão, abacate com açúcar, Fatia parida, manga carlota, quiabada, cozido, cavala frita – perna de moça. peixe ao coco, bife grelhado – bife morcego, café da manhã e conhaque de pitanga. RAUL LODY. Obs; “Á mesa com Gilberto Freyre”, editora Senac Nacional, 2004 ,1º edição. Raul Lody organizador.

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Pirão: água, farinha, tempero & arte

“Nunca no Brasil se pintou um quadro nem se escreveu um poema que nem se plasmou uma estátua nem se compôs uma sinfonia que igualassem sugestões de beleza a um prato de pirão” . Gilberto Freyre in “O pirão glória do Brasil” jornal Diário de Pernambuco, anos 1920. Certamente o brasileiro se encontra e se reconhece na mandioca. São produtos para comer, e para outros usos na casa e no trabalho. O produto mais geral, comum, nacional, é a farinha, a farinha de mandioca de tantos tipos, nomes, texturas, cores, sabores, e principalmente no uso em receitas, cobrindo todo o nosso território. Farinha pura, farinha com água, um tipo de bebida engrossada, mata-fome geral, na Amazônia chamada de chibé ou caribé. Embucha, dá aquela sensação de barriga cheia, só sensação, pois o corpo necessita de mais nutrientes e de variedades de alimentos para funcionar. É essa fornalha, a barriga, que está sempre a processar, sempre a consumir comida. Contudo, as farinhas, desde a mais comum, seca, chamada afetivamente de farinha de pau ou de guerra é a do dia-a-dia, base para forrar o prato, cama do feijão, de molhos, assados, guisados, ou mesmo na tão celebrada farofa. Aliás, considero a farofa uma das mais notáveis invenções da mesa brasileira. Farofa que já vem pronta da cozinha, onde se pode misturar de um tudo ou aquela que nasce no prato, para engrossar e aumentar, naquele momento em que o gosto está mais apurado, quando a refeição está quase concluída e a comida começa, então, a ser mais ainda desejada. Aí se reescreve a farinha, num texto gastronômico cujo reconhecimento imediato é o Brasil. É o molho que ficou; um pedaço de carne; uma cebola que está encharcada de gordura; tudo é tema, motivo, inspiração, para ali no prato, na hora, fazer uma farofinha gloriosa, culminância, clímax que a boca tanto quer e o espírito também. O mesmo se dá com o pirão, outra fantástica descoberta gastronômica genialmente brasileira. Viva o pirão! Essa mistura mole, com mais água, caldo, ingredientes vários poderá se apresentar mais líquida ou mais sólida. Isso ocorre em função do acompanhamento, se é peixe, se é carne ou, então, se é o cozido. Se for cozido o pirão é variadíssimo em sabor, pois se misturam todos os caldos: legumes, carnes frescas, carne seca, embutidos, banana, carne de frango se a receita for mais lusitana. Travessas magníficas cobertas de folhas de couve, folhas protetoras dos muitos gostos ali guardados nesse prato plural que alimenta e principalmente é convite para os rituais de comensalidade. Pirão é para ser comido em prato fundo. Nasce de farinha de mandioca da bem fininha acrescida de generoso caldo, e pode também ser farinha grossa, granulada, exalando ainda o tucupi que muitas vezes também colore a matéria, tudo bem misturado, com ingredientes que vão do caldo do peixe, as pimentas, os cheiros verdes, e tanto mais que se queira adicionar. Deve ser comido com a colher de sopa, muito, sem medo, pois pirão e um bom incentivo à gula. Prepara-se então pirão a gosto, mais duro, mais mole, e se quiser, o mesmo caldo da mistura poderá ser servido junto com a abrideira da refeição, uma boa branquinha. Ainda, o azeite de oliva é um ótimo acréscimo a esse pirão que já se pode chamar de rico, ou seja, pirão com adubos especiais. Entre os muitos chamados de rico destaco o tradicionalíssimo feito de peixe. É pirão que acompanha a Peixada, e assim, o caldo do peixe e legumes faz a base desse complemento. O enriquecimento se dá com peixe desfiado, e recentemente comi um a base de Dourado. Realmente uma delícia. O ritual aconteceu vendo-se as pontes do Recife, suas Igrejas destacadas nas torres, lembrando minaretes, formando um cenário ungido no encontro do rio com o mar. Assim, fez-se mais essa experiência gastronômica. Aliás, antes da peixada, camarões bem escolhidos prepararam a boca e principalmente o espírito para comer tudo: cenário, cheiros, luminosidade, e o Recife.

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Milho, cereal americano

Quem tem milho tem farinha Quem tem farinha tem pão. (Poesia popular, Portugal) O milho (Zea mays L.) entre as espécies botânicas foi aquela, sem dúvida, que teve maior impacto na economia dos povos do mundo. Alguns autores já dizem que os descobrimentos já teriam sido válidos pelo conhecimento do milho, e decorrentes modificações na agricultura dos continentes. O vocábulo milho aparece em antigos escritos, por isso muito antes das classificações sistemáticas, é utilizado para nominar diferentes plantas, certamente pelos aspectos comuns de todas serem gramíneas e produtoras de um tipo de grão consumido há milênios na alimentação animal e humana. (...) el pan que usam es de Maiz que es um grano como garavanço, dal qual ay mucha abundancia em toda la Índia (...) (Jerônimo Girava França, C. Os portugueses no século XVI e a história natural no Brasil. Revista Histórica. Lisboa: Imprensa Oficial, v. 15, n. 57/60, 1926) Importante observar que antes da época dos Descobrimentos, já existia no Velho Mundo, Europa, várias plantas chamadas de milho. Assim, chegando ao conhecimento outra planta, com aspectos e utilização semelhantes, se incluísse no nome geral milho, embora as especificações: milho maiz, milho grosso e milho da América são referentes a este novo milho após os Descobrimentos do Novo Mundo, Américas. O milho encontrado pelos espanhóis no México vai inicialmente para o Sul, Sevilha, dessa maneira os portugueses foram conhecer o grão novo e introduzi-lo em Portugal. O grão novo é então trazido para o Brasil pelo colono português ou nas novas terras já havia cultivo e uso, assim considera Pio Correa, observando como área de milho o Sudeste do Brasil e o Paraguai. Extensivo o uso do milho na cozinha brasileira, formando cardápios como o nosso tão celebrado angu de milho e diferentes complementos de couve e produtos de carne suína, ou então em cardápios festivos por ocasião do ciclo junino com a canjica de milho verde, ou as próprias espigas assadas nas fogueiras cerimoniais de São João, o santo do fogo, da transformação. São muitos os cardápios a base e milho nas celebrações de Santo Antônio, São João e São Pedro com as pamonhas , bolos ,em destaque para o bolo pé-de-moleque , o mungunzá e outros preparos como o arroz doce, e também os bolos de puba, entre tantos. O milho, em junho, é um ingrediente fundamental nas celebrações populares e assim é identificado com as melhores tradições gastronômicas do Nordeste. E é costume dizer o seguinte: plantar o milho no dia de São José, março, para colher em São João, junho. Em Pernambuco as muitas comidas de milho fazem um rico e diverso acervo de receitas e de sabores que marcam identidades e acervos gastronômicos que se notabilizam, em especial, com os doces.

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O tão estimado caldinho de feijão

Nada mais saboroso, dionisíaco, prazeroso do que um honesto, suculento, grossinho caldinho de feijão. Aliás, o feijão, inúmeros em cores, formatos e sabores, é um dos principais alimentos da mesa do brasileiro. Essa leguminosa dá o conceito e base de muitas receitas, geralmente acompanhadas por pratos complementares de arroz e mandioca, enquanto farinha seca, farinha de pau ou farinha de guerra, ou mesmo a carne bovina e embutidos, enriquecendo feijões: preto, mulato, macaça, fradinho ou mesmo seu parente o guandu, outra leguminosa popularmente chamada como feijão guandu. Algumas receitas do Recôncavo baiano acrescentam azeite-de-dendê e camarões secos quando a comida é chamada de andu de Angola e com as clássicas carnes frescas e salgadas da feijoada é Anduzada. Contudo, o nosso olhar e desejo está no caldo, filho da feijoada, ou do feijão diário bem temperado. Sem dúvida, a criação culinária fez do fazer caldinho de feijão uma especialidade e um campo para muitas variações de sabores e formas de oferecer e de consumir. Sempre quente, muito quente, para poder exalar os temperos, algumas especiarias que anunciam aquela receita, aquele estilo de fazer dessa bebida introdutória uma abrideira, quase refeição ou então nela mesma está o sentido da substância de um ampliado entendimento culinário. Pois, segundo o costume o que alimenta mesmo é um bom feijão com arroz. Sozinho no copo, no copinho de vidro, de barro, o caldinho clássico que é resultado de alguns processos secretos de misturar cuminho (cuminum cyminum), especiaria do oriente médio, já mencionado na Bíblia como um fiel amigo da cozinha grega, turca e árabe, e outros complementos. Ainda, integra receitas da Índia, da antiga Roma e certamente chegando a nossa cozinha pelos mesmos caminhos que chegaram o cravo, a canela, as pimentas, o louro, o gengibre, nessa busca mundializada de conhecer e ampliar contatos com o oriente e com ocidente, pois “navegar é preciso”. O caldinho de feijão com um cominho acentuado é sem dúvida o pernambucano que é feito de feijão mulato. O feijão preto, emblematizado na cidade do Rio de Janeiro para fazer feijoada, recebe acompanhamentos como: arroz branquinho, couve à mineira, farofa de ovos, laranja e como abrideira uma cachaça; uma cachaça com limão ou mesmo uma caipirinha de limão ou outras frutas, complementando ainda o caldinho com um enriquecimento de lombo e outros ingredientes que chegam do prato principal. O caldinho de feijão pernambucano está nos restaurantes, nos bares tradicionais, naqueles de uma única porta, popularmente conhecidos como "pega bebo" ou mesmo nos bares em estilo botequim carioca, nos mercados tradicionais, na venda ambulante nas praias, juntamente com o caldinho de camarão, de sururu, de peixe; ovo de codorna, azeitona, charque frito, entre outras possibilidades comestíveis que são servidas ao sol, ao ar do mar, entre coqueiros e jangadas ao fundo - cenário intensamente tropical - paradisíaco. Ainda, esse caldinho grosso poderá ser acompanhado de uma boa branquinha, cachaça nova para fazer aquele casamento na boca. Um pedaço de limão é indicado para aprimorar o gosto da água pura e filtrada da cana sacarina. Temperos complementares como óleo, azeite de oliva, molho de pimenta, e eu particularmente sugiro as bem vermelhas, de odor forte, que só de olhar já arde à boca, fazendo do feijão uma bênção que forma e lembra paladares tão nosso, do gosto brasileiro. Se há um sentimento de povo na comida ele compõe em memória e imagem com o feijão; feijão e Brasil, uma boa dupla. *Por Raul Lody

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Ingrediente: um tema da soberania alimentar

Há um crescente interesse para esse tão importante personagem das cozinhas e das histórias pessoais e coletivas chamado o “ingrediente”. E assim busca-se além do sabor as mais profundas referências que identificam, particularizam uma batata, uma folha de mostarda, um tipo de milho, uma pimenta entre tantas individualidades que devem ser reconhecidas para dessa maneira poder viver cada ingrediente nas receitas e nos símbolos em diálogos que referenciam culturas. O ingrediente é traduzido nos contextos da globalização nas maneiras identitárias e autorais de se fazer comida e de se viver os rituais da alimentação e da comensalidade. É assim, o ingrediente é uma espécie de símbolo do território. Porque cada ingrediente terá uma fala peculiar, um uso indicado na tradição e nas relações com os outros ingredientes, nas maneiras de revelar e de reconhecer um lugar, e isso pode-se chamar de “terroir”. Por exemplo o milho, são centenas de tipos, desse cereal americano, que para as civilizações milenares dos continentes das Américas representa o sol, o poder da vida e da fertilidade, Sagrado milho , uma base alimentar que vai muito além da boca, da receita, ele o milho é um mito vivido nos seus mais identitários ~símbolos de alimento, de pertencimento, de memória ancestral presente também nas nossas mesas de junho, com tantas receitas com coco, cravo e canela, e com as pamonhas que atestam usos de mais de 7000 mil anos pelos povos tradicionais latino-americanos. São os “tamales “comidas cozidas e servidas nas folhas. Ainda o milho um destaque para os hábitos alimentares cotidianos, em especial no Nordeste com as receitas de se comer cuscuz de farinha de milho, bolo de milho, biscoitos entre tantas maneiras de se trazer o sol dos incas às nossas mesas. Mandioca, também da América do Sul, é uma das mais importantes bases das comidas das nossas sociedades tradicionais, dos nossos indígenas e está integrada aos significados culturais de povos milenares das florestas. Da mandioca, a farinha de mandioca, um dos mais notáveis ingredientes de uso e de significado nacional. Farinha para se comer com tudo, em diferentes usos, enquanto farofa, pirão. Para fazer os mais importantes estilos de se comer à brasileira, com farinha seca, farinha misturada nos caldos dos legumes. dos peixes, de crustáceos, com o caldo grosso e temperado da galinha de cabidela com a pimentas frescas , também nativas. Pode também se misturar com mel de engenho ou o melado, com açaí, ser uma bebida artesanal acrescida de água e açúcar, o “chibé”, e ser ainda como o mais tradicional acompanhamento do churrasco de fogo de chão, entre tantos. Sem dúvida a identidade das comidas, das peculiaridades de cada ingrediente e receita marcam as escolhas e as propriedades encontradas na exclusividade do sabor, da forma, das indicações de uso culinário. Porque a receita e a técnica culinária unem-se no entendimento pleno. funcional e de memória que traz cada ingrediente nas suas cores, texturas, odores, quantidades, organizações nos pratos, também indicadores de leituras estéticas. Porque comer é um ato amplo e diverso, peculiar, necessitando das linguagens e dos sentidos, visto que comer é uma atitude, um encontro com referências, com as mais profundas interações entre a cultura e a pessoa. As comidas são apresentadas envoltas em folhas, sobre esteiras, em louça de barro, em gamela de madeira, em compoteira de vidro, para se comer de mão, com talheres, com o rigor dos tabus alimentares, das regras religiosas das festas que indicam o que comer porque é festa e assim a festa só será festa se as comidas traduzirem os símbolos revividos em cada ritual de comensalidade Diante de tantos acervos, com as muitas diferenças regionais pelos biomas, pelas ocupações etnoculturais, pelos interesses comerciais pode-se viver as escolhas dos ingredientes, do que comer, como comer, estabelecendo os sentidos do que chamamos por “soberania alimentar”.

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Gilberto Freyre: um sociólogo na cozinha?

Para celebrar os 80 anos da primeira edição do livro “Açúcar” (1939), obra que traz um homem interessado por receitas de bolo, doces de frutas; e, mais ainda, por papel de seda recortado como se fosse renda para enfeitar pratos, tabuleiros, foi um verdadeiro escândalo. Como um sociólogo na cozinha? Sim, na cozinha, pois era na intimidade da casa, e notadamente na intimidade de quem fazia a casa pulsar, o fogão funcionar; as receitas reviverem os mosteiros, as vendas e ganhos nas ruas; das sobremesas dos restaurantes populares aos hábitos de comer e de beber dentro de casa. A comida, e tudo que se relacione com processos culinários, tecnologias artesanais, receitas e rituais de comensalidade, formam as bases conceituais e emocionais para Gilberto interpretar o açúcar e o doce no âmbito da casa, um lugar de destaque dentro da sua obra de interpretação do homem lusitano situado no Trópico. No ambiente de Gilberto, para formar sua obra a partir de “Casa-Grande & Senzala”, a casa e tudo que ritualmente se vive dentro dela, como as complexas relações sociais, marcaram e orientaram Gilberto no seu mergulho multicultural sobre o homem português, o colono oficial que trouxe o açúcar. Sem dúvida, a cozinha é o lugar mais profundo e memorial para se trazer referências e experimentar a cultura pela boca, na sua diversidade de emoções, e nas variadas maneiras que nos alimentamos. Estes contextos sociais estão na obra de Gilberto Freyre, onde são destacadas matrizes etnoculturais que estão nos sabores, nas escolhas dos ingredientes, nas receitas e na estética dos pratos. Comer é um ato social que é ritualizado na forma de oferecer, nas diferentes formas de comensalidade do cotidiano e nas festas, especialmente nas celebrações religiosas. Também em Gilberto, há temas dominantes que interpretam os lugares sociais, que eram bem determinados nas hierarquizações das casas de engenhos, onde os ofícios de cozinhar e da confeitaria se uniram para celebrar os doces já tropicalizados, que integravam frutas nativas e outras, que apesar de serem do Oriente, nacionalizadas nos hábitos à mesa. Desse modo, os repertórios de comidas e de bebidas passam a mostrar as muitas maneiras de se representar e apresentar o açúcar, juntamente com a farinha de mandioca, e outros temas do dia-a-dia dos engenhos. Nessas bases de história e de economia são formados mercados, escolhas sobre o que comer, onde comer, com quem comer. São múltiplas as relações para se afirmar o poder do açúcar. Outros contextos, como as vendas ambulantes, trazem as relações das muitas e diferentes cozinhas com as comidas rápidas, comidas de rua. Traduções de ingredientes e de receitas nos cenários sociais das cidades, ainda com as suas representações patrimoniais e patriarcais que ditavam as tradições não só do comer, mas do fazer e do vender. Cozinhas ambulante que acontecem na frente do freguês, são rituais de fazer comida no momento da sua venda. Há interações entre o culinarista e freguês, vive-se o processo da receita e, sem dúvida, a memória traz as referências e os símbolos da comida desejada. Todos estes temas, e maneiras para se viver a comida, interpretá-la, mostrar as suas matrizes etnoculturais, é uma forma de traduzir o Nordeste, e a civilização do açúcar. E todo esse olhar traz o pioneirismo de Gilberto Freyre, que há 80 anos atrás já pensava na valorização dos sistemas alimentares, e na afirmação das identidades e dos patrimônios culturais da região. *Raul Lody

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Cachaça: água que passarinho não bebe

Pela goela abaixo desce a branquinha – água que passarinho não bebe – abrindo refeições, abrindo conversas, aproximando pessoas ou representantes do que é sagrado. É a abrideira, um contato privilegiado entre o sabor, o ardor, o estilo de bebida forte, bebida que inaugura os diálogos com o mundo. É bebida que aproxima o santo. Seja que santo for, santo individual, coletivo, santo identificado, nominado ou mesmo santo inventado na hora. Dar bebida para o santo. Dar para o santo. Jogar no chão o primeiro gole como um pedido de licença, saldando o chão, saldando ancestrais e homens. Oferecer a terra é oferecer aos vivos e aos mortos, celebrando uniões entre hoje, ontem e desejando uma fala simbólica com o amanhã. Terra, chão, território ancestral; território concreto do trabalho, das relações sociais. Cachaça no boteco, no botequim, na banca de feira e de mercado, na esquina, no bar ou mesmo em casa, evoca um sentido/sentimento do mundo dos homens. É a bebida forte que determina num sentimento de ancestralidade no território masculino e que também celebra a conquista do herói. Herói identificado ou mesmo herói coletivo. É a lembrança do provedor, do caçador, do guerreiro, daquele que chega para marcar um papel, uma função social. Tudo isso transita pelo amplo imaginário fundante da nossa bebida forte, a cachaça. A cultura judaico-cristã incumbiu-se e determinou o papel histórico e patriarcal do homem. Em permanente atualização o papel relativiza-se entre a caçada do provedor a ida ao supermercado ou mesmo provendo na quitanda mais próxima e que também é resumo da realidade/alimentação. São comportamentos, formas de contatar com o mundo externo. Nesse contexto a bebida é um limite, entre o tempo histórico e o tempo mágico. Baco certamente já sabia o que fazia com a razão e o pragmatismo dos homens. A cachaça encarna um sentimento nacional. O sentimento do brasileiro. Há também uma representação mimética entre a cachaça e o machismo. Esse vinho de borras, a cachaça brasileira, é resultado da cana sacarina, oriunda do sudoeste asiático. A cachaça é bebida de contatos, de socialização e também uma bebida solitária. É uma busca pelo espírito da cana-de-açúcar. Profundamente espiritual e espiritualizada é a cachaça: um ser, uma entidade socialmente incluída nos rituais cotidianos ou em complexas situações de liturgias, de cerimônias coletivas, intermediando pessoas e personagens. Jean Baudrillard afirma que: “tudo é solúvel no amor, tudo é solúvel através do amor.” Digo: tudo é solúvel na cachaça. Não é uma apologia e nem uma enebriada defesa da purinha, da branquinha. Ela não necessita de defesa e sim de conhecimento e de compreensão integrada à vida e aos símbolos da cultura. Cachaça, uma bebida acima do bem e do mal.

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